Harini Abja Kanesiro é graduada em História pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda em Escrita Criativa pela PUCRS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com bastante dificuldade. Demoro para levantar da cama e faço um esforço muito grande só para abrir a janela do quarto e não ficar no escuro. Até meados da graduação eu tinha uma rotina, tomava café, lia, mas isso se dissipou. Fiquei mais arisca e mais desorganizada. A única constante tem sido essa hesitação perante o próprio dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De madrugada, sem dúvida alguma. Venho tentando aprender a escrever em outros períodos por questões práticas (tenho uma dissertação a ser concluída esse ano e, com ela, uma novela), mas ainda sem resultados muito consistentes. Sobre a preparação para a escrita: costumo precisar de fones de ouvido (não para ouvir música, só para abafar os ruídos exteriores) e bebo litros e litros de chá.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo pouco em períodos concentrados. Contemplo com admiração e inveja os colegas de ofício que são mais consistentes e integram a escrita ao dia-a-dia, mas não sou assim, ao menos não agora. De tempos em tempos, estabeleço metas de escrita, diárias, semanais, mensais, mas o meu senso de disciplina é sempre menor do que a desordem interior. Sigo tentando, contudo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre difícil começar. E a pesquisa e a escrita, por vezes, acontecem simultaneamente. Tenho muito medo de escrever e, se penso que vou fazê-lo apenas quando estiver devidamente preparada, não começo nunca. O processo costuma ser bastante desorganizado e envolve pilhas e pilhas de livros, notas esparsas, insônia e crises de choro. Eu sofro muito para escrever. Mas acredito (e trata-se mesmo de algo que experimento mais como esperança do que como convicção) que não precisa ser assim até o fim dos meus dias. Não sei se é imperativo que toda criação seja experimentada de modo tão desesperador. Gosto de pensar que há um jeito extasiante ou simplesmente mais pacífico de criar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As ambivalências da escrita são um assunto que me interessa muito, precisamente porque tenho bastante dificuldade para lidar com tudo isso que você citou, ao ponto de duvidar se é uma vocação a qual posso, de fato, me dedicar. Se desconfio, por um lado, do mito da alma conturbada do artista e da romantização do desespero, pelo outro constato que, desde o princípio, a minha relação com a escrita pressupôs a habitação de uma zona de instabilidade e, frequentemente, um dispêndio emocional que ainda não fui capaz de sondar. Meu maior desejo (e meu maior desafio) é me sentir no direito de escrever, independente de ser algo que considero bom ou não. É evidente que quero escrever bem, mas quero, antes disso, só escrever. Me ajuda pensar que o meu valor como ser humano não está na qualidade do que escrevo, que existe valor em fazer o possível e que as pessoas são capazes de reconhecer esse valor. Também converso com pessoas próximas que enfrentam os mesmos monstros que eu. E faço terapia. Nos dias ruins, eu só tento aceitar que não vai dar para escrever e que isso não é o fim do mundo. Enquanto estamos vivos, há tempo para tentar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ainda estou para encontrar um escritor que consiga olhar para os próprios textos como acabados. Mas os prazos existem, então, de algum modo, é preciso se aproximar dessa ideia do “texto final”. Não tenho um número fixo de vezes para revisar meus escritos, mas tento insistir até sentir que aquilo já não me pertence, que quero deixar para trás, porque eu e o texto já estamos esgotados um do outro, mesmo que ainda haja questões em aberto.
Mostro meus trabalhos para poucas pessoas, os mais próximos, quando demonstram algum interesse em ler. Às vezes esse movimento tem um propósito mais afetivo, noutras, mais crítico. Mas, no geral, ainda não me acostumei com a ideia de ser lida, antes ou depois de publicações. O impulso de querer mostrar meus textos convive no meu peito com o seu contrário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Normalmente, escrevo palavras com as quais cismei, frases e ideias preliminares à mão (tenho post-its e pedaços rasgados de papel em todas as minhas gavetas e bolsas). Isso passa para o computador e os rascunhos acontecem lá. Já tentei escrever mais em cadernos e experimentei com uma Remington 25, mas nada me deu tanta liberdade quanto a que o “delete” do computador proporciona. Por outro lado, meu laptop pifou no primeiro semestre e quase perdi a dissertação inteira.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Das músicas que ouço, dos livros que leio, dos sonhos, da observação dos instantâneos banais do dia-a-dia, das histórias que me contam, das minhas relações, das minhas lembranças, de tudo que eu retive, para o bem ou para o mal, no coração. Não mantenho nenhum hábito com o objetivo consciente de ser criativa, mas quando sinto que meus pensamentos e a minha alma andam áridos, a minha maior fonte de nutrição é a poesia. Frank O’Hara, Adrienne Rich, a Júlia de Carvalho Hansen e o Ricardo Domeneck, sobretudo. Também descobri recentemente a Marceli Andresa Becker, que é espetacular.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrever foi ficando progressivamente mais complicado. O que aprendi, ao longo dos anos, me tornou mais crítica, e sou grata pelo rigor e pela lição de humildade, por aprender a revisar, acima de tudo. Mas também ficou mais difícil acessar a matéria mais espontânea do gesto e protegê-la da ansiedade e das expectativas. Como consequência, perdi a coragem que vinha com o atrevimento de não saber nada do que estava fazendo. Quando eu tinha uns oito ou nove anos, escrevi um livro, desenhei, recortei as páginas, grampeei, tudo sozinha. Era sobre um coelho que se perdia, sentia muito medo, mas depois achava o caminho de volta para casa. Eu não estava preocupada se o livro era bom, só estava feliz por tê-lo escrito. Então, se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria para me segurar muito a esse aspecto da fruição. Para alimentá-lo o máximo possível. Nunca fui tão feliz com a escrita quanto com essa história do coelho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever um romance algum dia, algo que conversasse com alguém tanto quanto as obras do Tolstói, do Bulgákov, do Victor Heringer e do Juliano Garcia Pessanha conversaram comigo ao longo da graduação. Numa época em que um silêncio bastante comprido me abraçou tão forte, eu me senti menos sozinha e menos errada com esses autores.Seus livros foram o acolhimento mais generoso possível e ressoam em mim até hoje. Ainda volto religiosamente para o A exclusão transfigurada, do Pessanha, e permanece tão arrebatador quanto da primeira vez em que li.
Penso que escrever um livro a quatro mãos seria desafiador também, mas divertido, se encontrasse alguém com quem houvesse sintonia para isso.
Queria ler um livro que fosse como a Gymnopédie nº 1, do Satie. Procuro essa música nos filmes, nas coisas que leio, no que tento escrever, nas cordas dos meus instrumentos, nos quadros, nas esculturas, nas paisagens, nas pessoas. Tenho a impressão, às vezes, de que acordo somente porque ainda existe essa busca.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
É difícil localizar, com precisão, o início de um projeto — um esboço da ideia, a própria ideia, tudo costuma se insinuar muito tempo antes, sem, necessariamente, deixar coordenadas específicas. Por outro lado, se há silêncio suficiente no corpo, é possível recordar o instante em que o núcleo duro da ideia perfura o autor, o ponto a partir do qual o projeto acorda em direção a sua conformação, quando a ideia é trazida ao plano e às limitações do real.
O encontro com uma ideia nova é sempre turbulento — às vezes, é necessário sobreviver a esse encontro, noutras, é necessário morrer. Independente das especificidades, que nascem de cada ideia, é preciso tomar decisões de planejamento. Ser estudante na Oficina de Criação Literária da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e, posteriormente, no mestrado em Escrita Criativa, na mesma instituição, me ensinou a importância em formular um plano, ainda que, no final das contas, a decisão seja não segui-lo — o esforço em organizar a ideia participa da sua elaboração. A instabilidade é característica do processo de criativo, mas não se opõe à ordem. Da mesma forma, intuição e elaboração, o movimento da alma e o movimento da mente, consciente e inconsciente, razão e emoção são todas instâncias que trabalham juntas e integram a criação. Parto, pois, de um plano, mais ou menos detalhado, a depender da circunstância, mas me reservo o direito de mudar de ideia sobre o que for. A dosagem dessa mistura, acredito, é variável, particular a cada autor e a cada obra.
A última frase é a mais difícil de escrever, suponho, porque é difícil de aceitar o fim da obra. Se o começo é, em geral, marcado pela euforia do parto da ideia, o final carrega o peso de ser o instante que antecede a sua libertação no mundo, o peso da extenuante trajetória de escrita do projeto, o peso do conflito entre o que se idealizou e o que se realizou efetivamente. Na novela que escrevi para a dissertação de mestrado, no entanto, a minha primeira frase foi do meio da novela. Já estava comigo antes de eu começá-la e foi a frase para qual olhei depois de escrever o último capítulo. Tudo isso para dizer que não há regras fixas quando se trata de criação.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Quando estou trabalhando, tendo a me organizar para escrever de madrugada. Faço as tarefas domésticas ao longo do dia, pondero sobre o que virá a partir da noite. Mas é recorrente me sentir bastante ansiosa ou deprimida, estados que são, naturalmente, inimigos do trabalho. Por essa razão, e por ter dificuldade para me concentrar e me dedicar a mais de uma coisa simultaneamente, não gosto da ideia de vários projetos acontecendo ao mesmo tempo. No meu caso, isso significa que nenhum deles, de fato, acontece.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não acredito que seja uma escritora no sentido profundo do termo — faltam-me envergadura, maturidade, competência, etc. Mas parece-me — e aqui falo de modo insensato, sem certezas, teorias elaboradas, ou credenciais (quais seriam as credenciais?) — que tenho algo a dizer e que gostaria de dizê-lo ficcionalmente, é a formulação mais básica que apresento quando me pergunto por que escrever. A intuição que sustenta essa impressão não é muito, e conversa comigo através de arroubos de inquietação, de entusiasmo e, às vezes, de violenta depressão. Embora pouco, intenso. Embora intuitivo, vago. Considerei mais detidamente, no último ano, a hipótese de que a escrita literária, para mim, não seja uma forma de sublimação, mas um desejo de penetração no mundo, uma tentativa de finalmente cravar os pés na existência (a experiência humana é oposta à dos vegetais: terminamos no solo, as raízes são o ponto de chegada). Ou talvez eu só me mova com maior familiaridade num ofício que depende de certa lentidão no olhar, seja para dentro ou para fora.
Converso muito com meus colegas escritores sobre esse momento em que, finalmente, se decide assumir a dedicação à escrita. Eu ainda não passei por ele. Venho flertando com o ofício desde que assisti à primeira aula do professor Luiz Antonio de Assis Brasil, mas resisto a reclamá-lo (medo? Inadequação? Outras vontades?) com maior convicção. Concluí a oficina e concluí o mestrado, duas oportunidades que tive de melhorar a minha escrita. Mas a dedicação como voz do coração, essa eu ainda não abracei.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Ainda não tenho um estilo próprio, mas tenho afinidades. Acredito no componente lírico da escrita da narrativa, na potencialidade em elaborar uma poesia que nasça da prosa e vice-versa — nesse sentido, encontrar o ponto de convergência entre os dois gêneros é a minha maior dificuldade.
Tenho, para mim, que as escritas que me são mais importantes são como gestos de amor, no sentido mais profundo e mais enigmático do termo. Nessa linha, Lygia Fagundes Telles, Carola Saavedra, Sylvia Plath, e a Sara Regina Albuquerque França são autoras que me cativam bastante, e de quem empresto olhares, palavras, percepções etc. Também gosto muito da argúcia da Susan Sontag e espero, algum dia, poder reproduzir, nem que seja o mínimo, dessa sua qualidade.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Já mencionei, na entrevista, Frank O’Hara, Adrienne Rich, Júlia de Carvalho Hansen, Ricardo Domeneck, Marceli Andresa Becker, Tolstói, Bulgákov, Victor Heringer, Juliano Garcia Pessanha, Lygia Fagundes Telles, Carola Saavedra, Sylvia Plath, e a Sara Regina Albuquerque França. Aproveito para indicar três livros específicos agora: o primeiro é Carta à D., do André Gorz. Além de filósofo, teórico da questão social, e jornalista, Gorz era um escritor bem cuidadoso, um artista da palavra, por assim dizer. Nessa pequena homenagem que compôs para sua esposa, Dorine, há um sopro de esperança sobre o gênero humano e o alcance do amor. Em tempos que essa esperança falta — todos os tempos? — Carta à D. faz bem ao coração.
Recomendo, também, Giz morrendo, da escritora alagoana Sara Regina Albuquerque França. Distribuídos em cinco instantes (vida; lógica; viagem; eu e história de amor), os poemas que constituem Giz morrendo são atravessados pela tensão entre a desintegração e a criação. É um dos meus livros de poesia favoritos e uma de minhas autoras favoritas, não há ninguém escrevendo como Sara e ninguém que seja mais valente do que ela. Essa condição se reflete no seu trabalho, que explora todo um conjunto de ambivalências de modo bastante honesto, “a dor e a delícia de ser o que é”.
Em terceiro, recomendo Vista do Rio, do Rodrigo Lacerda. Esse romance me foi indicado por um professor, quando eu ainda estava no Ensino Médio, e é um dos livros aos quais retorno com mais frequência. Alternando passado recente, passado remoto e presente, Lacerda conta a história da amizade entre Marco Aurélio e Virgílio, sob a sombra do Estrela do Ipanema, um edifício moderno da paisagem carioca. O impulso racional de dominação, a ambição da ordem, as linhas retas e o paisagismo como natureza domesticada, as famílias problemáticas dos anos oitenta, encasteladas na modernidade dos anos 60: o Ipanema é metonímia do Rio de Janeiro, metaforiza o desejo humano de poder e controle, e participa do patético que existe em todo homem que se acredita capaz de dominar coisa alguma, como se fosse o artista, e não o títere do mundo. Sob o concreto armado e a pretensa funcionalidade do edifício, Lacerda expõe a disfuncionalidade afetiva que enlaça os moradores num abraço anfíbio e desolador. “O Estrela de Ipanema profetizou que a solidão humana iria se radicalizar”, Marco Aurélio declara, à certa altura da narrativa. Além da instigante e complicada amizade, cada personagem, tomado individualmente, possui questões e detalhes que contribuem para a verossimilhança do todo. É um excelente livro.