Ilana Eleá é escritora, doutora em Educação pela PUC-Rio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Me lembro de ter ficado encantada ao saber da rotina de dois pesquisadores que admiro. Ele, de Zagreb, na Croácia, diz ler poesias ou contos ao acordar, diariamente, porque assim recebe o alimento que precisa já antes do café. Ela, espanhola morando em Paris há décadas, contou escrever assim que acorda, porque precisa lembrar que há sempre algo a dizer ao mundo antes de ser tomada pela avalanche de informações que o dia trará.
Eu nao tenho essas rotinas bonitas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Os poemas chegam quando querem. Toda vez que tentei induzir um clima, os versos saíram desfocados, rebeldes, com uma arquitetura arisca, como se escorregassem. Ainda assim, dificilmente escrevo a noite, gosto das manhãs, da luminosidade para a escrita. Noites me convidam à leitura.
Encontros de neve e sol, por ser prosa, recebeu uma outra dinâmica, principalmente nos últimos meses de escrita. A parceria com a Sandra Espilotro, coaching literária da editora e-galáxia, movimentou as águas com novos desenhos e círculos, como se eu tivesse alcançado uma nova ilha. Passei a contar com a leitura da Sandra a cada capítulo, com comentários detalhados ao texto e animadas interlocuções por Skype. Eu estava na Suécia, longe da língua nativa, descrente sobre a possibilidade de fechar o livro e as sessões foram fundamentais, um laboratório, ateliê de escrita, um laço para a amizade que quero para toda a vida.
Um fato curioso é que escrevi vários, talvez uns 8 capítulos do Encontros ouvindo a mesma música. Se a inspiração falhava, Cindy Lauper e seu “Girls just wanna have fun” me lembravam o que eu teria a dizer. Escrevia na escrivaninha da nossa casa amarela, janela para a biblioteca no jardim, o Spotify ligado e a Cindy ao fundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria de escrever diariamente, mas ainda nao consegui. Por ora a meta alcançada é: estar em contato com traços e fachos da literatura diariamente como uma necessidade básica e indomável. Não deixo passar um dia sem ler, em voz alta ou baixa, poemas. Compro livros especialmente de poetas e escritoras brasileiras vivas, me fazem a melhor companhia. Me emocionam Vera Lúcia de Oliveira, Aline Bei, Cristina Judar, Francesca Cricelli, os posts da Micheliny Verunschk, Ana Elisa Ribeiro, Lázara Papandrea eLuanna Belmont só para citar lidos hoje. Me delicio com livros híbridos sobre poesia, como o do italiano Davide Rondoni. Acompanho atentamente no Facebook o que o Mulherio das Letras tem a dizer, leio suplementos literários em papel e online, leio as entrevistas no seu Como eu escrevo, acompanho as editoras independentes. Visito a biblioteca pública da Florença e de Fiesole semanalmente, leio literatura infantil nos três idiomas (português, sueco e italiano) para os meus filhos com um prazer gigante, na hora do café e antes de dormir, me emocionando e vendo-os se emocionar com as histórias escritas por Leo Lionni, Lena Sjöberg, as irmas Lisa e Emma Adbåge, o premiado ilustrador André Neves, para citar alguns dos grandes amores. Procuro poetas e escritores nas redes, me apresento, como se a cada abraço virtual um pouco da fantasia entrasse para novas trilhas e possibilidades. E ah, escuto todos os dias o programa de rádio sueco “Dagens dikt”, ou o poema do dia, majestosamente lido e acompanhado com músicas para a alma.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para a escrita ficcional, uso o processo inverso. Se para a tese de doutorado e textos acadêmicos eu partia de um tema e revisão bibliográfica organizada para depois escrever, com a prosa é diferente. Começo primeiro a escrever o que sinto, deixo a intuição molhar a página, chover. Apenas depois pesquiso fontes, rascunho notas, procuro complementar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Demorei sete anos para acabar de escrever Encontros de neve e sol, imagine quanto de procrastinação não cabe nessa frase. A consultoria literária me tirou da letargia e trouxe coragem. Lancei Encontros em maio do ano passado e desde então tenho apenas escrito poemas soltos. Lembro que quando bati na porta de uma editora há dois anos, eu tinha menos de 20 versos. Volte quando tiver com 50, disseram. Estou a um poema de distância para tentar mais uma vez.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Poemas saem prontos, como um transe, são escritos na duração de alguns refrões. Raramente os reviso, mexo ou troco os versos. Isso não quer dizer que sejam bons. Meus poemas, até então, são como um jorro improvisado, ainda quente, quase estudantil, arredio e imaturo, que se recusa a decantar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo poemas no verso das folhas desenhadas pelos meus filhos, em páginas soltas, no celular, no computador. Alguns poemas escrevo com a intenção de transformá-los em um videopoema logo em seguida; outros deixo a versão em palavras como destino. Ganhei um caderno para escrever poemas mas nao funcionou. Em cadernos eu estudo, anoto e organizo o que leio, copio trechos favoritos. Mas quando o poema vem, paro e escrevo, ele precisa descer. O meu infantil Caramela escrevi no celular, dentro do metrô, entre duas ou três estações, voltando de um delicioso almoço com amiga queridíssima em Estocolmo. Encontros de neve e sol escrevi todo no computador, ao longo de sete anos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Observo e tenho compaixão pelos elementos vivos e mortos. Cresci com uma mãe de outro planeta, sensibilíssima, leitora incansável, os cachos negros, daquela língua só ouvi delicadezas. Avós íntimas de espíritos. Uma madrinha com meia-calça alada, comissária de bordo em voos internacionais que me trazia histórias dos países que visitava. As amigas extraordinárias. Professores do melhor tom. O travar da língua pelas mudanças de país. O longo caso com a língua italiana. A política sueca como lente e utopia. A dor e encanto, uma saudade pelo Brasil.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mudança do Brasil para a Suécia em 2011 alterou significantemente o meu processo de escrita e identidade. Não sabia para qual direção empregar energia (inglês, sueco, português?) e acabei me sentindo perdida e cansada em um hiato de idiomas.
Sobre a sua pergunta, deixaria meus primeiros textos como estão porque valorizo o caminho, as aprendizagens pelo tempo, as marcas da experiência e falta dela, o ganho dela.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever uma série para ser ilustrada em quadrinhos inspirada na nossa @Bibliotek Barnstugan, a biblioteca infantil aberta ao público que temos no jardim da nossa casa em Estocolmo. Nao desenho, entretanto, o que ralenta o passo.
O livro que eu gostaria de ler? O Brasil celebrado por sua política de inclusão das minorias, por respeito e investimento em educação e pesquisa em todos os níveis, que respeite a liberdade de cátedra dos professores; pelo combate ferrenho à miséria e ao racismo, que saiba duvidar da meritocracia, um país com pleno emprego. O Brasil celebrado por ser um país que saia em defesa e garantia dos direitos humanos, das crianças e dos adolescentes e que seja respeitoso às reservas ambientais e indígenas, que tenha uma fiscalizacão séria capaz de prevenir crimes ambientais. O Brasil que não tem medo do diferente, que não se opoe ao pensamento crítico, que não reprime ou controla a sexualidade e tampouco exalta um líder (para pegar a síntese feita pela querida Daniela Versiani para o livro do Umberto Eco, “Fascismo eterno”. Um país com veias democráticas que acolha a liberdade das pessoas e de informação e que promova a circulação da cultura, que cante cordéis em tantos sotaques. O Brasil que tenha os olhos fixos em busca da justiça, que nos diga e responsabilize quem matou Marielle, que combata a corrupção e garanta o exercício da lei para todos, um país sem milícias e tráfico organizado, um país onde homofobia é crime e feminicídios prevenidos. O Brasil que invista na formação contra o machismo, racismo e empoderamento feminino desde a tenra infância, um país não patriarcal de meninas e meninos que se vistam e sejam a cor que quiserem.. Um Brasil de leitores apaixonados, pode se levantar, um país poeta você já é.