Henrique Duarte Neto é poeta, doutor em Literatura pela UFSC.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo sempre por volta de 05h30min da manhã. Gosto de primeiramente olhar meus e-mails, dar uma olhada rápida em alguns portais de notícias para ficar por dentro dos últimos acontecimentos nacionais e mundiais. Às 06h30min acordo minha mãe (moramos apenas nós dois, em uma casa simples e funcional, aqui no interior de Santa Catarina) e tomamos o nosso bom café. Depois me entrego ao meu trabalho Home Office.
Aliás, respondendo a segunda parte da pergunta, minha rotina matinal mudou muito devido à Pandemia. Sou Agente Técnico da Prefeitura do meu município, Taió, uma pequena mas bucólica cidade (fonte inspiradora de alguns de meus poemas) aqui do Alto Vale do Itajaí e, como sou hipertenso, fui dispensado do trabalho presencial no meu setor, que consiste em responder por todo o arquivo de documentos das antigas escolas isoladas do município, coisa que para os leitores aí de São Paulo e das grandes cidades do país pode soar algo estranho ou inusitado.
O fato é que estou a quase um ano trabalhando em Home Office. Assim, sobra mais tempo também para eu realizar meus projetos, ou seja, dar vazão à minha atividade de escritor. Gosto de escrever também de manhã, mas não diria que tenho uma rotina ortodoxa nesta parte do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes da Pandemia o meu melhor período de trabalho intelectual e poético era o noturno, entre 19h00 e 22h00 mais ou menos, pois não ocupava os outros dois períodos em virtude de estar trabalhando na Prefeitura, com exceção dos sábados e domingos em que a escrita deslanchava. Agora com esta flexibilização do trabalho ficou mais fácil realizar minhas pesquisas e projetos. Mas não diria que tenho um período preferencial, quando estou muito inspirado e, muitas vezes, isto ocorre nos finais de semana, como nos diz Maurice Blanchot, em O espaço literário, o escritor tem impressão que não vai parar de escrever (e também eu experimento a sensação da criação quase sem limites). Mas, claro, o próprio poeta e crítico literário francês, cuja obra muito admiro, é enfático ao colocar que toda obra é um recorte, um recorte no infinito tecido da inspiração. Daí, penso eu, que um livro que tanto nos causou prazer no seu processo de escrita, venha com certo amargor depois de concluído, visto que neste processo temos o sabor do ilimitado, mas com a conclusão da obra, com o livro, coloca-se um freio a tudo isto, o limitado. Com muitos dos meus livros eu tive esta sensação.
Sobre se tenho algum ritual, talvez haja um sim. Gosto muito de música. Gosto de escrever tendo ouvido antes algum compositor ou mesmo escrevendo ao som de uma sinfonia, um concerto, uma sonata. Gosto especialmente de Mahler, Chopin, Vivaldi, Rachamaninov, Prokofiev, Shostakovich, Mozart, Villa-Lobos, Ravel e mais alguns outros.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro escrever sempre. Mesmo que seja apenas um e-mail. Aliás, considero o e-mail, quando dirigido para um amigo, no mesmo pé de igualdade de uma carta. Portanto, deve ser bem tecido, com zelo, carinho e paciência. Isto não quer dizer que tenha que ser imenso. Mas procuro fugir das mensagens vazias e insignificantes. Alguns poderão ver nisto perda de tempo. Eu penso que há além de respeito, um exercício de escrita.
Mas há também, fora dos períodos em que estou escrevendo poesia e crítica, os momentos de abastecimento, em que leio muita coisa e em que procuro registrar estas informações – também aí uma forma de escrita.
Como não estou na universidade, não tenho prazos a cumprir, e isso torna minhas leituras e minha escrita mais prazerosas. Talvez justamente por isso, escreva um livro em períodos relativamente rápidos, Provocações: 26, meu livro com poemas em prosa, saiu-me todo em menos de duas semanas. Foi como a liberação repentina de uma grande concentração de magma vulcânico, como a explosão do Krakatoa em 1883, um acontecimento para mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como afirmei acima escrevo geralmente de maneira célere. Geralmente, a partir de minhas anotações, começo sem entraves com o texto propriamente dito. Isto basicamente na parte de crítica literária. Já na poesia é algo mais complexo. Depende de um espontaneísmo muito mais evidente. Tanto que no caso dela reelaboro muitas vezes expressões, versos ou períodos depois de uma primeira versão.
No caso da articulação entre pesquisa e escrita o movimento que realizo segue etapas bastante simples e básicas: primeiramente, o levantamento bibliográfico; em seguida, a leitura e fichamento do arcabouço teórico; depois a elaboração dos pontos consonantes e dissonantes; até, por fim, chegar ao processo propriamente de escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É muito raro para mim as chamadas travas da escrita, tanto que Denise, mãe de meus filhos e minha melhor amiga, diz que admira sobremaneira o meu poder de escrita. Talvez porque, quase sempre, em toda a minha trajetória, eu tenha escrito sobre assuntos que me dão prazer. E, neste sentido, posso dizer: devo tudo à poesia! Ela é minha maior paixão, ao lado da música. Quase todos os meus artigos e todos os meus livros tem-na como foco. Nos vários livros que escrevi,abordei somente a poesia de autores como: Augusto dos Anjos, José Paulo Paes, Ferreira Gullar, Roberto Piva, Claudio Willer, Ricardo Lima e, agora, no prelo, Tarso de Melo. Mas de tanto ler a poesia alheia, produzi também a minha: Musas seguidas de poemas filosóficos (Insular), Provocações 26 (Kotter), 34 pequenos exercícios poéticos (Primata). Agora, estou prestes a acertar com uma editora a publicação de mais um livro de poemas, ou melhor, de uma tríade de livros reunidos em um único, o 3 em 1. A poesia me encanta muito mais que outros gêneros literários como o romance, o conto, a crônica, porque apesar de nestes últimos haver a possibilidade do salto, da inovação, da iconoclastia, é a poesia, me parece, o espaço por excelência da revolução da palavra, até do seu dilaceramento como nos ensinam autores tão diversos como Octavio Paz e Emil Michel Cioran.
Por outro lado, posso dizer que não tenho problemas com a envergadura de meus projetos, visto que eles não costumam ser longos. O maior deles, até aqui, é este que está prestes a sair pela editora Kotter, o livro Tarso de Melo: entre a perspectiva ontológica e a abordagem social, livro que possui pouco mais de 150 páginas. Mas mesmo que meus projetos não sejam longos, é claro que tenho receio de não corresponder às expectativas, principalmente do leitor mais abalizado, que, quer na poesia, quer na crítica, tornou-se um grupo seleto. Afinal, quem gosta de ler poesia contemporânea nos dias de hoje? Na maioria dos casos somente poetas e críticos. Em grande medida poetas-críticos. E isso corresponde a algo não muito antigo, coisa de 50 anos para cá, talvez mais uma das heranças funestas da ditadura militar – o divórcio entre o leitor comum e a poesia feita pelos contemporâneos. A verdade é que o nicho da poesia de hoje está mais nas universidades e nas revistas literárias. Que se em muitos momentos são importantíssimos para o afloramento de novas tendências e dicções na cena poética contemporânea, em outras circunstâncias tendem a promover mais o cânone do que a diversidade. E como o diverso, o múltiplo, o ambíguo faz bem para a poesia! Como expus em um aforismo de Provocações 26: “A ambiguidade no campo da poesia é muito menos um problema do que uma solução”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso várias vezes meus textos, pois enquanto eles não estão materializados em forma de livro ou artigo científico estou sempre mexendo em algum detalhe deles. Isto pode ter relação com uma tendência ao perfeccionismo, por um lado, e com certa insegurança, por outro. Por isso mesmo, não só faço estas revisões como peço para um ou outro amigo dar uma olhada no texto. Estou sempre aberto a opiniões, já que não vejo o autor (quer seja o crítico e mesmo o poeta) como este ser alado, pois ele está inserido na sociedade, embora, como nos afirme Octavio Paz, haja um aspecto inaugural no advento do poema, do verdadeiro poema, que mais tarte vai-se reinserir no seio da sociedade, na linguagem da tribo. Penso que, desta forma, são sempre bem-vindas as contribuições de leitores, fundamentalmente dos pares, a saber, outros poetas e críticos, ou pelo menos de professores que estejam gabaritados para fruir e analisar este gênero.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia já não é mais tão precária como em tempos passados. Eu já não sou mais aquele dinossauro que penava deveras com as novidades do ciberespaço. É bem verdade que há muita coisa, no domínio das redes sociais, que me são desconhecidas. Mas estou evoluindo gradativamente, como a maioria das pessoas que na adolescência viveram sem computador e outras maravilhas tecnológicas.
Sobre minha forma de escrita ela costuma seguir o seguinte padrão: no caso dos ensaios e artigos, os fichamentos costumam ser manuscritos, mas o texto propriamente dito (dos esboços até a versão final) é digitado no computador por mim. Já os poemas, costumo escrevê-los direto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No caso da poesia, o leque de influências é bastante amplo. Vem das leituras, que podem ser literárias, filosóficas, místicas etc. passando também por filmes, músicas, objetos de arte, bem como pelo olhar sobre cenas do cotidiano. Acredito que esta é apenas uma parte de onde minhas ideias brotam, pois há além destas outras influências mescladas pela razão e os sentimentos, o raciocínio e a intuição, a consciência e o inconsciente. No caso da crítica, o referencial é mais restrito, embora procure escrever com arte também meus ensaios sobre literatura.
Por isso mesmo, aproveitando todo este conjunto de influências – que vai da arte ao pensamento, do cotidiano à realidade mais velada, do sensório ao imaginativo –, penso que estou fazendo um exercício de potencialização da escrita, e, estou, sem falsa modéstia, escrevendo cada vez mais e melhor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, mudou muita coisa! A principal diferença é que hoje tenho muito mais paixão pela escrita. Tornei-me doutor em Literatura no final de 2004. Se pegarmos aquele período de leituras, fichamentos e escritura da tese, entre janeiro de 2003 a outubro de 2004, houve um salto considerável, embora eu tenha dado conta de uma tese inteira em menos de dois anos. Se o processo de escrita não foi ruim em si, ele se tornou angustiante em certo sentido pela pressão do prazo muito curto (no período em que fiz as disciplinas do doutorado 2001-2002, não mexi na tese, nem fiz a maioria das leituras que viriam a ser necessárias, pois lecionava no ensino superior). O livrinho que fiz em 2006 (ano que saí de Curitiba e retornei definitivamente para Taió, pois fiquei seriamente doente e desde lá eu e minha mãe cuidamos um do outro), uma obra de 74 páginas sobre a poesia de José Paulo Paes, O humor cáustico no universo da meia palavra: sátira e ironia na poesia de José Paulo Paes, infelizmente, já esgotado, foi para mim muito prazeroso, embora eu ainda não tivesse todo o domínio da técnica de escrita que tenho hoje. Se a agudez de penetração interpretativa já se fazia presente, ainda faltava um maior apuro e desenvolvimento formal. Mesmo os livros sobre Augusto dos Anjos (2011) e Ricardo Lima (2016) pecavam neste ponto. Mas a partir de Claudio Willer: o universo onírico e surrealista em terras brasileiras (Córrego, 2018) e Três poetas do século XX (Córrego, 2018), este último sobre os poetas José Paulo Paes, Ferreira Gullar e Roberto Piva, atingi minha maturidade. E depois os três livros de poesia, citados acima, principalmente os dois últimos, mais propriamente ousados e imaginativos.
Mas sobre a segunda parte da pergunta, não me vejo voltando no tempo e censurando o Henrique mais jovem. Mesmo aquele Henrique adolescente que fez seu primeiro poema (que não conservei e que era muito tolo e sentimental), “Amor, sublime amor”, alcançando o 2º lugar num concurso da região de Taió. Ademais, penso que tudo faz parte de um processo. Foi necessário ter escrito o que escrevi e da forma como escrevi naqueles tempos idos. Se eu estiver vivo daqui a uns cinco anos provavelmente haverá muitos pontos que não mais apreciarei na minha escrita atual. Isto é algo bastante natural. C’est la vie…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que gostaria de realizar e preciso encontrar forças para isso, pois exige fôlego, é o de escrever um livro que abarque a obra de Alexei Bueno, que na literatura, assim como eu, só escreveu até hoje poesia. Considero a obra do Alexei como divisora de águas na poesia dos últimos 30, 40 anos no Brasil. E constituiu-se, verdadeiramente, num talento precoce. Poeta com dezesseis, dezessete anos. E agora, com 50 e poucos, está cada vez melhor, mais maduro, mais seguro da sua arte. Um de seus últimos livros Cerração (Patuá, 2019) é obra-prima inconteste. Mas por ser obra volumosa, me assusta um pouco. Relativamente maior que os oito livros de Tarso de Melo (descontadas as duas antologias que não abordei) que enfoquei em meu livro que está no prelo. Talvez o projeto do Alexei seja algo para daqui a dois ou três anos, se estiver ainda por aqui.
Quanto a livros que gostaria de ler há vários. Gostaria de ter lido Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, aliás, expoente da prosa brasileira que deveria ter lido mais. Mas tenho um pezinho atrás com o realismo, pelo menos com a arte que se diz realista no século XX. Sem dúvida deveria ter sido apreciador mais da poesia inglesa e norte-americana, cujas traduções começam a crescer no país. Dos beats li alguns livros, entretanto gostaria de ter lido mais a fundo Kerouac. E há algumas lacunas imperdoáveis na minha biblioteca, “Os Cantos”, de Ezra Pound e “Folhas de Relva” de Whitman. Na verdade eu sempre fui mais leitor da poesia e da prosa de tradição francesa e alemã: Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Camus, Sartre, Cioran, Nietzsche, Schopenhauer, Trakl, Rilke, Benn, Celan (citei da mesma forma filósofos porque os que foram citados também são artistas da palavra).
Mas livros que eu gostaria de ler e que ainda não existem? Hum… Penso que seria um projeto muito interessante reunir num só livro toda a poesia do Claudio Willer, poesia essa pela qual tenho grande afeição. Mas não sei se há o interesse do autor por esta ideia, já que a cogitei em e-mail certa feita e ele me foi reticente. Por outro lado, num futuro distante espero estar ainda vivo para ver uma edição integral de meus livros de poemas.