Hélio Neri é poeta, cabeleireiro e barbeiro, autor de “Anomalia” (2007), “Palavra Insubordinada” (2011), “Bandido” (2014), “Anestesia” (2016), e “Sessões diárias e outros poemas” (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina matinal: levanto cedo, me preparo, vou ao trabalho e volto à noite. Portanto, o meu dia começa assim:
há mais ou menos
quatro anos
todos os dias
pego ônibus bem cedo
aqui nesta região
e geralmente (ou às vezes)
sempre com as mesmas pessoas
no trajeto até o ponto
faz muito frio
parecido com o coração
de alguns por aqui
e também por aqui não são muitos
os que dizem bom dia
mas tenho conhecido pessoas
à noite esta passagem
se torna lugar ermo
e passamos todos
a ser mais vulneráveis
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Me sinto melhor para trabalhar no período da manhã, sendo na escrita ou não, eu já acordo aceso, disposto, elétrico, a cabeça está vazia e ao longo do dia vou enchendo-a coisas, rs, mas não possuo nenhum ritual para a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, mas faço anotações quase que diariamente tanto em papéis, quanto mentais, também não tenho metas para a escrita, o meu desejo é escrever poemas, não importa o tempo que leva. No entanto, não há um dia que eu acorde e não penso em poesia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é mais ou menos assim: faço anotações em papéis e também mentais, faço isso para tentar capturar a ideia do poema, não deixar escapa, mas há situações em que o poema fica comigo, na minha mente, enquanto faço as tarefas diárias: vou ao trabalho, corto cabelos, ando pelas ruas, etc, e o poema continua comigo, embora, cada poema tem a sua particularidade de acontecer. Minha pesquisa se dá através da observação do cotidiano ou de qualquer coisa que me chama a atenção para o poema e, claro, leituras, muitas leituras, fico sempre em busca de uma leitura nova, além de voltar por diversas vezes, para livros que já tinha lido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A trava a procrastinação, acredito que sejam um acontecimento natural, espécie de pausa para um fôlego, para depois continuar o trabalho, vejo por esse lado, no entanto, mesmo nos períodos de trava ou pausa, me mantenho em contato com a poesia e, a ansiedade e o medo, me empurram para o poema.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus poemas diversas vezes, ou até encontrar no poema o que eu estava procurando, sou muito desconfiado, se eu achar que o texto possa ser melhorado, vou lá e mexo de novo no poema, e, claro, sempre conto com a generosidade dos amigos para leituras dos meus trabalhos, pra mim, é essencial, tem muita importância e me auxilia bastante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é quase que total, embora eu faça anotações em papéis e também mentais, logo corro para o computador para dar vida ao poema, ver como fica disposto no papel, seu corpo, estrutura, os versos, fico muito ansioso para ver nascimento do poema e como vai ficar, fiz até um poema sobre essa questão, pular etapas, ir direto ao assunto, ao resultado final:
Tomografia
pudesse no entanto
acontecer em um
só momento
num átimo: lance
ágil ou clique
como uma fotografia do
pensamento impressa
direto na página
já concluído, com
cada verso,
palavra, ideia, sintaxe e síntese
postos ali, todos
em ordem e em local
exato
exatamente como
se deseja o desenho que se
quer configurar
sem a
preocupação do
tempo (ou sua escassez)
ou ainda da ansiedade, dos tiques
e nada que possa
interferir ou macular, de forma
indesejada este
processo
entãocolhidos prontos
todos os poemas
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias para os poemas vêm de várias coisas e situações, sou um curioso e fico atento a tudo: como eu acordo cedo para o trabalho e pego ônibus todos os dias, ainda que o trajeto seja sempre o mesmo, volta e meia, algo novo acontece, fico dentro do ônibus, durante seu percurso, divagando, pensando mil coisas e acabo indo para poesia, então penso poesia logo cedo, esse é um dos estímulos, além de vários outros.
…deparar, logo cedo, com os sonhos
e anseios de cada um
incrustrados em seus rostos,
o cotidiano e o peso
de mundo, redesenhando
(a cada instante) o semblante…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que com a maturidade, com as experiências que vamos adquirindo ao longo do tempo, isso pode também se refletir em nosso trabalho, na escrita, vamos adquirindo novos conhecimentos, e acho que, o que vamos aprendendo se incorpora na forma como escrevemos, nos poemas, no entanto, a poesia tem algo diferente, quanto mais nos esforcemos, nos dedicamos pra melhorar, a impressão que da, é que não avançamos um dedo, não saímos do lugar, é uma luta doida, e acho que esse é o grande barato da poesia, uma busca incessante e infindável.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos em mente, sempre tô pensando em algo, um desses projetos é fazer uma coletânea com meus livros e plaquetes, juntar tudo num livro só, outros projetos, mas não por agora, seria fazer algo de literatura, uma fira literária, algo assim, no Sítio dos Vianas, periferia do ABC paulista, onde morei dos 13 aos 40 anos. E trabalho até hoje como barbeiro / cabeleireiro. Um livro que gostaria de ler é um livro de pós-poesia, de uma conversa do Carlito Azevedo, acho que seria bem interessante um livro assim.