Helena Soares Aphonso é atriz, escritora, performer, pedagoga, arte educadora e diretora de teatro.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia com café forte, feito na minha cafeteira vermelha.
Vou me preparando, coloco comida e água para as cachorras que são duas, Nirvana e Branca, converso e coloco água nas plantas, faço uma oração espontânea de agradecimento, tomo o café, ligo o rádio, separo o que vou ler no dia, deixo meu corpo em estado de prontidão para as escutas e escritas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na verdade o dia inteiro. Minha vida é pautada pelos sentidos, é de onde absorvo todas as informações. Depois de registradas no corpo, começo a ter a necessidade de compor, anotar, dançar esse movimento em forma de arte da palavra. A escrita começa aí. O registro vem depois. Acho mesmo que esse é meu ritual de preparação para a escrita. Observar a vida de forma intensa.
Tenho uma necessidade que vai se agravando. Faço rascunhos, anoto cenas que acho importantes, palavras e frases que colho nas escutas, as ideias vão vindo, algumas aproveito, outras não. Revejo, reescrevo, substituo palavras, mudo frases de lugar, corto o que não me agrada, vou pensando onde quero chegar.
Quando vou para o computador, de novo as mudanças, a forma começa a aparecer. Processo que pode ser rápido ou demorado depende do assunto, às vezes deixo lá, um dia abro, leio em voz alta, faço pequenas mudanças, vou acrescentando novidades, aparando arestas, até me sentir confortável.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gosto de escrever todos os dias, mas não é uma regra, preciso de tempo para amadurecer as ideias, entrar em contato com outros movimentos que me tragam prazer e sorrisos, para que a inspiração permaneça fluindo de forma abundante.
Não estabeleço metas diárias, às vezes escrevo muito, pouco ou nada, mas mesmo assim estou sempre a disposição da escrita através do acolhimento de materiais, e se for algo com data marcada para entregar, me organizo e me concentro bastante para dar conta de escrever e estar em dia com o compromisso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever para mim sempre foi um ato de respiro. Crio significações para minha existência a partir das invenções com as palavras.
Primeiro desenhava as palavras quando não sabia o que significavam, depois escrevia textos, desabafos, segredos e rasgava ou jogava fora. Fui me construído na palavra e pela palavra.
Sempre fui muito observadora, o céu a terra e eu entre um e o outro, me comovem. Composições infinitas, todo momento. Sou fascinada pela natureza e suas variações constantes. Comecei anotar o que vejo o que escuto o que sinto o que me atravessa por onde passo.
Hoje é uma necessidade, escrevo rascunhos quase todos os dias, quando estou com mais tempo organizo. Necessito acumular materiais, remoê-los e produzir repertório para a escrita.
Na verdade a palavra me escreve. Eu leio as coisas que vejo, ouço, experimento, toco, degusto e transformo em poéticas.
Os sentidos estão abertos, minha vida é um livro sendo criado até quando durmo. Aproveito tudo. Gosto das sobras, dos exageros, dos berros.
Minha escrita passa pela minha experiência de vida. Sou fragmentos e estou sempre em busca de possibilidades para composições que dêem sentido ao meu existir.
O teatro me colocou em alerta poética constante, observo cenas, ouço conversas, sinto cheiros, degusto, anoto o que me toca e vou transformando até chegar onde quero na ideia central.
Fiz um curso sobre genética da escrita, fiquei muito encantada com o processo de criação literária do Marcel Proust até chegar ao texto central, daí comecei a ficar mais exigente, um processo que vai acontecendo com o nosso amadurecimento na escrita.
Sou uma escritora performática, preciso do som, movimento, fala, leitura, imagem, pesquisa, vivência, para completar minhas composições, depois, é trabalho minucioso e às vezes até cansativo.
Escrevo para estar presente no universo de forma intensa. A palavra-imagem me liberta.
Como você lida com as travas da escrita, como procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A vida é como um rio em movimento constante, e nem sempre estamos no melhor momento, vivo em vulnerabilidade por ser mulher, mãe, escritora e artista, tenho que reagir a qualquer tipo de queda, então procrastinar não faz parte, me reinvento todos os dias, a escrita é minha companheira nesta caminhada para existir.
Já tive muito medo, quando me preocupava em corresponder expectativa alheia, mas nunca deixei de escrever, só não publicava, com o tempo fui mostrando para outras pessoas que também escreviam e elas foram me animando, fui percebendo que o que eu escrevia tinha a expressão da minha identidade e que ninguém poderia escrever o que escrevo.
Continuo no estudo e na descoberta de possibilidades, penso sempre na poesia como princípio da minha escrita.
Hoje já consigo lidar muito bem com projetos longos, estou madura e pronta para encarar desafios.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Hoje estou mais exigente, reviso várias vezes, leio em voz alta para alguém e fico esperando a reação, a fala, de como aquilo se apresentou, faço perguntas, isso quando tem alguém por perto, quando não, me viro com leituras em voz alta.
Tendo dúvida, pesquiso, leio outras autoras, procuro me certificar de que tenho um material que me representa.
A finalização é muito difícil, acho sempre que tem algo a ser revisto, mas chega um momento que tem que dizer: fim.
Gosto de convidar escritoras (es) para ler e escrever sobre o livro antes de publicar. Escrevi um livro agora durante a pandemia, ”Flor da alma”, transformei em e-book e livro físico, está na Amazon, fiquei muito segura quando recebi o prefácio do poeta e professor de literatura, Anelito de Oliveira, que fez uma leitura linda a partir da minha personalidade nos textos.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como sou uma pessoa que têm outros tantos trabalhos além da escrita, fico sempre guardando tudo, colho, anoto, gravo, fotografo, filmo, performo, danço, interpreto, vivo.
A tecnologia me acompanha neste processo, vamos interagindo. Nada tão definido que não possa ser direto no computador, mas ultimamente, tenho gostado muito de escrever à mão em folhas foscas com lápis, depois transfiro para o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Estrada longa. Vim do sertão do Norte de Minas, onde a natureza é a própria arte, estradas vermelhas e sinuosas, tudo no extremo, seca, tempestades, e as faltas, por sermos isolados geograficamente, mas a riqueza é nossa, de cultura, saberes etc.
Vim para Belo Horizonte para fazer teatro, me enraizei aqui, volto sempre no meu sertão para me encontrar com amigas (os), familiares e conversar com ele o Ser-Tão que me habita aqui ou lá.
Minhas maiores ideias estão ligadas a este lugar que para mim é um filme constante em movimento cenográfico dentro de mim.
Cultivo hábito de ler, estudar, ir a exposições, ouvir música, fazer performance e participar sempre que posso de festivais de arte e poesia, não fico parada, vou criando.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo muda o tempo inteiro, eu mudei, eu aprendi mais e estou sempre aprendendo. Agora sou mais segura, mais madura, mais exigente, procuro sempre melhorar, aprimorar.
Compreendi-me melhor como mulher, percebo que tudo para nós mulheres é mais difícil, precisamos enfrentar, estarmos presentes nos espaços é importante.
Ter que o tempo inteiro em todos os locais dizer para o patriarcado que existimos que temos voz, identidade, que somos seres vivos e expressivos, que não precisa nos interromper e nem explicar o que estamos dizendo, é muito cansativo, mas, necessário.
É luta para a vida toda, a escrita e as leituras nos fortalecem.
Se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos eu falaria mais sobre nossas lutas para superarmos os abusos do patriarcado e diria mais sobre mim mesma, que eu sou muito corajosa, por ter escolhido ser artista, escritora, educadora, que fazer o que sempre quis era uma forma de dizer para o mundo que sou empoderada, que tenho qualidades, que sou da luta, que não ando só nem me recuo diante de tantos nãos. Antes, eu sabia, não falava, era tímida.
Não saberia ser diferente, estava descobrindo como se escrevia, estudando, lendo e criando personalidade. Acredito que agora estou mesmo mais fluente com as palavras, mais confiante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tantos. Leia-me, é um projeto meu que ainda não existe, ele é abrangente, tem biblioteca e rodas de leituras itinerantes, produz possibilidade de encontros culturais e novas maneiras de trocas de aprendizados fora dos espaços opressores, já começou como ideia e algumas ações, mas ainda é um sonho, pois, sua grandeza precisa de tempo disponível e dinheiro para execução de forma proativa.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler e ele ainda não existe, seria um livro mágico, que só de ter contato com ele as mentes se abrissem para o entendimento do que não se sabe por falta de acesso aos direitos negados, pela falta de políticas públicas voltadas para as populações menos favorecidas que cada vez mais ficam prejudicadas em seus direitos como cidadãos.
É um absurdo, humilhante e enlouquecedor um cidadão que precisa se locomover, consumir, viver, não conseguir ler, se situar em relação aos seus direitos básicos, ainda hoje. Isso para mim é escravisante, é tortura e tem que ser cobrado. Por isso quero esse livro mágico, pois não acredito na sensibilidade do sistema em relação à educação e letramento para melhorar a vida dos cidadãos. Tentaram acabar com Paulo Freire, Darci Ribeiro, Nise da Silveira e todas (os) que fizeram algo em favor da humanização pela leitura de mundo.