Como eu escrevo

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Como escreve Heitor Ferraz Mello

28 de agosto de 2018 by José Nunes

Heitor Ferraz Mello é escritor.

Como escrevo?

Você me pergunta

sobre meus hábitos minha rotina

o número do ônibus que pego pela manhã

e no qual

em pé

equilibrando-me entre barras

escuto a conversa de Edna

a cobradora de cabelo duramente alisado

e suas colegas

que passam pela catraca

ou pagam e descem pela frente

Uma comunidade matinal

Um enquadramento apertado que se repete

quando me desloco de casa

para a sala de aula

Você ainda me pergunta sobre processos metas métodos pesquisas

travas

Os poemas são notas

como essas

na tela do celular

São métodos que se compõem

quando há uma espécie de sintonia interior

um momento de fertilidade

que pode durar uma semana

ou quem sabe dois ou três meses

E toda minha concentração se volta

para a poesia

A vida, claro, puxa sempre para outro lado

Não trabalho com literatura

Sou professor de jornalismo

Faço frilas como jornalista

As louças se reproduzem na pia da cozinha

Meus filhos mais velhos me ligam

no conflito da adolescência

Minha filha pequena me chama para brincar

estende uma canga na sala

é a praia

Puxa uma almofada

é o cavalo Esperança

Mas é à noite

quando a casa dorme

um barco à deriva do sonho

ou da insônia

nesses momentos de sintonia

que uma pilha de leituras

se acumula no criado-mudo:

uma seleção de poetas

aleatória e afetiva

com a qual estabeleço meu diálogo

Poucos retornam de um livro a outro

Ana Luísa Amaral conta

que estes estados

são como

se procurássemos sintonizar uma rádio

A frequência certa

entre ruídos

Os livros sobre um banquinho

ou criado-mudo

são o meu dial

em que vou ajustando essa frequência poética

até encontrar a voz nítida e clara

transmitindo ao vivo

determinados sentimentos

Você ainda me faz outras perguntas

mas não tenho todo esse processo sob controle

A vida não está sob controle

Andando agora pela rua

depois de ter entrado no ônibus errado

por pura distração e cansaço

acabo me encontrando

por acaso

com velhos e queridos amigos

indo almoçar ou voltando de algum encontro

Há quanto tempo não os via

Uma felicidade que não estava no roteiro inicial

quando cheguei ao ponto

pensando apenas em voltar para casa

Agora, novamente escorado

em pé

numa das portas laterais do ônibus

termino essas notas

sobre como escrevo

sobre esse impulso ou surto

que segue até o momento

em que

também por acaso

encontro um título provável

para o livro em gestação

É quando o ritmo muda

o ruído se instala

e a impressora começa a cuspir

aqueles poemas

que pedem uma outra sintonia

entre eles

a partir do título

Mas cada etapa é feita de brechas

Cada poema é provisório

As folhas soltas andam pela casa

Podem aparecer espalhadas no chão

para que veja melhor parte do conjunto

ou reunidas numa prancheta

que fica ao lado do computador

e nas brechas de um trabalho

e outro

vou fazendo a revisão

entre o ânimo e o desânimo

(a angústia de não ter escrito o poema

que gostaria

de fato

de ter escrito)

O ritmo das obrigações

vai me engolindo

os poemas vão se esfarelando

eu mesmo me esfarelo

Quem sabe amanhã acordo disposto a

Quem sabe amanhã acordo

Quem sabe amanhã

Quem sabe

Quem?

* Entrevista publicada originalmente em 28 de agosto de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).

Arquivado em: Entrevistas

Sobre o autor

José Nunes (@comoeuescrevo) é doutor em direito pela Universidade de Brasília.

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