Heloisa Seixas é escritora, autora de Agora e na hora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como escrevo não só livros, mas também peças de teatro, programas de rádio, matérias para jornais, e também trabalho ainda como tradutora, minha rotina varia muito de acordo com o trabalho do momento. Trabalho várias horas por dia, todos os dias, mas às vezes o trabalho rende mais de manhã, às vezes em outros horários. Quando estou envolvida com um trabalho maior, como um romance, por exemplo, ou mesmo uma peça de teatro, esse trabalho costuma absorver mais horas do meu dia. Às vezes, vira uma obsessão e chego a acordar no meio da noite para tomar notas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ritual de preparação, não. Quando ao horário, é, como eu disse na resposta anterior, algo que varia muito de acordo com o trabalho que estou fazendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta diária. Tudo depende do momento, daquilo que se está escrevendo, do tamanho do envolvimento na história. Às vezes, há um distanciamento maior. Certas histórias se infiltram aos poucos, são sutis, delicadas em sua apresentação para mim. Outras vezes é algo avassalador, há uma febre, quase como se a escrita fosse um amante, uma paixão proibida. Os livros se escrevem, cada um deles, de uma forma diferente. E o escritor em geral não tem muito controle sobre isso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca faço notas antes. Durante o processo, sim, mas antes é muito difícil. Os livros se apresentam e pedem para ser escritos. Às vezes surgem na forma de um título, ou de uma frase, ou de um personagem. E dali tudo se desenrola como um novelo. Só então, já no decorrer do processo de escrever, é que vou pesquisar alguma coisa, se necessário.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando comecei a escrever, já com quase 40 anos, a necessidade de botar as histórias (acumuladas) para fora era tamanha, que eu não conseguia parar. Os 14 contos do meu primeiro livro, que foi um volume de contos (“Pente de Vênus”), foram escritos em poucos meses. Eu aprontava uma história e outras duas já estavam se apresentando no fundo da minha cabeça. Eram como nuvens de temporal, algo ameaçador mesmo. Depois, com o passar dos anos, houve uma pacificação. Os livros têm às vezes intervalos maiores. Mas as febres ainda existem. Há os livros que se impõem, me dominam, e exigem ser escritos logo – e são, de fato, escritos em pouco tempo. E outros que vêm devagar. Meu último romance, “Agora e na hora” (Companhia das Letras, 2017) eu levei anos e anos para terminar. Eu tinha medo. Por uma coincidência com o personagem do livro, eu achava que ia morrer, tinha medo de morrer quando pusesse o ponto final.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sei que existe a máxima de que “não há texto bem escrito, e sim bem reescrito”, mas, sinceramente, não sou de ficar revisando e revisando. Tenho medo que o texto perca a alma. Não gosto de mexer demais. Quanto a outras pessoas lerem, sim, sempre mando meus contos e romances, ou quase tudo o que escrevo, para algumas pessoas em quem confio, antes de enviar os originais para a editora. São basicamente três, minha filha, um ou duas amigas, e o Ruy (Castro), meu marido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, há muitos anos. Só os meus dois primeiros livros é que ainda foram escritos a máquina. Não tenho hábito de escrever a mão, a não ser anotações, quando escrevo, por exemplo, no meio da noite. Mas pode acontecer de depois eu não entender minha própria letra.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Muitas ideias vêm da vida real, que é riquíssima. Gosto de brincar de passar de um lado para outro dessa linha que divide o real da fantasia. Essa fronteira é tênue, esgarçada, há uma sensação de risco quando se faz isso, que é muito interessante. Foi o que fiz, por exemplo, com meu romance “O oitavo selo”. Nele, eu narrei os confrontos do Ruy com a morte, que são histórias reais e terríveis, mas fiz isso com um tom ficcional e criando cenas às vezes. Por isso dei ao livro o subtítulo de “quase romance”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que me pacifiquei um pouco, o que tornou meus textos talvez menos viscerais. Mas também foi bom, porque eles ganharam em sutileza, acho. Menos adjetivos, menos pontos de exclamação. Mas admito que havia nesses primeiros textos uma força interior que me impressiona. Hoje, quando releio, por exemplo, os contos de “Pente de Vênus”, sinto esse impacto, essa força, vinda talvez do fato de eu ter esperado tempo demais para começar a escrever. Só comecei com 40 anos e havia histórias demais dentro de mim pedindo para sair. De todo modo, percebo uma coerência muito grande entre os primeiros escritos e os mais recentes. Se você pegar os contos de “Pente de Vênus” e comparar com os de “A noite dos olhos”, que acabou de sair (são quase 25 anos de diferença entre os dois), verá que minhas obsessões sãos as mesas. Sombras, olhos, velhos, portas, gatos. Paixão e morte. Loucura.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho escrito bastante. Acabo de lançar o já mencionado “A noite dos olhos”, de relançar (em formato bolso) um romance dos anos 90, “Diário de Perséfone”, ambos pela Companhia das Letras. E acabo de escrever (ainda vou reler) um romance, que deve sair no ano que vem. Não posso me queixar. Os livros surgem e eu os escrevo. E encontro quem os publique. Posso querer mais? Já no teatro – outra área em que tenho trabalhado nos últimos dez anos – as coisas são mais difíceis. Tenho muitos textos, alguns apenas começados, tenho musicais escritos e que nunca foram encenados. O teatro é um trabalho de grupo, requer apoios, patrocínio, as dificuldades têm sido imensas, principalmente nos últimos anos, com essa crise terrível que estamos enfrentando, e mais todo o desprezo que tem sido demonstrado pela cultura em geral.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Tudo é fluido, a ideia, o momento de começar a escrever, o ritmo em que isso se dará. Não tenho muito controle sobre nada. Os livros, como eu talvez já tenha dito, se escrevem por si, pedem para ser escritos, têm uma biografia própria, cada um deles, e me impõem seu próprio ritmo. Já levei dez anos para completar um romance. E já escrevi outro em três meses. Tampouco sei dizer se o mais difícil é começar ou acabar, mas desconfio que o pior é o miolo, ou seja, o meio. Quando uma história surge, ela em geral surge com um começo, e também com um possível fim, embora isso esteja sempre sujeito a modificações. Mas o processo de escrever o livro inteiro, essa carpintaria, esse esforço, é algo sempre doloroso, que gera dúvidas, inquietações, insegurança e muitas vezes um sono ruim. Mas no final, quando o livro é concluído, a sensação é boa (ainda que trazendo alguma sensação de vazio).
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Os projetos às vezes surgem, sim, ao mesmo tempo, e eu preciso me dedicar a várias coisas ao mesmo tempo. Mas como só trabalho com o que gosto, isso não é problema. De uns anos para cá, tenho trabalhado também com teatro. Então, é muito comum acontecer de eu estar trabalhando ao mesmo tempo, digamos, em um romance e em um musical. É uma coisa boa, porque meus romances, minhas histórias, têm quase sempre um clima meio sombrio, talvez até inquietante. E por isso é um contraponto ótimo escrever musicais, trabalhar com humor (coisa que, aliás, acho dificílimo).
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não foi uma decisão, foi um impulso. Foi algo que não pude evitar. Já devo ter contado isso antes, mas comecei a escrever porque não podia conter o ímpeto de fazê-lo. Isso aconteceu no início dos anos 1990, e me tomou de forma extraordinária, não me largou mais. Mas o meu primeiro livro só seria publicado dali a mais algum tempo (em 1995). Foi o livro de contos “Pente de Vênus”.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Nunca pensei em “desenvolver um estilo”. Escrevo do meu jeito, escrevo o que pede para ser escrito. Sou pouco racional, procuro não pensar muito sobre a escrita. E acho que nenhum autor ou autora me influenciou mais do que minha avó Mariá, que me contava histórias.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Só três? Que horror, meu Deus! Escrevi um livro chamado “O prazer de ler” (Casa da Palavra) em que listei os livros que levaria para uma ilha deserta. Fui listando sem contar e no final eram quase 70!
Mas aí vai: “Orgulho e preconceito” (Jane Austen). “O grande Gatsby” (Scott Fitzgerald). “Os Maias” (Eça de Queiroz).