Humberto Pio é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O dia começa como a noite termina, com alguns sonhos no meio, de que invariavelmente não lembro. Fezes, água morna e limão. Às segundas e quartas sucedidas de castanhas e banana, pilates, banho e café da manhã. Nos outros dias da semana o azedo vai à mesa direto. Rotina importa às crianças, sou pelo desábito como maneira de estar atento, desde cedo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já fui homem da noite, hoje sou do dia. Escrevo por precisão, sempre que possível, nas frestas que a vida oferece. Em meio ao caos ou no conforto do silêncio, aperfeiçoando o conversor de UHF para a troca dos canais de um cabeça analógica, sendo a arquitetura e a poesia as vias de entrada mais nítidas. Minha liturgia é o bombril na ponta da antena.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco toda a vida, não cultivo os dias. Prefiro pensar num tempo aiônico, circular, para mim o tempo da escrita. Nesse sentido, minha meta é antepositiva – travessia: met(a)-. Metáfora, metamorfose, metafísica. Ou se quisermos fugir da Grécia para a África: metá-metá – palavra de origem yorubá que designa entremeio: passado, presente e futuro, unidade tripartida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No mais das vezes o olho, através de cones e bastonetes, conduz um impulso elétrico ao cérebro. É dessa imagem codificada que parto, transubstanciando-a em palavra, ritmo, forma… A memória me é cara: anoto além de olhares, cheiros, gostos, tatos e sons, como se pudesse não esquecê-los. Não raro a faísca original se perde num emaranhado léxico. É então que encontro o poema.
Coágulo, meu primeiro livro solo, é seleta de versos diversos escritos ao longo de vinte e sete anos, que logrou o Prêmio Maraã de Poesia 2018, sendo lançado pela Editora Reformatório em junho de 2019. Contudo, tendo formação de arquiteto, trabalho com programas e projetos e me espanta a descoberta recente – desde a premiação tento interar-me do cenário da poesia contemporânea – de que muitos escritores não têm certa consciência do planejamento, para mim condição de ofício. Arquitetura, assim como a escrita, é labor que exige pesquisa constante em função do embate com o real; canteiro que modifica o desenho que não se quer instrumento de dominação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ainda pensando na arquitetura, podemos entender a trava como escora, ou no mínimo como um componente importante do esteio da construção com palavras. Minhas gavetas não tem chaves. E não tendo interesse no tempo linear, livro-me da procrastinação e da ansiedade, ao menos no que tange a poesia. No extremo, escrever é desnecessário. Projetar é lançar adiante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os textos a gente abandona, em algum momento: uns prematuros, outros natimortos. Revisar é ver de novo; ver de novo é escrever: trabalho cíclico e infinito, com acidentes publicados. Ter a pretensão da prontidão não tenho. Nessa roda, a publicação não é fim e mostrar pode estar no antes ou no depois. Minha primeira ledora será sempre Juliana Amaral, com quem divido as dívidas e as dádivas da vida conjugal.
Neste ano de 2020, provo compartilhar com colegas do Curso Livre de Preparação do/a Escritor/a da Casa das Rosas – CLIPE Poesia – alguns poemas em fatura, experiência enriquecedora.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo onde for possível, ao sabor das fagulhas cotidianas: cadernos, papéis avulsos, celular, computador. Já perdi muitos dados e arquivos em computadores roubados, troca de aparelhos, redes, falência múltipla da tecnologia etc. Minha coleção de cadernos continua intacta, no maleiro do armário embutido.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu não sou criativo, ou ao menos não me reconheço em termo tão desgastado. Procuro é a alegria dos encontros, mantendo “atenção quase exaltada à menor chance do dia”. Todo o mais é trabalho; e vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo e nada mudou: sou outro e sou o mesmo. Gosto do amálgama do novo ao passado: presente histórico. Presente é uma palavra linda e grávida de sentidos: aquilo que se oferta ao outro, em carinho; o que se diz quando não se está ausente; o tempo – corrente… Continuo menino velho e me orgulho disso. Para o menino novo eu diria: lê!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou natural de Mantena – MG, Zona do Contestado. Pretendo um dia contar minha história familiar, à guisa de Pedro Nava. Assim como muitos dos brasileiros sertanejos, pouco sei de meus antepassados e me encanta pensar num projeto memorialista que transite pela história das Gerais, recuperando aspectos sócio-político-culturais de um tempo não muito distante, nos termos da dualidade entre arcaico e moderno que nos caracteriza enquanto povo.
E gostaria é de ler muito mais do que leio, não me faltarão livros.