Heloisa Fernandes Câmara é doutora em direito pela UFPR e professora do Centro Universitário Curitiba.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral eu não tenho uma rotina específica, depende muito se tenho aulas pela manhã ou não. Se tenho aula, é tomar café e sair de casa para a faculdade. Se não tenho, é mais tranquilo. Café, leitura de jornais e internet e tempo para me organizar (e-mails, lista das coisas que tenho que fazer no dia, preparar ou revisar aulas etc).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto de trabalhar pela manhã, mas quando tenho aula de manhã não me resta muita alternativa: o trabalho de pesquisa e escrita fica para a tarde.
Eu não tenho um ritual específico. Sempre é uma batalha distinta para começar e para me concentrar. Mas eu costumo começar separando material que eu possa precisar consultar (livros e revistas) e tenho sempre um caderno ao meu lado. Gosto de fazer algumas anotações com os detalhes do que estou escrevendo, o que ajuda a organizar a tarefa e as ideias. Tenho a sensação que escrever tópicos específicos à mão me dá visão mais ampla do que estou escrevendo, então quando eu “travo” costumo fazer o esquema geral do que estou escrevendo e formular os impasses no papel, o que me permite ter clareza do motivo da dificuldade.
Também tenho por hábito colocar alguma música instrumental para me concentrar, embora às vezes tenha o efeito inverso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não consigo manter uma rotina diária de escrita, depende muito das atividades profissionais que tenho no momento, bem como do que estou escrevendo. Um pouco isso acontece por ter carga horária elevada em sala de aula, e outro motivo é que costumo escrever “por tarefa”, ou seja, com o objetivo específico de fazer um artigo ou apresentar um trabalho. Por isso, quando não tenho um tema em mente não costumo escrever. Daí decorre que não tenho meta de escrita diária. Em projetos mais longos, que no meu caso foi a tese, eu produzi muito mais nos períodos de férias. Ter como principal atividade diária a escrita me permitia me “internar” na leitura e escrita e rendia muito. Eu sinto que esses períodos concentrados ajudam a verticalizar a pesquisa e logicamente fortalecer os argumentos.
Mas eu tento me colocar ao menos meta de leitura, que se dá menos pela quantidade de páginas lidas e mais por assuntos que quero pesquisar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não tenho um processo específico de escrita, inclusive porque eu não compreendo a escrita como o momento de consolidação da pesquisa, mas parte da pesquisa mesma. Isso significa que começo com uma leitura ampla de fontes sobre o que pretendo escrever. A partir dessa leitura mais geral eu tento fazer um roteiro de escrita bastante sucinto. Esse roteiro não chega a ser um sumário, mas é uma diretriz sobre o que pretendo escrever, onde quero chegar e me permite fazer uma segunda seleção de bibliografia.
A partir daí eu escrevo e complemento as minhas leituras. Então se me parece que um ponto está superficial eu procuro fontes para aprofundamento. É um processo demorado porque às vezes a leitura mais recente me mostra que houve falhas na construção do raciocínio e aí eu terei que alterar pontualmente ou reestruturar completamente o texto, dependendo da situação. É uma escrita em camadas conforme as pesquisas vão se aprofundando, o que possibilita inclusive que eu apresente resultados conflitantes com a minha primeira hipótese, o que para mim é muito positivo pois traz as diversas perspectivas de um assunto. Nesse sentido eu nunca começo sabendo exatamente qual será o resultado final (e por isso o roteiro citado acima não é um sumário e nem apresenta uma organização fechada). Por mais que isso possa parecer (e às vezes seja) um pouco angustiante, me parece que é a essência da pesquisa científica: buscar, refinar argumentos e concluir a partir dos dados apresentados. Sempre desconfio de pesquisas que antes mesmo de começar já apresentam a conclusão.
Para mim sempre é difícil começar. Isso ocorre por vários motivos, especialmente o meu tempo na escrita de trabalhos acadêmicos, que poderia ser considerado lento. Como eu entendo a pesquisa como atividade complexa, o início da escrita representa o início de um processo que me demanda muito, notadamente dos meus períodos de descanso (férias, finais de semana) já que o período “regular” acaba ficando reservado para as atividades de ensino.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou uma procrastinadora controlada, o que significa dizer que às vezes demoro para começar uma atividade, mas nunca tive problemas com prazo, por exemplo. E evidentemente isso impacta na minha escrita. Talvez o período em que tenha enfrentado de forma mais direta a procrastinação e os medos da escrita tenham sido no processo de escrita da tese de doutorado. A minha principal estratégia é dividir em tarefas menores. É bem menos traumático escrever sobre um assunto específico do que pensar que tenho que “escrever a tese”. Outra tática é nunca começar do zero. Isso quer dizer que antes de começar a escrever eu tento garimpar se já escrevi algo sobre o assunto e reler o que escrevi para relembrar a pesquisa que fiz naquele momento e, inclusive, perceber onde pode ser melhorado. A sensação de já ter algo escrito sobre o tema me acalma, mesmo que eu modifique completamente e não aproveite nada do texto anterior.
Como eu não me sinto completamente segura com o que escrevi, preciso saber que eu fiz uma pesquisa extensa, mapeando os principais autores e debates sobre o tema (seja em artigos, livros, blogs etc). O mapeamento do “estado da arte” me ajuda a perceber qual o caminho que quero trilhar e estabelecer de maneira realista quais as metas da escrita. Além disso, saber que “fiz minha lição de casa” me ajuda a lidar com as quebras de expectativa com o resultado final pois nesse sentido me remeto a uma citação do filósofo italiano Giorgio Agamben que fiz na minha dissertação “toda obra pode ser considerada como o prólogo de uma jamais escrita, que permanece como tal, pois, relativamente a ela, as obras sucessivas (…) não representam mais do que estilhas ou máscaras mortuárias”. Ou seja, por melhor que seja a pesquisa e o processo de escrita, sempre haverá um desapontamento com o resultado. Faz parte da atividade. Então eu tento lidar com as “máscaras” que ele faz referência com tranquilidade quanto ao meu trabalho e estímulo para novas empreitadas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Essa é a parte mais delicada da atividade de escrita. A revisão é a parte mais importante de um texto, e a que menos me agrada. Em certa medida isso ocorre porque eu fiquei muito tempo no processo de escrita e já estou esgotada na fase de revisão. Mas eu também sinto uma espécie de “síndrome de Penélope”, na qual a revisão pode nunca acabar pois sempre há modificações possíveis a serem feitas. O término de um trabalho tem uma parte de conclusão e muito de abandono do texto.
Sabendo disso, costumo ler as partes anteriores antes de retomar a escrita. Assim eu tenho um controle de continuidade do texto e revisão contínua. Então eu acabo revisando bastante, mas não como um momento específico pós-escrita que para mim não funciona muito bem.
Eu gosto de debater o texto antes da publicação, especialmente em trabalhos que me ocuparam mais tempo para escrever. O olhar externo pode mostrar questões não percebidas pelo autor, que muitas vezes fecha-se na sua perspectiva. Essa é a grande vantagem da escrita em co-autoria, um espaço de debate das premissas e resultados. Eu sou uma entusiasta de apresentação de trabalhos pelo mesmo motivo: às vezes um comentário pode levar a uma mudança substancial da pesquisa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo no computador, não conseguiria escrever à mão e depois transcrever, me parece um trabalho excessivo.
Gosto da possibilidade que o computador oferece de alterar o texto, mudar a ordem dos tópicos e de organizar as fontes bibliográficas. Também me ajuda a escrita no computador para consulta de artigos e fontes. Usei no período do doutorado o Mendeley para organizar a bibliografia e funcionou bem (até que aconteceu algum erro e não consegui mais usar). Com isso consigo separar as citações diretas e fica muito mais fácil referenciar os textos consultados.
Mas mantenho várias cadernetas e cadernos para duas funções principais: a primeira, comentada acima, de anotar os detalhes enquanto estou escrevendo; a segunda é anotar pensamentos que possam me ajudar a encadear o trabalho. No período do doutorado eu fiz quase uma dezena de esquemas da estrutura da tese, e incontáveis anotações com questões que deveria responder. Assim, por exemplo, se travava em alguma parte específica eu escrevia questões como “por quê essa questão é importante para a tese? Como esse tópico se relaciona com o tópico anterior?”. Não chegava a responder por escrito, mas ao deixar evidente o que eu via como “buracos” ou fragilidades da pesquisa eu via quais partes deveria arrumar e pesquisar mais. Tenho certeza que esse processo contínuo de questionar a minha pesquisa e evidenciar os pontos centrais foi fundamental para a qualidade do trabalho apresentado. É muito curioso observar pelos cadernos utilizados cada uma das fases da pesquisa e como apesar da alteração de alguns itens o fio condutor permaneceu. Isso mostra uma terceira função dos cadernos: uma memória da pesquisa que ajuda a perceber o seu desenvolvimento no tempo e funciona para perceber os caminhos percorridos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Em geral as ideias de escrita vêm de assuntos que me interessam e me geram dúvidas ou inquietações. Aí o processo de redação é o processo de pesquisa. Mas de maneira geral eu gosto de conversar sobre as pesquisas alheias, ler textos fora da minha área e participar de eventos acadêmicos. Sempre saio com a sensação que há muitos bons temas à espera de pesquisas. Gosto muito de ler literatura e textos de análise de questões atuais. Então a minha já citada procrastinação ironicamente leva a um aumento de repertório de temas e informações, pois ao não escrever eu acabo lendo muito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que a maior mudança foi tornar o texto mais simples e perceber que texto bom não é o que pretende responder todas as questões, mas o que é bem delimitado e claro. Acho que quando se começa a escrever temos a angústia de dar respostas e resolver todos os problemas e o processo de amadurecimento leva a uma diminuição das expectativas: é muito melhor um texto bem construído com uma única questão, do que ideias não encadeadas sobre diversos temas.
Como terminei a tese há poucos meses, não creio que tenha muito o que dizer à minha versão doutoranda. Mas talvez possa reafirmar que temos que valorizar nosso trabalho de pesquisa, mesmo que no momento ela pareça pontual e desorganizada. Ao lembrar da pesquisa do doutorado percebo que eu tinha a sensação de que precisava enfrentar todas as questões, ler todas as fontes e caso não o fizesse seria uma pesquisa ruim. Entretanto o trabalho final e as respostas à ele me mostraram que não há trabalho perfeito, mas sim bem construídos e consistentes. Em resumo, baixar as expectativas tende a trazer resultados melhores para a pesquisa e para o humor do pesquisador.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever um livro sobre direitos humanos a partir do sistema interamericano, com análise de decisões e impactos nos países. Essa vontade vem do grupo de pesquisa que coordeno, que trata justamente desse tema e temos dificuldades de fontes em língua portuguesa. Espero que um dia organize as pesquisas do grupo.
Eu adoraria ler um livro que trate de métodos de pesquisa de ciência política aplicados ao direito. Nos últimos anos as publicações sobre pesquisa empírica no direito têm aumentado bastante, mas creio que ainda falta dialogar com a ciência política, que tem maior expertise no debate metodológico. Mas por enquanto eu não coloco como uma meta minha. Espero que alguém abrace a ideia e a desenvolva.