Heitor Peixoto é jornalista, repórter da TV Assembleia de MG e colunista do site Congresso em Foco.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começa bem cedo. Tenho um casal de filhos (de 15 e 11 anos), e o mais velho estuda de manhã. Como a minha esposa, que é professora, costuma trabalhar até a madrugada (preparando aulas), sou eu que o acordo e o levo para o colégio.
Chegando em casa, preparo o meu café-da-manhã e, já durante a refeição, faço a leitura do noticiário do dia. Como sou repórter de TV de uma Casa legislativa (a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais), recebo deles via intranet um clipping, com a cobertura política dos principais jornais do estado, e também de alguns veículos nacionais. Essa atividade me garante uma bagagem de notícias e informações que são fundamentais para o acompanhamento da pauta sócio-política de MG, já que praticamente todos os assuntos mais quentes que digam respeito a saúde, segurança pública, educação, economia, entre outros, vão parar lá. E como muitas vezes participo das coberturas da TV Assembleia comentando esses assuntos, aproveito esse repertório para incrementar minhas análises, que em geral ocorrem ao vivo, ao longo da programação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre funcionei melhor à noite/madrugada, mas tive que me adequar à rotina de estudos do meu filho. Sendo assim, tenho produzido mais e melhor na parte da manhã. Mas, não raramente, avanço pela madrugada em minhas leituras pessoais, e também em pesquisas sobre assuntos dos quais preciso ter um conhecimento maior. Daí, o desafio é me manter acordado e ativo no dia seguinte. Procuro respeitar a minha necessidade de sono (não superior a 6 horas por noite), porque o cansaço é um dos principais inimigos da produtividade, sobretudo quando se trabalha com uma matéria-prima fundamentalmente mental. E o melhor ritual de preparação é estar sempre atento à nossa volta, do macro ao micro. Aos poucos, a lida vai treinando o olhar, e nos tornamos exímios observadores de mundo, a fazer valer por meio de nossas palavras tantas árvores derrubadas em função do papel nosso de cada dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A produção para nós, jornalistas, é quase sempre sob demanda. O desafio maior é quando você é o próprio demandante do seu trabalho, o que acontece com a minha coluna no Congresso em Foco, na qual sou inteiramente responsável por todas as fases da produção, desde a escolha do tema até o envio do texto para os editores. Aí, os imperativos da organização e da disciplina se mostram mais presentes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não sei dizer se o desafio maior do jornalista é começar (sim, sair da inércia e colocar-se em movimento de criação é sempre uma parte difícil, seja no campo da física, seja no da produção criativa), ou terminar (enfrentando todos os percalços que esse término nos impõe, como os limites de espaço, e aquela apreensão de deixar “um filho” – o texto – ganhar o mundo).
Ao escrever para a TV, no dia-a-dia, não há muito ritual, que não o de me sentar em frente ao computador com minhas anotações (quase sempre colhidas à mão, relativas às atividades que cubro na Assembleia) e transformá-las em texto de TV. Já em matérias especiais, que demandam um esforço maior de forma e conteúdo, procuro assistir ao material bruto gravado nas externas e, já nesse trabalho de decupagem (o termo técnico para essa atividade), vou anotando trechos de falas dos entrevistados, além de ideias e inspirações próprias, que permitam um diálogo entre esse conteúdo audiovisual e o texto que construirei a seguir.
Há também os textos das colunas que escrevo para o site Congresso em Foco. Esses normalmente têm como base entrevistas especiais sobre alguma temática diretamente conectada a direitos humanos, uma das principais pegadas da página. Também aqui, faço a escuta ou a leitura atenta da entrevista bruta, e essa transcrição em geral já me dá a linha-mestra e os caminhos que seguirei na formulação do texto. Muitas vezes, esse trabalho gera outras demandas de pesquisa e aprofundamento, algo que já vou fazendo simultaneamente, numa dinâmica de trabalho um tanto caótica, estilo hiperlink (abrindo um sem-número de janelas, digitais e mentais). Nessa fase, organização é tudo, e não deixa de ser um desafio conciliar essa necessidade objetiva com as subjetividades da criatividade na montagem do texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para essas barreiras – que são de fato bastante reais, e capazes de realmente travar o exercício produtivo e criativo -, o melhor antídoto é mesmo a paixão pelo que faço. Em geral, consigo atingir um nível de concentração nesses trabalhos, a ponto de se tornarem um exercício fluido, o qual vou prazerosamente degustando, mesmo naquela fase mais operacional, chão de fábrica. Quando você ama o que faz, passa a não mais temer as tortuosidades do caminho. Pelo contrário. Passa a fazer delas um elemento a mais de enriquecimento do trabalho final. Nesse sentido, os arranhões da jornada sempre nos fortalecem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, desde o momento em que ainda estou no meio da produção. E é engraçado como precisamos mesmo de deixar o texto “esfriar”, descansar. Ou, em termos alimentares (posto que é alimento da alma), maturar, curar, apurar os diferentes estratos de “sabor” e de saber. Não é incomum que eu pare no meio de um texto de maneira proposital e retome-o horas depois. Parafraseando Heráclito, naquele segundo momento, não sou o mesmo autor de antes. Tampouco o texto é, porque já passa a ser percebido em camadas outras, antes não aparentes. As outras pessoas que em geral veem o trabalho final antes de ser publicado são os editores, que em muitos casos dão um polimento, um brilho, um acabamento enriquecedor. Sim, no jornalismo, escrever é um ato permanente de coletividade e desapego. O que para mim é uma vantagem. Via de regra, não tenho ciúmes de ajustes e contribuições de quem me ofereça a generosidade de seu olhar nesse momento de revisão e de finalização. A gente precisa de ajuda até para nascer e manter-se vivo naquela hora tão crítica, por que não para escrever?
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou nenhum especialista em tecnologia. Nunca estou entre os pioneiros, os vanguardistas de qualquer recurso ou plataforma nova. Desbravar ideias já requer empenho e coragem suficientes, para que dominemos esta ou aquela novidade dos tempos digitais. Mas não dispenso de forma alguma o processo de criação já na tela do computador. Isso porque o exercício da criatividade, quando já está internalizado e quase automatizado em nós, muitas vezes faz surgir boas ideias em escala quase industrial. Nisso, o computador é grande aliado, para que consigamos “cercar” todas essas iluminações e não deixá-las escapar no tempo mais lento do lápis ou da caneta. Mas no trabalho mais operário da reportagem, ainda não consegui encontrar tecnologia que substitua caneta e papel. E é bastante trivial que, nessas notas, umas tantas rabiscadas e quase ilegíveis, já apareça a ideia de estrutura do texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sendo a escrita a manifestação concreta dos encantos e desencantos da nosso interior, da nossa subjetividade, não encontro exercício melhor do que adquirir repertório, seja em que temática for (quando criança, era fanático em rótulos de produtos). E isso pode vir de múltiplas frentes. No meu caso, vem fundamentalmente de livros, filmes, documentários, podcasts e das boas arrobas que sigo nas redes sociais, que, só de existirem, me trazem incontáveis pautas, ideias, inspirações. Mas sem medo de chover no molhado (nem desse lugar-comum agora), acredito que o principal substrato de bons textos é o olhar sempre atento sobre o mundo à nossa volta. Por exemplo: naquela icônica cena de uma mulher tentando salvar a vida do caminhoneiro envolvido no fatídico acidente envolvendo o jornalista Ricardo Boechat, temos várias camadas de sentido: a desconstrução de padrões históricos do masculino x feminino (enquanto ela arrisca a vida no salvamento, vários homens apenas filmam de longe); a desumanização; a falta de empatia; a sociedade do espetáculo; a fragilidade absoluta da vida humana; a infalibilidade da morte; o quanto, ainda que infalível, a morte é tão inaceitável para nós; e tantos outros significados, mais ou menos visíveis.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
É impossível ficar imune aos efeitos que os anos de vida e de experiência despertam em nós. Se por um lado falta-nos aquele viço e furor dos primeiros anos de escrita, por outro a bagagem e o amadurecimento pessoal aprimoram sobremaneira o nosso fazer técnico ou artístico. Essa me parece ser a maior mudança de todas: a do crescimento interior. Se eu pudesse voltar uns 20 anos atrás, momento aquele em que consolidava a ideia de fazer jornalismo, eu diria àquele pós-adolescente: “FAÇA MAIS JORNALISMO AINDA! FAÇA DOIS JORNALISMOS SE POSSÍVEL!” (risos). Tenho um orgulho absurdo desse ofício, tão surrado, mal compreendido, e, claro, tantas vezes desonrado por profissionais indignos de exercê-lo, e por empregadores indignos de merecê-lo. Mas mais do que ensinar ao meu eu de 20 anos atrás, eu continuo aprendendo com ele até hoje. Porque ele sempre esteve certo em sua escolha de vida, mesmo num momento em que não tinha quase elemento nenhum para essa certeza. Já devo ter trocado 99% das minhas células desde então. Sobraram, quem sabe, os neurônios (talvez nem tantos assim), que souberam e continuam sabendo fazer essa travessia nada simples, que é viver neste mundo perturbado, hoje mais do que ontem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho algumas ideias de livros que gostaria de escrever: um livro-reportagem entrevistando pessoas em situação de rua, mostrando que existem histórias riquíssimas por trás daqueles cobertores cinzas invisibilizadores (porque já decidi que, quando for fazer um livro, será para contar histórias de gente que eu admiro e reverencio pela coragem e fibra); outro, mostrando essa mesma dimensão de existência de profissionais do sexo; outro, com as contradições do capitalismo, pelo recorte dos maiores acidentes trabalhistas do país.
Sobre o que ler: não sei se já existe ou não, mas seria providencial um livro que explicasse por que estamos nos bestializando com o passar dos anos. Todo o progresso científico, todo o aprimoramento tecnológico, todos os avanços sociais desgraçadamente não têm resultado em seres humanos melhores, em relações pessoais mais maduras e respeitosas. Pelo contrário. Dia desses, voltando do trabalho no início da noite, botei reparo em uma loja de colchões perto da minha casa. O estabelecimento já estava fechado, mas sempre fica com o interior da loja acesso durante a noite toda, e a vitrine à mostra para quem estiver passando. Do carro, vi lá dentro umas três camas, sendo destacadas por jogos de luzes, para nos encantar. Alguns metros ao lado, uma família dormia no chão duro da calçada, coberta apenas por uma esgarçada coberta velha. Foi quando pensei: que raio de mundo é esse, em que uma cama tem direito a um teto “para dormir”, mas um sem-teto não tem direito a uma cama? Outra coisa que não entra na minha cabeça: quase um bilhão de pessoas no mundo passando fome, e esse mesmo mundo jogando fora 30% do alimento que produz. Penso que vou colocar meu nome na pré-venda deste livro futuro, que seja capaz de esclarecer o rebaixamento civilizatório do século XXI, que não é só brasileiro. Livro futuro de retrocesso. Contradição: uma tradição nossa.