Hércules Martins é poeta e romancista, autor de “Unha e Carne”, “Vaso Chinês”, entre outros.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sono pela manhã. Deito tarde, quando raia o dia. Acordo tarde; nunca antes das 10:00. Mesmo antes de minha aposentação jamais houve cobrança, pois minha produtividade e resultados não dependiam de horário.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre escrevi sem rito. A noite é meu reduto. Ando na noite tanto em meus pensamentos quanto fisicamente. Minha primeira relação com a escrita foi por meio da leitura. Logo pela poesia, que ouvia da boca de meu pai, madrugada adentro. Mais tarde, o romance. Escrevo novela (e morro de medo de contos – acho difícil) com confessada influência dos meus indutores – livros me inspiram –, sem rotina. É também depois da tarde que escrevo temas sobre a área ambiental, depois de já haver lido as notícias. Tenho alguns livros sobre aquecimento global (que eu próprio editei há alguns anos, dada a minha militância aqui e lá fora).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou um empreiteiro da palavra. Quando começo um livro (que não seja de poesias), vou fundo em pesquisas e ambientação. Fui treinado bem cedo a dar o máximo de mim (sou advogado) para tentar convencer; conferir verossimilhança àquele tema a que me proponho ou me foi proposto. Não paro enquanto não ergo ou destruo – parafraseando Caetano.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando ocorre uma história ou uma lembrança que pode me levar a uma história, dou passos ao rumo exordial: ao começo. E daí quem manda em mim é quem de mim exulta euforia de crescimento: meus personagens e seus microcosmos. Sem esquema. Alguns autores influenciaram muito minha escrita. Não estou com isto a dizer que escrevo sob tais influência tão somente, ou que tenha feito alguma coisa pelo menos próximo delas, mas bebi e bebo muito dali. O Graciliano, o Hesse, o Gabriel García Márquez, o Faulkner, Camus e Machado de Assis são mais comezinhos (sempre vejo algo deles no meu texto). Na poesia fico doido ainda hoje com Vinicius, João Cabral de Melo Neto, Augusto dos Anjos, Pessoa, Kaváfis, Pound, Leminski, Adélia Prado, Hilda, Gullar e uma imensidão de outros; imperdoável não me lembrar agora. Sou leitor compulsivo; a ponto de, às vezes, a leitura tomar de mim a ocupação da escrita em curso – eis que paro de escrever e vou ler para roubar inspiração ou desvio de rumo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tem nada disso comigo. Escrevo quando escrevo. E quando faço, sai. E se sento, sai e fica falando comigo; é como uma música. Tenho preguiça de projetos longos (por isso faço poesias – geralmente curtas – e novelas); longa já basta a vida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Todo dia de cada projeto. Muitas e muitas vezes. Rasgo tudo se depois de concluído me ocorre de dormir gostando e acordar odiando. Impulsivamente o faço. Tenho três musas que me socorrem eis que severas, competentes e exaustivamente arrelientas com o meu texto (Kyanja Lee, Karla Lima e Lúcia Facco). Tornaram-se minhas amigas de anos, mas não alisam o texto. Dizem o que tem de ser dito e quando elogiam é com uma honestidade que a mim me soa como um prêmio. Confio muito nelas e nada meu sai antes que elas, além de outros mais, me digam se dá para ser aquilo a que me proponho. E tem até hierarquia entre elas sob meu ponto de vista – que me reservo aqui de demonstrar a escala. Sou muito inseguro com o produto final. Caso não lance, estou sempre mudando; às vezes para pior como já observado algumas vezes por alguma delas. Enquanto me aturarem, acho que permanecerei no pé dessas editoras, críticas e revisoras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Tenho tudo em todos. No portátil, no do escritório comercial, no do escritório de casa. Uso e-mail para mim mesmo como forma de manter o texto em todos, pois não sou nada bom com esses aplicativos das nuvens. Toda vez que encerro um período de produção, envio um para mim mesmo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vi e vivi coisas demais comparado aos que me cercam. Viajei demais pelo mundo. Sonhei demais. Perdi demais. Ganhei sobremaneira. Sofri perseguições. E enquanto tudo isso ocorria comigo, eu percebia também o mesmo ocorrendo com as pessoas em igual, menor ou maior intensidade. Percebi cedo que tudo e todos têm uma história. O que mais me assusta no mundo são as maldades comuns aceitas, repetidas e até exaltadas. Meus livros são doces. Até a amargura de meus personagens é doce. Não obstante eu ser um homem espiritual, tento despertar, sem panfletagem ou superioridade, o melhor do pior em cada personagem. O fracasso produtivo dos meus personagens vira força. Quem leu sabe disso. Detesto parecer blasé, ou piegas, tudo tem que ser sutil e elegante sob qualquer matiz. Os marginais dos meus livros são para mim apaixonantes. Por isso os deixo partir para o mundo. Escrevo como uma mulher ou como um homem. De resto é orientação que o próprio personagem escolhe ser. E o leitor é que se vire. Não sou refém do leitor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou. Mudará. Como já disse, aprendi muito com minhas amigas. Elas são fogo. Ensinaram-me muito. Ensinam-me muito. Lendo também aprendo todo dia. Li há pouco dois livros do Mia Couto e vi muito neles. Estou lendo aquele rapaz novo, o Itamar Vieira Junior, que está me despertando coisas. O Milton Hatoum foi outro. O Chico Buarque – de quem sou fã na música e na literatura – sempre me inspira. A Karla Lima tem um livro que me ensinou muito sobre elegância na escrita: “Minha vida de brinquedo” – aprendi muito e gosto (já até reli). Mas, segundo o que tenho ouvido, sou dono de um estilo forte que, com certeza, não é estanque. Por enquanto não pretendo aliviar para o leitor que assumir coragem em ler meus livros. Apenas garanto que terá contato com algo diferente, tanto no texto quanto no estilo. E torço para gostar. Mas estou aberto a mudanças.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Certo livro, sobre um tema antigo, que está minando meu pouco sono. Quanto ao livro que gostaria de ler, acho que tem tanta coisa boa já escrita no mundo (e jamais vou ler). Gostaria de ler mais coisas como as coisas boas que já li.