Hugo Langone é poeta e tradutor, autor de “Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, Confissões e o manejo da literatura pagã”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Por sorte, de um modo um tanto ordinário e repetitivo – e, também por sorte, sem muitas afetações: acordo bem cedo com as crianças – todas elas já bem falantes pela manhã – e lhes preparo logo o que comer. Enquanto comem, ocupo-me da cafeteira italiana, para que haja café para a esposa quando ela chegar à cozinha. Em geral, permaneço com as crianças enquanto ela começa a se organizar e se preparar para o dia que terá pela frente. Então, tomo um banho, como algo e saio a pé para o trabalho, onde ficarei até o fim da tarde, com uma breve pausa ao fim da manhã para caminhar, avenida Alfonso Bovero acima, até a Igreja de Nossa Senhora da Pompeia. Com o tempo, alguns detalhes das ruas, da vida urbana, começam a fazer parte de sua própria vida interior: há certos ângulos preferidos, variações favoritas para um mesmo trajeto…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Durante muito tempo, foi sempre a noite o momento mais propício. Talvez seja até hoje assim: mais dada ao silêncio, ao confronto consigo mesmo, à densidade das palavras, das experiências, ao peso da vida. Por razões circunstanciais, no entanto, a noite é atualmente o momento mesmo do descanso, e assim a questão já não deve ser mais “em que hora do dia você sente que trabalha melhor”, e sim “em que hora do dia é possível encontrar esses momentos de silêncio, de escuta”. Em geral, é possível, aqui e ali, proteger esses instantes – e é precisamente neles que se dá a preparação para a escrita: as ideias e palavras são ponderadas mentalmente, os sons, as imagens ou versos são criados e desfeitos, elementos discrepantes de repente encontram a maneira certa de se unir…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria de poder dedicar este tempo exclusivo, diário, à escrita. Se não me parece propriamente essencial, é por outro lado bastante conveniente: quanto mais se refina uma técnica, tanto mais adequado seu resultado tenderá a ser – ou ao menos serão mais bem aproveitadas as inspirações. Chegará, espero eu, o momento em que isso será possível. Por ora, digo que surgem naturalmente períodos mais concentrados e de maior atenção à escrita, e para que algo saia devo aproveitá-los ao máximo, conservar o quanto possível a tensão.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Muito provavelmente haverá tantos processos de escrita quanto há escritores. No meu caso, prefiro que as notas iniciais tragam uma visão já completa do poema, de modo que o resto do trabalho seja mais refinamento do que descoberta de novos caminhos e rumos. Isso torna o começo muito mais fácil, decerto, mas também exige que, entre as palavras iniciais e o registro no papel, pouco tempo se passe, que sejam dois atos contínuos, prolongamentos um do outro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Gosto de dizer que, após o vislumbre inicial, após a palavra, a expressão ou o som que faz girar a engrenagem do texto, tudo é aridez, deserto, trava. É fácil ir se esquivando diante disso, guardar essa fagulha para depois, dizer que é possível recuperar o momento quando num momento mais conveniente… E esse é o segredo para que se perca tudo. Talvez seja essa a agonia maior, e talvez não haja mesmo solução senão a prontidão: “Ecce ego!” Creio que, com o tempo, fui aprendendo que essa, ao menos na poesia, é a única expectativa que precisa de correspondência.
Quando, no entanto, se trata de projetos longos – tomo por exemplo a elaboração da pesquisa que resultou no “Chorar por Dido é inútil” –, a ansiedade deve se dar por falta de ordem, de uma visão organizada do todo. Fosse um jogo, a ordem triunfaria sobre a ansiedade em quase todos os casos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis vezes, procurando encontrar a sonoridade mais solene, a pausa mais densa – ou mesmo a cisão mais abrupta, quando é o caso. Mas a verdade é que chega um momento em que é preciso dizer: “Sim, está pronto.” E então não me atrevo a voltar a verso nenhum, de modo que permaneça a sensação de que estava como deveria estar.
Quanto a mostrar os trabalhos… Bem, não posso dizer que não cheguei a mostrá-los a um ou outro; ao mesmo tempo, estaria mentindo se dissesse que esperava, ao fazê-lo, alguma crítica, algum apontamento que me levasse a reconsiderar ou aprimorar isto ou aquilo. Parece que, no meu caso, essa partilha serve mais como demonstração de certa estima do que como convite a uma espécie de “diálogo construtivo”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O ímpeto inicial, comigo, deve ser sempre registrado à mão, bem como as primeiras associações de palavras, ideias e sons. A da mão – gosto de usar caneta-tinteiro ou mesmo lápis – é a velocidade mais adequada, a dinâmica mais conveniente, para esse primeiro momento. Uma vez extraída essa pedra, consigo lapidá-la sem nenhum problema no computador – e chego mesmo a achar muito melhor assim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De algumas bagagens acumuladas, penso eu: bagagens de leitura, de certas experiências interiores, do cultivo de alguma observação de si mesmo e dos outros. Não sei se seria possível ter outra matéria-prima numa obra de poesia ou ficção genuína. (Tampouco sei se estaríamos certos em dizer que vêm daí as ideias, pois na poesia a fagulha inicial chega como um som, uma frase, um brado sem muita origem, e então começa a tatear em busca dessas bagagens que lhe fazem companhia.)
Agora, me parece que o melhor hábito para que tudo isso venha e permaneça é o cultivo do silêncio sem distrações, do tempo consigo mesmo. E também abrir volumes de certos autores sem muito rigor ou compromisso, como se para receber uma lufada de ar fresco.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que tenha mudado menos o processo de escrita propriamente dito do que seu pano de fundo: uma vez identificado que escrever, em alguns casos, é questão de fidelidade à própria vocação ou à própria consciência, o autor se sente menos vulnerável a pressões externas – de publicação, de aprovação, a que for.
Ao Hugo Langone que lançou “Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito”, eu diria o mesmo que repito hoje: paciência e constância, paciência e constância, paciência e constância.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eis duas perguntas cujas respostas têm graus de dificuldades bem diferentes. À primeira, mais fácil, digo que, terminado agora um segundo volume, inédito, de poemas, gostaria de me dedicar a um romance. Há já uma ideia na cabeça e umas notas esparsas, mas ainda nenhum fôlego. Espero que venha – e que traga consigo a disposição para redigir também alguns artigos sobre temas que me são mais caros, sobre outros autores e livros.
Por outro lado, há esta segunda pergunta, de resposta impossível. “Nada há de novo sob o sol”, e portanto os temas essenciais já foram tratados: estão sempre presentes, como protagonistas ou à espreita. Talvez o que de maior pudesse almejar fosse ler o livro definitivo. A obra última sobre a beleza. A obra última sobre o homem. Mas isto não seria nada além de mais um sintoma desta sede humana de absoluto.