Heitor Ferraz Mello é escritor.
Como escrevo?
Você me pergunta
sobre meus hábitos minha rotina
o número do ônibus que pego pela manhã
e no qual
em pé
equilibrando-me entre barras
escuto a conversa de Edna
a cobradora de cabelo duramente alisado
e suas colegas
que passam pela catraca
ou pagam e descem pela frente
Uma comunidade matinal
Um enquadramento apertado que se repete
quando me desloco de casa
para a sala de aula
Você ainda me pergunta sobre processos metas métodos pesquisas
travas
Os poemas são notas
como essas
na tela do celular
São métodos que se compõem
quando há uma espécie de sintonia interior
um momento de fertilidade
que pode durar uma semana
ou quem sabe dois ou três meses
E toda minha concentração se volta
para a poesia
A vida, claro, puxa sempre para outro lado
Não trabalho com literatura
Sou professor de jornalismo
Faço frilas como jornalista
As louças se reproduzem na pia da cozinha
Meus filhos mais velhos me ligam
no conflito da adolescência
Minha filha pequena me chama para brincar
estende uma canga na sala
é a praia
Puxa uma almofada
é o cavalo Esperança
Mas é à noite
quando a casa dorme
um barco à deriva do sonho
ou da insônia
nesses momentos de sintonia
que uma pilha de leituras
se acumula no criado-mudo:
uma seleção de poetas
aleatória e afetiva
com a qual estabeleço meu diálogo
Poucos retornam de um livro a outro
Ana Luísa Amaral conta
que estes estados
são como
se procurássemos sintonizar uma rádio
A frequência certa
entre ruídos
Os livros sobre um banquinho
ou criado-mudo
são o meu dial
em que vou ajustando essa frequência poética
até encontrar a voz nítida e clara
transmitindo ao vivo
determinados sentimentos
Você ainda me faz outras perguntas
mas não tenho todo esse processo sob controle
A vida não está sob controle
Andando agora pela rua
depois de ter entrado no ônibus errado
por pura distração e cansaço
acabo me encontrando
por acaso
com velhos e queridos amigos
indo almoçar ou voltando de algum encontro
Há quanto tempo não os via
Uma felicidade que não estava no roteiro inicial
quando cheguei ao ponto
pensando apenas em voltar para casa
Agora, novamente escorado
em pé
numa das portas laterais do ônibus
termino essas notas
sobre como escrevo
sobre esse impulso ou surto
que segue até o momento
em que
também por acaso
encontro um título provável
para o livro em gestação
É quando o ritmo muda
o ruído se instala
e a impressora começa a cuspir
aqueles poemas
que pedem uma outra sintonia
entre eles
a partir do título
Mas cada etapa é feita de brechas
Cada poema é provisório
As folhas soltas andam pela casa
Podem aparecer espalhadas no chão
para que veja melhor parte do conjunto
ou reunidas numa prancheta
que fica ao lado do computador
e nas brechas de um trabalho
e outro
vou fazendo a revisão
entre o ânimo e o desânimo
(a angústia de não ter escrito o poema
que gostaria
de fato
de ter escrito)
O ritmo das obrigações
vai me engolindo
os poemas vão se esfarelando
eu mesmo me esfarelo
Quem sabe amanhã acordo disposto a
Quem sabe amanhã acordo
Quem sabe amanhã
Quem sabe
Quem?