Henry Burnett é compositor e professor livre-docente da UNIFESP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa cedo. Acordo às 6h, preparo o café meio rápido porque meus dois filhos precisam chegar na escola às 7:30. Tomamos café juntos e, depois que eles saem, e que eu cumpro uma rotina básica de atividades físicas, tenho então um primeiro período livre de mais ou menos 3 horas, que divido entre a leitura de alguns jornais e leituras outras, estas em geral ligadas a projetos de pesquisa em andamento. Depois escrevo até a hora que vou busca-los. É uma rotina bem marcada, sem dúvida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral pela manhã, mas não é uma regra. Na verdade, trabalho nos intervalos do cotidiano familiar, que é bastante puxado quando se tem filhos ainda crianças, por isso oscila muito o tempo que tenho para ler e escrever. Procuro me adaptar a essa inconstância e acho que encontrei nessa dinâmica um rumo que me permite manter a produtividade sem perder os bons momentos da vida. Ritual de preparação não tenho, mas escrevo todos os dias um pouco, é uma forma de manter as publicações obrigatórias em dia. Nesse período matinal, normalmente, é quando consigo escrever mais calmamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim, escrevo um pouco todos os dias, isso é uma tarefa que tento manter rigorosamente. Estabeleço uma meta, mas não é um cavalo de batalha que me oprima e impeça de fazer outras coisas. Algumas vezes acontece de precisar viajar, participar de bancas, videoconferências, e então não há como manter a cota de escrita diária. À noite eu utilizo para ler literatura, tocar, escrever coisas outras, distintas das que faço especificamente na pesquisa acadêmica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho pelo menos 3 processos de escrita distintos: um acadêmico, relacionado à minha atuação como professor e pesquisador, no qual produzo material para artigos e livros, e também para eventuais colaborações com revistas e portais de intervenção pública. Outro processo é como compositor, ligado às canções que escrevo e, por fim, um terceiro, bissexto e diletante, como escritor de prosa. A pesquisa em Humanidades, e em filosofia particularmente, minha área de atuação, é muito solitária. Leituras diversas, troca de ideias com alunos e orientandos, a música, o cinema, tudo isso gera ideias para a escrita. É um trânsito que acontece a partir de um conjunto de informações e que chega na escrita de várias formas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em geral tenho alguma facilidade para escrever, por isso foram poucos os momentos onde enfrentei travas na escrita. Pontualmente, me recordo de ter encarado algo assim no final do doutorado, problema que eu sanava lendo Sete aulas sobre história, memória e história, da minha ex-professora Jeanne Marie Gagnebin; admiro muitos acadêmicos, mas não conheço ninguém que escreva como ela e, é bom dizer, o português não é sua língua materna, o que sempre que deixou impressionado. Seu livro era uma fonte naquele momento. Quando eu tinha qualquer tipo de bloqueio, lia um dos seus belos ensaios e tudo se abria, nunca falhou. No caso da feitura de canções tenho períodos mais férteis e outros mais secos, mas há sempre alguma regularidade. Somente no terceiro âmbito de escrita, a dos textos em prosa, enfrento alguma ansiedade, mas como se trata de um exercício, menos que uma atividade regular, não me preocupo, porque não tenho que entregar nada a ninguém, chegar a lugar algum ou sequer ser lido, tudo isso resulta numa atividade mais lúdica que profissional.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Novamente preciso separar os estilos. No caso dos artigos e livros escrevo devagar, em média uma a duas páginas por dia, por isso os textos já são escritos com bastante cuidado, isso dispensa maiores revisões. As canções obrigatoriamente passam por um processo de elaboração e reelaboração desde os primeiros versos, e podem passar meses sendo mexidasquando não saem de primeira, algo que também não é raro. Somente os textos em prosa passam por revisões e reescritas muitas vezes sem fim, porque nunca acho que estão suficientemente bem-acabados. Mostro os trabalhos antes de publicar ou gravar, em geral para poucas pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Artigos e livros acadêmicos sempre diretamente no computador, canções sempre à mão e meus exercícios prosaicos das duas formas. Gosto de escrever à mão, sobretudo quando estou viajando, compondo em locais diferentes, longe do conforto de casa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Embora eu tente manter alguma reserva de criatividade, estilo e fluência nos textos acadêmicos, temos um limite invisível que é preciso obedecer. Eu escrevo constantemente perto desse limite, quase infringindo-o, o que também constitui para mim uma tarefa. Se tenho algum sucesso é outra história. Escrever com estilos diferentes não deixa de provocar alguma estranheza e reflexão, e também nos faz pensar sobre os limites entre ficção e realidade. Muitas vezes penso provocar um curto-circuito nesses limites, escrevendo artigos mais ou menos ensaísticos e canções atravessadas pelo real, ou pela rudeza dos enfrentamentos cotidianos, mas tudo é muito intuitivo em todos os processos, há sempre um desvio que resulta de minha impossibilidade de adequação em todos os estilos de escrita onde me arrisco. O mundo já é suficientemente belo e insano, não precisamos cultivar hábitos excêntricos para escrever. E resta dizer o óbvio: escrever o que quer que seja para mim é muitas vezes um processo que se desprende das minhas leituras e do que eu ouço. Sempre prefiro ler e ouvir o que admiro, mas a sedução de se aventurar nesses gêneros é o que faz da vida algo digno de ser vivido, independente do alcance do que fazemos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sem dúvida o cuidado em não querer escrever muito e publicar tudo, aprender a descartar o que não me satisfaz suficientemente. Somos inundados por textos de todas as naturezas, o tempo inteiro, acrescentar algo a toda essa monumental atividade já é suspeito, o risco de dizer nada é sempre muito grande. Eu tento lapidar meus textos, mesmo os que publico em revistas científicas, onde, em geral, estilo não é algo muito preocupante. Nas canções e na prosa já é uma obrigação tentar levar o texto ao máximo da expressão e do acabamento. Revisitar textos na ânsia de “corrigi-los” não é algo que eu faça. Acho que escrever não é apenas uma questão de talento ou vocação, talvez essas condições sejam as mais frágeis. Escrever também é desenvolvimento, aprimoramento pessoal, incorporação de leituras maduras, enfim, escrever é movimento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A prosa de ficção é uma paixão, isso talvez me leve ingenuamente a tentar escrever algo nessa direção, mas como eu disse essa é uma atividade lúdica, algo que me distrai mais do que me mobiliza. Já publiquei um livro chamado Endereço inexistente no sistema de e-books da Amazon, depois de submete-lo a bons leitores. Uma reunião de narrativas breves que ora gosto, ora desgosto. Algumas semanas depois de entrar no ar, “despubliquei”, num momento de desgosto e um pouco de vergonha. Mas sigo escrevendo esses textos curtos, acho que às vezes acerto o ponto, mas vou deixando decantar sem pressa, mexendo constantemente neles a cada releitura. É quase uma brincadeira com as palavras, embora muitas dessas narrativas mobilizem fatos memorialísticos, sendo, portanto, autobiográficas. Acho que esse seria um projeto que embora começado parece impossível de encontrar um bom termo, que me agrade como leitor. Sobre livros que não existem não saberia o que dizer, acho que existem até livros demais no mundo, e pouca vida para lê-los.