Hugo Pascottini Pernet é formado em jornalismo pela PUC-Rio, autor de “Memórias da infância em que eu morri” (Editora Penalux).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa, por volta, das 2h da tarde. As manhãs são lentas, cansativas. Quem foi que inventou esse inferno de manhã? É o que me pergunto quando, por acaso, acordo para ir ao banheiro. Portanto, sigo à risca uma rotina matinal: dormir. Como trabalho em casa, posso organizar meus horários, o que me permite ter todo dia um horário para me dedicar à escrita. Às vezes penso que talvez este seja um dos maiores desafios do artista: encontrar tempo para desenvolver sua arte dentro de um mundo capitalista, que obriga o trabalhador a gerar lucro em menos tempo possível. E como sabemos, pensar, ler e escrever, ferramentas indispensáveis para um escritor, não gera nenhum capital imediato.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou notívago. Escrevo sempre de noite e de madrugada. Nesse horário, enquanto todos dormem, a vida é bela para criar. Não há barulho. Só ouço o tac-tac-tac do meu teclado, com teclas altas, aquele modelo de teclado mais antigo – ligado ao laptop – o qual é indispensável para eu redigir. Ao lado do laptop repousam três copos de tamanhos diferentes: o maior cheio de leite; o médio, matte; e o menor, café. A cafeína é uma droga potente para manter o cérebro concentrado. No entanto, o abuso dessa substância é prejudicial. Por isso, bebo leite, que corta um pouco o efeito da cafeína. Nunca escrevo sob efeito de álcool. A imagem romântica do escritor boêmio, que escreve bebendo vodca, estimulado por um dom divino, é pura lenda. Escrever requer prática, repetição, às vezes um pouco de obsessão. Escrever é transpiração.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todo escritor, artista, é governado por uma criança interior. Quando esta criança morre, o escritor morre junto. Como toda criança, a minha criança interior busca segurança para brincar. Nunca quer fazer os deveres de casa impostos pela escola. No entanto, a mãe sempre explica que se ele não decorar a tabuada não passará de ano. Então obrigo a minha criança a fazer os deveres de casa, o mais rápido possível, para poder brincar o restante do dia. No meu caso, como disse na resposta anterior, para poder brincar a noite e a madrugada toda, estimulada por doses de cafeína. Escrever é uma brincadeira séria. E a criança que mora dentro de mim não consegue passar um dia sem brincar; livre de cobranças e metas. Afinal, acho que é comum as crianças quererem ditar suas próprias regras. Difícil mesmo é convencer os pais de que, às vezes, precisa pular uma refeição ou outra para conseguir brincar mais e, assim, ganhar um jogo muito importante.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto muito desta frase do Affonso Romano de Sant’Anna: “Abrir-se à arte é dar um salto mortal no escuro”. Cada projeto segue seu caminho, se desenvolve, de modo peculiar. Mas algo que notei no meu processo criativo é que não espero “compilar notas suficientes” para começar a escrever. Se eu tenho uma ideia que acredito que possa originar um romance, começo a escrever. Claro que, para isso, faço, antes, um esboço dos personagens principais, dos acontecimentos iniciais, e começo a escrever. Porque sei que depois, provavelmente, vou cortar frases, modificar capítulos de lugar, cortar capítulos. Quando começo a escrever um romance, sei que se trata de um mero rascunho. Então escrevo, cuspo palavras, ideias, sem me preocupar demasiadamente com qualidade. Sei que o texto, ao longo de meses ou anos, passará por diversas análises, visões, revisões, até chegar à versão final. Hemingway dizia: “O primeiro rascunho de qualquer coisa é uma merda”. Concordo. Se me prendo demais ao perfeccionismo no início do projeto, fico travado. Por isso, trabalho de modo caótico, como definiu Affonso Romano de Sant’Anna, como se estivesse com os olhos vendados, sem saber o que virá pela frente. Escrevo e se, de repente, me surge uma ideia, escrevo notas para me esquecer. Essas notas podem ser referentes ao momento presente da narrativa na qual estou submerso, podem ser referentes à parte inicial ou final do romance. É muito comum eu chegar no meio do romance e, de repente, começar a escrever notas que deverão ser encaixadas nas partes pregressas ao que estou escrevendo. O mesmo procedimento vale para a pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou um romancista, um escritor de textos de fôlego. Meus contos não me agradam. Descobri isso com a prática. Descobri também que o escritor deve apostar todo o seu prazer no processo e não no resultado. Ao agir dessa maneira, não existe ansiedade de ter que ser aprovado e amado por todos. Afinal, seu foco, seu objetivo, é gozar com o prazer do processo, é criar personagens, é vivenciar os personagens, é criar tramas, é sentir seu avanço artístico, e não receber aplausos e curtidas. Se você se comprometer em se dedicar a desenvolver um bom trabalho, haverá mais probabilidade de a sua obra ser aceita pelo publico e pela crítica. Ao seguir esse caminho, por consequência, não haverá momentos de procrastinação. Digo isso porque ao escrever meu primeiro livro, quando eu tinha zero leitor, não tinha editora, também não tinha ansiedade ao escrever. (Ao contrário: a escrita diminuía minha ansiedade.) A escrita fluiu como se eu escrevesse um diário qualquer. Por isso tento escrever sempre para mim. Eu serei o meu leitor. Escrevo para viver e vivo para escrever. Certa vez, o aclamado jornalista José Castello perguntou, em entrevista, para Clarice Lispector: “Por que você escreve?” Ela respondeu com outra pergunta: “Por que você bebe água?”. Mas, mesmo assim, a ansiedade e o medo vieram no ato da minha primeira publicação e continuaram comigo no momento de escrever o segundo livro, pois, para mim, eu tinha que continuar agradando aos leitores. Eis a ansiedade do sucesso e o medo do fracasso, que tanto atormentam escritores. Na minha cabeça, eu tinha que manter uma nota alta na avaliação do Skoob. Ganhar muitas estrelas. O que, descobri, é uma grande besteira. Quero, sim, agradar ao leitor, mas é impossível agradar a todos. Se pensarmos em classificação de gêneros dentro da literatura, existirá o leitor que gosta, por exemplo, de alta literatura; outro da chamada literatura de entretenimento; literatura juvenil; literatura jovem adulto etc… Como agradar a todos? Portanto, repito, se o foco do escritor estiver em sentir prazer durante o processo, curtir o processo, a ansiedade de obter sucesso desaparecerá. E, ao mesmo tempo, a probabilidade de o seu livro receber boas críticas e ser procurado por muitos leitores será cada vez maior. Mas se o livro for um fracasso de vendas, não haverá problemas. Até porque, na literatura, a qualidade de um texto não é, necessariamente, proporcional ao número de exemplares vendidos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não existe um número preciso de revisão. Reviso até achar que o livro está pronto, que tem qualidade suficiente para ser publicado. Caso contrário, continuo o trabalho de revisão ou deixo o texto na gaveta. Antes de publicar meus livros (publicarei o segundo neste ano), envio o material para uns escritores de minha confiança. São sempre as mesmas pessoas, que fazem uma leitura crítica e apontam os trechos que gostaram e não gostaram do livro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro sempre escrever no computador. No entanto, se estou fora de casa e me vem uma ideia, anoto tudo no bloco de notas do celular. Tenho também um caderno – que fica ao lado do meu laptop, na minha escrivaninha – no qual escrevo prosas que em seguida serão reescritas no computador. Esse processo geralmente ocorre quando as ideias que serão transferidas para o papel ainda não estão muito claras na minha cabeça. Mas a tecnologia, no meu caso, ganha mais importância na parte da divulgação do meu trabalho, uma vez que uso as redes sociais para postar resenhas sobre meus livros, para falar com leitores, para dar entrevistas (como é o que faço agora), para divulgar meus próximos projetos literários. Sou um escritor cuja divulgação de meus trabalhos ocorre quase cem por cento online. Não dou noites de autógrafo. Desde o lançamento do meu primeiro livro, já recusei convites para falar do meu livro e processo criativo em escolas universidades, grupos de leitura, feiras literárias. Se me perguntar por que esse comportamento, responderei que a imagem do artista, do escritor, é infinitamente menos importante do que a imagem de sua obra. Nesses encontros aos quais sou convidado, não quero dar explicações sobre o que escrevo, sobre o que, de um modo geral, penso sobre a obra. Quero que o leitor se questione ao ler meus livros e chegue, por conta própria, às suas conclusões. Por isso me restrinjo a dar entrevistas apenas por e-mail (como faço agora, com o maior prazer).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem quando estou comendo. Quando estou lendo outro romance. Quando estou assistindo a um filme. Ou até mesmo quando estou respondendo a perguntas de uma entrevista. É como se eu vivesse para isso. Estou sempre atento ao mundo ao meu redor com olhos de escritor. leio livros com olhos de escritor. Assisto a filmes com olhos de escritor. Me locomovo de um lugar a outro com olhos de escritor. Então posso ser surpreendido por uma ideia a qualquer momento. Até dormindo. Sonhos já se transformaram em narrativas. Acredito que é bom não dar tanta importância à necessidade de ter ideias. Não ficar pensando: “Tenho que ter ideias. O que vai acontecer daqui para frente. Se eu não conseguir avançar, tudo o que escrevi não valeu de nada”. Existem pensamento que nos atrapalham ao criar. O ideal é ver o ato de criar como algo natural, sem se cobrar para ser uma pessoa muito criativa. Em seu livro “Sobre a escrita”, Stephen King diz que, mais para o início da carreira de escritor, ele colocou a mesa em que escrevia no centro de seu escritório. Com o tempo, ele começou a perceber que tinha as famosas crises criativas, que só foram curadas quando ele reorganizou o escritório: colocou a mesa em um cantinho bem escondido do aposento. Penso desta maneira: as ideias vêm naturalmente, quando não estou pensando em resultados, quando estou vivendo os momentos mais simples e corriqueiros da vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Pode-se dizer que hoje sou um escritor iniciante, embora comecei cedo a escrever e frequentar oficinas literárias. Publiquei em 2018 meu primeiro livro, e outros dois já estão prontos, em fase de revisão. O que eu diria para mim? Eu diria para eu manter os três P’s: Paciência, Persistência e Perseverança. Me deixaria levar mais por pensamentos e atitudes que menosprezem a razão. Repetiria mais esta frase, que já foi escrita nesta entrevista: “Entregar-se à arte é dar um salto mortal no escuro para que todos vejam”, disse certa vez o escrito Afonso Romano de Sant’Anna. Escritores, artistas, tem que ter a coragem de viver uma vida – pelo menos em certos momentos – longe de padrões. Diria com mais força para mim mesmo que, não, a arte, a escrita, para mim, não é uma profissão, da qual tirarei meu sustento. É sim importante praticá-la diariamente, para isso, é importante saber escolher uma profissão que me permita ter tempo, calma, energia, liberdade, segurança, ou seja, o mínimo de dinheiro para eu dar sequência à minha produção artística. De preferência uma profissão que não sugue todas as minhas energias, principalmente intelectuais. Muitos artistas trabalharam em atividades menos valorizadas e mais braçais, como, por exemplo, Bukowski, que foi carteiro durante mais de dez anos. Diria para mim que preciso entender de modo mais rápido que o artista, escritor, precisa arrumar uma maneira de viver fora da sociedade capitalista, na qual estamos inseridos. O artista, escritor, deve deixar a loucura gritar em seu peito e atender ao seu pedido, por mais absurdo que seja aos olhos de pessoas doutrinadas a seguir hábitos conservadores. Diria, principalmente, para não ter medo do fracasso, nem ansiedade para alcançar logo o sucesso. Me permitiria ser guiado por impulsos, como se escrever fosse a única maneira de me livrar da morte e amenizar um pouco a dor de viver. Concordo com Truman Capote: a vida é muito sem graça. Por isso criamos. Eu diria para eu ler muitos livros de autoajuda do Augusto Cury, só que um Augusto Cury que escreva para escritores, para o ato de escrever, que confirmasse minha tese de que só a escrita, a leitura, a literatura em geral, pode nos salvar. Eu me permitiria enlouquecer. Pois Rubem Fonseca já nos disse: “Escrever é uma forma socialmente aceita de esquizofrenia”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou bem focado na escrita da minha trilogia, “Entre realidade e invenção”. O primeiro volume, “Memórias da infância em que eu morri”, já foi publicado. Gostaria de ler o segundo e o terceiro volumes. Mas ainda não existem. Pelo menos em livro físico. Por ora, este projeto, a trilogia “Entre realidade e invenção”, é o único que gostaria de fazer, e, pela minha obsessão de brincar, já escrevi os três livros. Agora é continuar o trabalho de revisão, sempre com muita paciência, persistência e perseverança.