Hermes de Sousa Veras é antropólogo e escritor, doutorando em Antropologia Social (UFRGS).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
É difícil pensar em uma rotina desde 2020, a pandemia continua conosco. Mas sempre alternei bastante a rotina, a depender do projeto que estava me consumindo. A minha rotina ideal seria me levantar disposto. Mas tem tempo que não consigo nem isso. Então alterno entre um lampejo do ideal e a realidade, que é acordar já pesado e atormentado pelos prazos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho em qualquer horário. Na parte acadêmica, por exemplo, já foquei alguns períodos de escrita da minha tese em todos os turnos possíveis. Tudo depende de como me encaixo na rotina da casa onde moro e também com a outra casa, que sou eu próprio. Quando ajusto minha consciência com o ambiente e me engajo no presente, consigo escrever literatura. Ela acontece em qualquer momento. Os contos, faço de maneira intermitente. Vou anotando as ideias em aplicativos de notas e desgasto essas ideias e textos no word. Assim estou escrevendo o Fricções, que é meu livro de contos que está incubado desde 2016 e ainda está em processo de escrita, já matei alguns contos e vou criando outros. Os microcontos, escrevo de acordo com as imagens do meu cotidiano, da mesma forma é a poesia. Na verdade, a poesia tem algo diferente. Não é misticismo de poeta não. Já tentei deixar o meu processo de escrita poética mais consciente, porém não consigo. Adoro estudar poesia e dialogar com colegas de escrita: nesse caso, é um presente fazer parte do coletivo de poetas da Fazia Poesia. Mas mesmo assim, minha poesia é inesperada. Não é inspiração: ela surge do vivido, a partir de conexões com outras leituras e referências, mas ainda assim, é inesperada. Tanto que cansei de deixar poesias escritas em livros acadêmicos, enquanto os lia, em cadernos, durante as aulas, ou no meu próprio diário de campo, quando passava a limpo alguma experiência de pesquisa. Isso não significa que queira trabalhar poesia sempre assim. Tenho vontade de seguir, às vezes, os passos de João Cabral. Ele tinha toda a estrutura do livro: os temas das poesias, os tamanhos do poema. Depois preenchia. Parece um método e tanto.
Já as crônicas, como tenho que enviá-las semanalmente para os assinantes da minha newsletter, um mensageiro, passo a semana pensando nelas. Qual será o assunto da vez? Fico angustiado com isso até ela existir. Quase sempre as escrevo de uma vez só. Tenho uma rotina e ritual específicos para cada tipo de escrita. Para escrever antropologia, isto é, a minha tese e artigos científicos, tenho feito uma planilha de horas a cumprir, dividindo o tempo para transcrever entrevistas, ler bibliografias e escrever de fato.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro não ter uma meta. Mas sei que preciso escrever por diversos motivos. Como disse, tenho que mandar uma crônica por semana, alimentar um perfil de microcontos autorais, além disso, envio mensalmente um conto inédito para os apoiadores da Bodega do Hermes, uma forma que encontrei para incentivar a minha escrita e me convencer de que sou escritor. Somado a isso tenho meus compromissos como poeta na Fazia Poesia, que é um portal de poesia contemporânea. E a tese. A temida. A que toda vida olha para mim e pergunta: você vai me concluir? Duvido. Se for, aposto que será um lixo. Essa daí eu crio, sim, metas de ao menos uma hora de escrita diária. Se for para tentar responder de maneira mais direta, digo que escrevo quase todos os dias. Nem que seja com a minha cabeça.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Por muito tempo fiquei vivendo em um princípio de corte. Explico melhor. É como se eu tivesse separado a minha vida na escrita entre a antropologia e a literatura. Fiz de tudo para não misturar os dois. Mas aí percebi que estava perdendo o bacana do processo todo. Pois convivo entre esses dois mundos, ambos ecléticos, porém herméticos, o da literatura e o da antropologia. Vi que a antropologia, para a minha literatura, contribui trazendo a valorização da diversidade, do reconhecimento das opressões e violências que atravessam nossa sociedade e dos processos de alteridade como constitutivo para qualquer coisa que faço. Só me interessa tudo que não sou eu. E só assim posso ser um eu, é um clichê, mas funciona. Já a literatura traz para a minha antropologia um senso estético, o prazer da leitura e a ampliação das vozes. Para a minha escrita é sempre fundamental um pouco de pesquisa. Bebo de tudo que leio e pesquiso para produzir meus textos. No aspecto da antropologia, isso é mais evidente, só depois de bastante trabalho de campo, conversas e mais conversas, leituras em cima de leituras, que consigo escrever alguma coisa. Isso acaba me impedindo de começar, às vezes. Para a literatura, não acho difícil começar, continuar em um projeto de mais fôlego é que é o problema: criar alguma coerência nos diversos registros que produzo. O que me trava às vezes é a insegurança. Não só por questão de me achar aquém, mas por saber que existem tantas vozes e perspectivas que fico me perguntando que tipo de contribuição posso ter, o que mais um cara como eu tem a dizer. De qualquer forma, geralmente lembro que melhor do que dizer, é expressar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A escrita pode ser pensada como uma batalha, uma dança, um ato sexual, enfim, cada pessoa que escreve gosta de criar uma imagem dessas. Acho que escrever é travessia. Movimento, de qualquer forma. Então quando estou travado, paro um pouco e depois tento seguir. O prazo nem sempre tem sido um muso inspirador. Sofro bastante com ele, em relação ao trabalho acadêmico. Na literatura, não passo por nenhum problema do tipo. Se não tenho livro publicado ainda, é por outras razões. Não encontrei o formato de algumas histórias e gosto de experimentar. Mas percebi que alguns colegas de escrita me consideram, no momento, alguém fora do jogo. Eles dizem: depois da tese você vai escrever. Pois sabem o quanto uma tese consome do nosso tempo. A questão é que não consigo esperar, então mesclo as duas escritas. Quando não está dando certo e estou travado na escrita acadêmica, vou assistir a alguma coisa, ouvir música, ler o trabalho de alguém que me inspira. Na literatura, dificilmente falta a vontade de escrever. Em cada leitura sinto vontade de reagir e fazer a minha própria história. Quando começo é que vêm todos os demônios já citados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Queria escrever de uma vez, para depois revisar. Mas não consigo. Fico voltando para cada linha, cada parágrafo o tempo inteiro, revisando para que o texto fique minimamente aceitável para mim. Quando termino, espero algumas horas, se possível, dias, e retorno a revisar. Depois mando para algumas pessoas que sempre leem primeiro meus textos, quando elas podem, que é a minha companheira e uma amiga do tempo da graduação; tive sorte de ela ter virado a revisora da minha newsletter e da Bodega. Atualmente, retomei o contato com mais afinco com alguns integrantes do grupo literário que participei por mais ou menos seis anos, o Grupo Eufonia de Literatura, então trocamos nossos textos por lá. Como sou muito coletivo, estou me juntando com a turma da revista Escambanáutica, o pessoal lá é bem engajado na escrita e todo mundo lê e comenta o texto de todo mundo. Na poesia, quase sempre envio para o Alex Zani, o editor chefe da Fazia Poesia, ele tem sido o meu primeiro leitor. Está sendo uma aventura e tanto, para o meu processo, dialogar com esse pessoal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase sempre, 99% das vezes, escrevo logo no computador. Deixo salvo nas nuvens. Só quando estou com um caderno pertinho ou fazendo alguma anotação, que vem um pedaço de conto, uma poesia, ou até mesmo um trecho da minha tese. Como ganhei uma máquina de escrever, escrevo algumas coisas por lá para experimentar. Gosto de brincar com as múltiplas possibilidades que temos. Meus minicontos, por exemplo, quase todos escrevo no celular. Mas se for para dizer como escrevo, é batendo em teclado mesmo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Elas certamente devem vir de algum lugar, se conectam com o meu vivido e fazem acontecer alguma coisa quando estou escrevendo. Como já disse, muitas das minhas ideias vêm com a minha experiência como antropólogo. Faço pesquisa de campo (na verdade, é algo mais profundo do que isso, mas deixemos assim) entre comunidades de terreiro na Amazônia paraense. O meu mestrado foi em um terreiro de Mina Nagô em Ananindeua, região metropolitana de Belém, e a minha pesquisa de doutorado é sobre a encantaria de Rei Sebastião, vivenciada em São João de Pirabas, uma cidade do salgado paraense, banhada pelo oceano atlântico. A religião, portanto, marcou muito a minha vivência e escrita. No início, essa influência foi negativa. Vivi em casa uma guerra santa entre a umbanda e o neopentecostalismo, então neguei as duas religiões. Queria outra coisa para mim, e como cursei Ciências Sociais, não fui muito diferente do clichê cientista social ateu. Atualmente me sinto muito mais confortável ao lado das encantarias indígenas, das religiões de matrizes africana e das experimentações e resistências do povo negro e periférico. Como branco, atualmente consigo entender melhor o meu lugar nesse sistema de opressão e tento pensar a branquitude como mobilizadora do racismo. Isso tudo vaza na minha literatura. Mas não somente: além disso tem as diversas influências na poesia, música, cinema e televisão, enfim, no caos que o século XXI tem a oferecer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu mandaria o Hermes do passado ser menos preguiçoso e descuidado. Escrevi algumas coisas quando era mais novo, mas perdi tudo por conta de computadores que morriam. Minha casa em Fortaleza não era forrada, as telhas sempre tinham alguma brecha e a umidade e água da chuva, no inverno, ajudavam a destruir a CPU do meu computador. Isso aconteceu da mesma forma com cadernos e livros. Se eu tivesse continuado a escrever sem as interrupções que vivenciei por causa dos acidentes, mas também por conta do meu desapego com o que rabiscava e digitava, acho que teria uma escrita mais consistente. Há algum tempo tenho tentado me profissionalizar na escrita. Para isso, faço o que posso. Comprei o curso online do Marcelino Freire (na época, final de 2019, estava morando em Porto Alegre, por conta do doutorado), e durante a pandemia e com o boom das atividades online, acabei cursando algumas oficinas de escrita. Não tenho nada contra o presencial, até prefiro, mas como me mudei algumas vezes por conta dos estudos, acabou sendo difícil criar raízes em qualquer cidade e fazer parte de algum solo literário. Então fiz oficinas com Débora Gil Pantaleão, Márcia Barbieri, Anna Clara de Vitto e, como meu conto venceu o primeiro concurso literário Pintura das Palavras, ganhei uma bolsa de estudos para o curso de escrita da Vanessa Passos. Todas essas experiências me colocam em comunicação com outras escritas.
Tenho uma boa relação com as oficinas, acredito serem bons lugares para experimentarmos nosso ofício. É uma oportunidade para aprender e desenvolver aspectos mais técnicos. Acho essa a principal qualidade das oficinas, são lugares para criar a nossa galera, o nosso bando, como diz o Marcelino Freire. O que mudou no meu processo foi a consciência dele, antes eu só escrevia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Vou falar dos projetos que estou tentando executar, pois acho que já existem muitos livros no mundo… acho implausível que não exista algum livro que eu queira ler. Se eles não me chegaram ainda, isso é por outras razões, provavelmente por injustiça.
Quero ver minha tese pronta, estou batalhando para que isso aconteça. Quero ler o Fricções completo, mesmo que com outro título, um livro de contos que trata de narradoras e narradores, personagens geralmente localizadas em Fortaleza e em Belém, mas com alguns em Porto Alegre, que passaram por experiências de conflitos tremendas que modificaram suas vidas. Cada uma a seu modo. A premissa não tem nada de incrível, mas foi o que deu para escrever. Também quero ver o Formas Veladas, um livro de poesia que concluí há pouco, pronto e impresso. Esse livro é uma viagem pelo processo poético, marcada entre a casa da palavra (a poesia) e a minha eterna casa, que é a Fortaleza da minha infância e adolescência. Mesmo se eu nunca mais voltar para lá, nunca terei saído. E estou borrando no papel uma novela, mas essa já é uma outra história.