Inês Monguilhott é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia com inveja dos que despertam aristocraticamente, em nobre vagar, com o mundo, o dia inteiro, esperando por esse grande momento para finalmente se pôr em marcha. Seja lá a hora que desperte, de supetão, o dia já dobra a esquina e de imediato estou pronta pra correr ao seu encalço. Credito essa eficiência quase atlética aos anos de treino da maternidade.
O grande protocolo do meu despertar, da minha única rotina matinal, está é nos instantes antes de adormecer, no dia anterior. Preciso de um tipo de silêncio para experimentar o que senti durante o dia e acomodar as emoções e reflexões aleatórias em camadas sedimentares ilógicas, mais ou menos reconhecíveis por mim. Não é resolver, pacificar ou qualquer outra coisa prática ou edificante. É apenas observar a mim mesma e meu “sentir o mundo”, com um distanciamento sem critérios e, por pouco, indiferente. Ato ruminante: retomo o já experimentado, sinto-o novamente e digiro o mais possível, quase sempre vêm junto traços de bile. Aceito a experiência tal como a sinto sem tentar melhorá-la. Sem esse exercício acordo tão perdida e turva quanto estava no fim do dia anterior, incapaz de reconhecer no corpo a pausa do sono, indo de enfiada de um cansaço para o outro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A hora do dia não é tão importante quanto o silêncio. É necessário um certo silêncio em torno ou ignorar o ruído, inclusive o meu, interior ou o das solicitações do viver, que se interpõem o tempo inteiro com suas necessidades e urgências. Termino por escrever ou muito cedo ou muito tarde, no celular e na cama, a porta do quarto fechada. Mas nada impede, se estiver suficientemente motivada, de ir repetindo e montando na cabeça os versos de um poema, o andamento de um texto ou um diálogo, enquanto dirijo, esteja no metrô ou outra coisa qualquer. Para recordar o percorrido tento guardar palavras-chave que me servem de guia para retornar ao ponto provisoriamente abandonado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando coincide a necessidade com a vontade de escrever. Não me sinto forçada a uma meta, não sou uma operária da escrita, talvez uma artesã, com seus caprichos e melindres. Preciso antes ter o que dizer e querer dizer. Eu só fico muito perturbada quando estou seguindo ou perseguindo um fluxo de uma ideia e sou interrompida por alguma necessidade besta do cotidiano. Se fosse possível escolher, passaria todo o tempo que achasse necessário escrevendo até a conclusão da ideia ou do que me propus.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Antes de escrever sobre algo costumo ruminar um pouco. Não é exatamente compilar notas, é avaliar aleatoriamente um assunto como quem brinca com um objeto nas mãos, sem critérios ou intenção preconcebida, apenas algo que vou experimentando.. .provando… observando… e tudo gira sem planos até que surge o fio da meada: meu entender do experimentado. Sou responsável apenas por uma parte e modesta o suficiente para reconhecer a escrita como algo feito a quatro mãos, duas conscientes e outras duas inconscientes. Todas as mãos têm que trabalhar em conjunto nos seus méritos, permeadas e sem interromper umas às outras. Determino em linhas gerais um conto: alguém parte de um ponto X ao ponto Y e proponho um conflito. Uma vez que o personagem tem sua identidade determinada e está diante do conflito proposto, só me resta segui-lo, observar e transcrever. Há algo de trágico em todo personagem: ele só tem um caminho a seguir, o da sua natureza determinada. Qualquer interferência da vontade do escritor sobre a vida íntima do personagem é desastrosa. Perde-se com a interferência a tridimensionalidade daquele ser no seu mundo, geralmente por um moralismo tão exemplar quanto bobo.
Tanto no conto quanto no poema, parto de um ponto fixo inicial e conhecido a um ponto final que propus e que nunca será escrupulosamente aquele concebido. Quando saímos na perseguição de um personagem/assunto, éramos, eu e minha inconsciência, criaturas distintas e quando chegarmos ao fim seremos outras, fundidas num novo conhecimento que altera inescapavelmente tanto a nós quanto ao fim proposto.
Determino que um homem se chamará José e que morrerá atropelado pela manhã quando sair de casa. Isto eu determino quando começo a escrever. Sua casa, seus móveis, o motivo que levou o pobre homem a encontrar seu destino saindo tão cedo, sua rua, o carro, a cor do carro, o motorista, a responsabilidade por essa morte e como me coloco diante do que sucederá, isso eu apenas transcrevo. Conscientemente, não determino tudo: a casa do José tem de ser unicamente aquela que o comporta e deve se implantar numa rua que lhe é natural e não outra… assim, basta seguir o encadeamento inexorável da verossimilhança.
Se acato com docilidade a parte minha, que não é “minha”, o trabalho da linguagem é artesanato e ourivesaria e é inteiramente meu. A mais importante responsabilidade consciente: escolher a palavra certa no momento calibrado para atingir o efeito proposto. Minha parte inconsciente pode me trazer aos olhos e ouvidos o que quer, mas só eu, consciente, posso dispor das palavras para reunir nossas partes independentes numa outra articulada e maior. Convocamos o assunto, mas não dominamos a forma como ele se apresenta. Só que uma vez apresentado tem de ser domado conscientemente pela linguagem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há vários motivos para a procrastinação, às vezes é o medo ou certeza mesma da incompetência, mas não costumam ser esses os meus maiores motivos para postergar um texto. No meu caso, os maiores motivos são quase sempre um destes dois: a escolha de um assunto emocionalmente espinhoso para mim, não digerido, ou não saber ainda o que quero dizer. Fico adiando por um bom tempo olhar para o que não quero ver ou o contrário, mirando sem saber o que vejo. Geralmente esses dois motivos estão associados. Esse protelar indefinidamente ocupa bastante tempo, mas não é necessariamente um tempo perdido, pode ser tempo gestacional. Se me surge uma dificuldade pontual em pegar o “fio da meada” pego “no tranco” esse fio, uso um truque tão tolo quanto eficiente. Abro um texto com a palavra “Quando”: Quando, naquele dia, José cruzou o portão…
O “quando” me joga de imediato e em movimento na cena, resta-me só seguir por inércia o que se passa até tomar fôlego e embalo. Funciona. Com esse truque e depois de todo o texto construído, volto aos primeiros parágrafos, geralmente os mais fracos, dispensáveis, mas que tiveram função importante.
Não me censuro nem corrijo muito o texto antes de concluído. Isso é perigoso para mim, faz com que me perca, rateie e finalmente estanque na perseguição da ideia. Pior, posso ficar girando em círculos de preciosismos. Depois de tudo concluído haverá muito tempo para revisões. E se não tiver cuidado e determinação em dar um basta às revisões, minha vida não será suficientemente longa para isso. Paro de rever um texto apenas porque se faz necessário parar.
Não me preocupo até o momento de conclusão do escrito com as expectativas alheias, sequer percebo a possibilidade da existência de um leitor além de mim quando estou enfronhada no trabalho solitário da escrita. Depois de escrito, sim, saio correndo humildemente atrás de quem me leia. O leitor nesse momento é mais importante que eu, seu entendimento é o que confirma e justifica meu empenho, mas só nesse momento, antes não. E não tenho pudor de expor um texto em construção, ele é o que é, um texto em construção. Uma mãe se incomoda por seu bebê nascer sem dentes? Acho que quando faço essa construção do texto em praça pública, livro-me do compromisso paralisante da perfeição. O compromisso é com o melhor, o meu melhor, o que posso, e não com a perfeição. Saber que não sou perfeita e aceitar isso ajuda, um pouco de humildade sempre ajuda.
Não penso em trabalhos de fôlego tipo romance. É algo que exige o que não tenho para dar. Meu olhar é o de míope, sou de investigar detalhes, não sou dada a visões panorâmicas. Sou o corte profundo no momento, a parte ínfima que espelha o todo. O tempo e o espaço me interessam mais para marcar um ponto que para seguir trajetórias. Sou vertical, não horizontal. É sempre bom saber o que se é.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos infinitamente. Quase sempre melhoro o texto. Uma intervenção desastrosa ou inócua nas revisões também é uma possibilidade e pode exigir novas revisões. Qualquer texto meu antigo é passível de melhora com uma nova revisão. Acho que acumulo experiência e com o tempo escrevo melhor, então tudo pode melhorar. Também existe outra crença minha de que as palavras tanto iluminam quanto nos cegam com sua luminosidade. O tempo dá a distância necessária para observá-las melhor. No momento da criação do texto estamos tão umbilicalmente próximos das palavras que o valor que damos ao seu arranjo no texto não é necessariamente o valor real. Terminamos por ter a falsa crença que escrevemos o que pensamos. E o que pensamos continua em nossa cabeça e fora do texto: o link é só nosso.
Se pudesse teria apenas três leitores críticos: Deus, o Diabo e o resto do mundo. Qualquer pessoa pode contribuir ou não, mostrando-me algo que ignorei. Eu, soberanamente, decido então se acato o que me apontaram ou se banco algo diferente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é ambígua. Meus textos são todos digitados, de preferência no celular. Abandonei o computador. E preciso que seja digitado, sem a boa vontade do corretor ortográfico sou praticamente ilegível. Aproveitei muito pouco a educação formal, sou um desastre ortográfico, e tão grande que evitava fazer até listas de supermercado antes de me decidir a escrever. Agradeço todos os dias ao ser anônimo que teve a ideia generosa do corretor ortográfico. Se digitar parece moderno, fico apenas nisso e numa consulta ou outra ao Google. No resto eu sou tão claudicante com a tecnologia como qualquer velha dessas que por azar ficam na nossa frente em um caixa eletrônico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Todas as ideias vêm de quatro fontes que ao fim e ao cabo são a mesma: a) da minha experiência; b) do observado; e c) do Zeitgeist, o incontornável espírito do tempo. (Os alemães são bons em criar palavras que depois se tornam indispensáveis.)
Escrever é recordar, por mais fantasia que aplique em me descolar do texto. Paradoxo interessante: nem somos escrupulosamente verdadeiros quando queremos ser, nem criamos tanto quanto pensamos… quando pensamos que fazemos isso. No meio de tudo está o eu e sua subjetividade entortando tudo ao seu bel prazer, mas só faz com os instrumentos que a vida lhe dispôs. E é de se ficar surpreso: eu fico com o que é pescado para compor um texto. Pode ser um fiapo entrevisto por momentos, algo que não daríamos importância alguma e subjaz enterrado na memória. Uma insignificância de pronto convocada e que mais prontamente responde como esperasse por isso desde sempre.
Escrever é recordar. Acho que alguém já deve ter dito isso.
Não há exatamente algo a ser cultivado para escrever, há o que se cultivar para viver. Tento não perder o frescor do olhar. Sem isso a vida é um deserto tedioso. Troco o tédio pela angustia e me dou por satisfeita. Cada um faz suas escolhas e presume-se que se dê por satisfeito com ela. Prefiro o sobressalto de olhar sempre como se o observado estivesse sendo observado pela primeira vez sem saber o que virá desse olhar. E isso é verdade, tudo se modifica continuamente. Se mantenho o olhar convencional, pró-forma, apenas como registro “ótico” pré-julgado de um fato, não terei nada a acrescentar ao escrever, só mais do mesmo, o “chover no molhado”. E para que escrever ou ler o que já se sabe, de domínio público? É preciso ter algo a dizer, (lembra?) algo novo, porque se não há leitmotivennovos para observar, todos já foram observados, importa então é a forma como se observa, a originalidade do ponto de vista, iluminar com palavras algo que permanece periférico, ainda surpreendentemente nas sombras. Se consigo isso com luz própria, wow! Meu mundo e o mundo de quem me ler ampliam-se Nada mudou e tudo muda.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que muda é que entendo mais o que escrevo, por que escrevo, e vou entendendo aos poucos a carpintaria interna de um texto. Se pudesse dizer algo a mim mesma, no começo, seria um conselho taoísta: “continue, o caminho faz o caminho”. Seria um conselho desnecessário, estava decidida a escrever como estou até hoje. Quero é me submeter ao texto, servi-lo, e receber dele o que pode me dar para crescer, me lançar adiante e acrescentar ao mundo mais um tijolo. Para isso eu preciso da minha verdade, dos outros e do mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenhosempre projetos em andamento, mesmo até antes de percebê-los como tal. Quando percebo, eles já caminharam sozinhos uma boa parte. Dou apenas ajustes e conclusão. E, se proponho, proponho algo em aberto e no caminho faço o caminho.
Gostaria muito de escrever ou ler de alguém algo assim:
Um ser humano se senta numa mesa e de igual para igual pergunta a Deus, “E então, me explique essa porra toda!”
Seria um livro longuíssimo ou teria uma única página: “Fiz porque quis”.