Igor Gomes (Igor Chico) é “acima de tudo, apesar de tudo e por causa de tudo” um menino negro sonhador e poeta, participa de Sarau, Slam e de mais mil fita pelo mundo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Se preciso acordar cedo eu começo o dia mal humorado, bem mal humorado. Numas de nem querer lembrar qual é meu nome. A sobrevivência geralmente me obriga a acordar cedo (e dormir tarde) então meus dias costumam começar com água no rosto, pão com manteiga e chá de alecrim. Pouca conversa e geralmente zero poesia. Aprendi com meu pai a sempre fazer o sinal da cruz (ou da encruzilhada) antes de sair de casa, “pra fechar o corpo” ele diz. Sempre faço e depois sigo pro ponto de ônibus.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu acho que igual o Baco Exu do Blues também “faço parte da noite”. É a noite que funciono melhor e é a noite que geralmente eu escrevo ou que reviso uns poemas, junto umas notas soltas que anotei durante o dia nos busão e trem da vida.
Não costumo ter ritual pra escrever. As vezes coloco alguma música (de preferência que não seja em português porque senão atrapalha. Os favoritos pra isso são: Kendrick Lamar, Frank Ocean e Michael Kiwanuka). Escrevo quando bate a inspiração, a vontade – eu não sei muito bem explicar. As vezes um verso ou uma ideia vem na cabeça e eu to no ônibus lotado segurando a mochila, daí eu dou um jeito e anoto aquilo. As vezes a poesia vai vindo inteira e eu tô em alguma fila pra alguma coisa. As vezes a inspiração vem no meio de um rolê – daí geralmente eu vou pro banheiro pra escrever e volto a ler ela no dia seguinte (ou muito tempo depois). Geralmente escrevo também quando volto inspirado de algum Sarau, Slam ou outro evento firmeza.
Regras geralmente me deixam muito infeliz. Acho que se eu criar regras pra hora de escrever a minha poesia seca, morre.
Quero ser livre e pra isso minha poesia precisa ser ainda mais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quase todo dia. As vezes a poesia me boicota, fico tempos sem escrever e é horrível. Tem épocas que escrevo muito e é gratificante. Mas costumo escrever com frequência: as vezes só umas palavras soltas que eu jamais imagino indo pro mundo. É mais normal eu escrever quando tô triste: escrevo umas notas ruins só pra enfrentar ou pra fugir daquilo, geralmente vai pro lixo, as vezes vira alguma coisa. Mas tô aprendendo a importância da felicidade e procurado escrever nesses momentos também pra poder lembrar depois ou até pra servir de cais pra alguém.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Às vezes me sinto esquisito porque meu processo de escrita é cheio de indas e vindas, é tipo um mar. Às vezes a poesia vem inteira, do nada. Às vezes ela vai vindo aos poucos: vem em forma de versos soltos, ideias, notas mentais que vou anotando e no final se juntam com algo que eu escrevi meses atrás. É muito raro eu sentar e decidir “vou escrever algo” ou “preciso escrever sobre esse tema”. Eu travo, não sai ou pode até sair mas pode ser que eu passe a detestar aquela poesia, já nasce morta. Eu preciso que as poesias venham do caos mesmo, do tudo que é nada e com o tempo vou lapidando. O mundo é um caos e eu escrevo muito sobre o mundo, então não tem como ser diferente. Às vezes as mil tretas me fazem ter pressa. A pressa pode matar minhas poesias também, elas têm seu próprio tempo. Às vezes guardo um poema pensando em ir trabalhando ele melhor porque acho que ainda não finalizei, passam meses, eu olho pra ele e mesmo sem mexer em nada penso “tá fechado, pronto.”
Depois o meu desafio maior é por minha poesia (e eu) no mundo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Trava pra escrever é uma fita que me maltrata. Geralmente eu tento achar a causa mas isso não é simples. Então eu sigo vivendo e ouvindo música, vivendo e ouvindo música. Eu sou viciado em música, principalmente em músicas em português (ou melhor, em brasileiro), principalmente rap. Eu também busco ler ainda mais nessas fases de deserto. Vivo, leio e ouço rap até a hora que consigo transformar a vida em versos de novo.
As expectativas me matam – as minhas e as dos outros mas principalmente as minhas. Eu sinto que ainda tô aprendendo a tirar minhas poesias da gaveta. Sou vítima – como qualquer outra pessoa negra nascida aqui – de um processo de destruição da autoestima que fez eu achar que meu lugar é a sombra e o silêncio. Esses demônios não são meus mas depois de tanto tempo é difícil expulsar eles daqui. To nessa tentativa e cada vez que coloco uma poesia minha no mundo: seja lendo em um sarau, recitando em um Slam, compartilhando em alguma escola, publicando em algum livro ou fanzine eu sinto que dei um passo enorme.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Várias vezes. Tem texto que eu reviso até depois de publicar. Cada poesia tem vida própria e eu acho que quando a gente escreve tem uma responsabilidade naquilo, tem algo sendo dito e é daora poder dizer isso da melhor forma possível. Já teve poesia que eu escrevi de uma vez e julguei que tava pronta e tem poesia que eu vou escrevendo em picado, começando pelo final… Eu não tenho uma regra pra saber quando tá pronto. Vai da minha intuição, da sensação que fica quando eu termino de ler. Quando uma poesia não tá pronta eu leio e sinto que tem um vazio nela, que tem alguma coisa errada, faltando pra mim mesmo. A oralidade também é importante na minha escrita então eu gosto de ouvir como é a sonoridade dela quando recito, pra ver se preciso mudar mais – acho que isso tem a ver com minha pira em música.
Pra publicar, mais importante do que saber que a poesia tá pronta, é saber que eu to pronto pra por ela (e esse pedaço de mim) no mundo. Às vezes a poesia tá pronta mas eu não tô e aí é buscar paciência e coragem. Às vezes os dois tão prontos e aí o resto é eu dando orgulho pro menino Igor dentro de mim. Tem poesias que pra ganhar o mundo exigem mais coragem do que eu acho que tenho e aí é outra luta pessoal. Tô caminhando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Ruim. Eu acho minha relação com a tecnologia bem ruim. É maior do que o que eu quero pra viver mais daora. Há um tempo que geralmente escrevo no celular mesmo ao invés de usar caderno mas acho bem mais bacana escrever em caderno. É uma meta minha comigo mesmo: usar menos tecnologia, menos celular e pra escrever usar principalmente um caderninho (e depois é bom digitalizar pra não correr o risco de perder porque se tem uma coisa triste nesse mundo é perder algo que escreveu).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu costumo escrever sobre o que vivo e sobre o que vejo. Minha poesia fala muito de mim mas também falo muito do que tá ao meu redor (ou as vezes do que nem tá tão próximo mas me incomoda, me cutuca). Eu não gosto disso mas a violência – sobretudo essa violência cotidiana contra pessoas negras – é muito presente nas minhas poesias. Às vezes a denúncia é intencional (já que poesia é compromisso não é viagem) as vezes é só o desespero que não consigo conter e escorre nas linhas.
Meus principais hábitos pra manter a criatividade é ler, ouvir música e estar com pessoas. Eu gosto muito da solidão mas também gosto muito das pessoas, das coisas que a gente vive quando se junta com outras pessoas, das coisas que a gente ouve…
Tomar chá de alecrim de manhã, chá de camomila antes de dormir, tentar dormir bem e dar risada sepa também ajudam. Ajudam a viver pelo menos e eu gosto de ser um poeta vivo. Eu escrevo sobre o que tá aí na vida, sobre o que eu consigo captar em versos seja pra suportar melhor seja porque é tão bonito que precisa ser registrado e dito de alguma forma. Então eu preciso estar vivo de verdade pra escrever.
Também tô começando a achar que andar de ônibus é um outro hábito (ou melhor, uma obrigação) da onde dá pra tirar criatividade.
Meu sonho pras minhas poesias é que elas consigam sempre criar pontes. Menos muros e mais pontes entre eu e o mundo, entre eu e os outros, entre os outros e o mundo, entre os outros e os outros, entre nós e nós mesmos…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa.
Primeiro que eu fui aprendendo a escrever sobre mim porque fui sendo obrigado a olhar pra mim. Fui enxergando um oceano onde ensinaram que só tinha esgoto. To colando meus cacos com a ajuda do que escrevo, do que ouço e do que leio.
Segundo que eu aprendi a escrever sobre amor. Também aprendi melhor a escrever sobre esperança, sobre possibilidade. Fui mudando minha ideia de mudanças, de revolução já que nem eu nem minha poesia cabemos na “única revolução possível que me ensinaram”. Na verdade ainda tô aprendendo tudo isso.
Mas a principal mudança foi que a minha poesia começou a ganhar o mundo.
Deve ter mais coisa que eu ainda não consigo perceber. Mas se eu pudesse voltar aos meus primeiros textos eu diria pra eu ter paciência comigo mesmo, que antes de ter ódio do mundo eu preciso me amar muito. Também diria que é uma proteção muito egoísta isso de me esconder e de esconder minha poesia na gaveta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é um romance escrito por mim. É um sonho e um desafio. Um dia nasce, quem sabe.
Tenho vários projetos, mas dois são os principais por agora: tentar escrever a arvore genealógica da minha família até onde for possível, acho que é um jeito de me encontrar um pouco mais e de saber de onde eu venho, de quem eu venho, pra projetar pra onde eu vou.
Outro projeto é conseguir aproximar minha poesia da música; tentar transformar uns versos em um som. Parece ainda um sonho distante mas tenho fé no impossível.
Parece besteira mas fico mó feliz quando vejo que to (re) aprendendo a sonhar cada vez mais bonito.