Gustavo Melo Czekster é escritor, autor de O homem despedaçado.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral acordo muito cedo e, assim, começo o dia lendo. Nos últimos meses, tenho preferido ler um ou dois contos ou alguns poemas tão logo acordo, pois sinto que isso suaviza a rotina da realidade e fornece mais leveza para o resto do dia. Em seguida, respondo aos meus e-mails e tomo ciência de fatos ligados à literatura por meio de um clipping de notícias. Só depois disso considero o dia como oficialmente iniciado. Não tenho uma rotina matinal estabelecida, pois posso variar a ordem das tarefas, mas prefiro começar o dia aos poucos, estabelecendo uma “suspensão momentânea”, não da descrença, mas da realidade, deixando de acompanhar a carga sufocante de notícias providenciadas pelos noticiários matutinos e jornais para perseguir elementos que me ajudem a escrever de maneira mais eficaz e plena.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que trabalho melhor pela manhã. Aos poucos, a realidade massacrante da rotina vai se impondo, com seus prazos, horários, compromissos, filas, buzinas e pressa, então, quanto mais jovem e inocente for a manhã, mais a minha literatura rende. “Escrever pela manhã e revisar pela noite” é um mote pessoal.
Não tenho nenhum ritual de preparação. A vida impede-me de dispor de muito espaço para preparação para a escrita, pois consigo escrever somente em migalhas de tempo, então cada mínimo segundo precisa ser aproveitado.
O único ritual que sigo – e nem sei se pode receber esta denominação – está ligado à água. Existe algo na fluidez do líquido que associo à imaginação e me ajuda a ultrapassar momentos difíceis da escritura. Assim, quando estou em alguma parte tensa ou trancado em algum ponto do texto, levanto-me para lavar as mãos, para lavar a louça ou para tomar banho. Não tem nenhuma explicação lógica, mas sempre me auxilia no decorrer do processo criativo. Parece que o texto fica mais fácil de ser disciplinado, quase como se ele fosse uma torrente de água que precisa de direção.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Pouco ou muito, não importa, mas estou sempre escrevendo algo. Não escrever me deixa inquieto, mau humorado e até com dor de cabeça. Quando estou com a caneta na mão, o tempo parece que anda mais devagar e o mundo fica mais simples, então prefiro estar sempre escrevendo, e não estabeleço diferença entre ficção, ensaios, textos acadêmicos, postagens no meu blog ou no Facebook ou até mesmo textos técnicos. Escrever é escrever, só é necessário medir o alcance das palavras e o seu objetivo. Imagino que, um dia, a minha imaginação irá escoar até a última gota e, enfim, essa vontade de estar sempre escrevendo irá cessar, permitindo-me viver uma vida mais plácida como leitor ou como observador silencioso do mundo. No entanto, o tempo está passando e parece que a imaginação e a criatividade (assim como a técnica literária) ficam mais afiadas e certeiras. Escrever é mais uma prática constante do que uma habilidade inata.
Não tenho metas de escrita diárias. No domingo, estabeleço uma lista ideal de textos e tarefas que pretendo realizar no decorrer da semana, considerando-se os prazos e o seu grau de importância. No intervalo dessas tarefas, como prova da única subversão literária a que me permito com indulgência, escrevo textos por prazer puro e simples. Literatura também é algo divertido, não precisa ser levada a sério o tempo todo: é necessário criar um espaço lúdico dentro de rotinas de escrita, senão a graça acaba.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A palavra que melhor define o meu processo de escrita é “caótico”. Algumas vezes criei um método ou processo para padronizar a escrita, mas, em toda ocasião que tentei cumpri-lo, logo a inconformidade criativa surgia e eu estava mais descumprindo as “regras” do que as obedecendo. Hoje aprendi que o melhor método é deixar fluir, mas sempre com um objetivo em mente. Por mais instável que seja o processo, também sou o meu primeiro leitor e tenho vontade de ver a história bem escrita, com todas as suas partes bem delineadas. Dessa maneira, escrevo de maneira caótica e contundente, mas sempre de forma progressiva, em direção ao final, nunca andando em círculos. Também quero ler a história que estou escrevendo, tenho tanta curiosidade quanto qualquer leitor.
Também não sou uma boa pessoa em seguir notas. Por causa disso, prefiro deixar mais diretrizes básicas nas minhas notas do que um roteiro fixo e determinado. Dessa maneira, meus cadernos de notas estão cobertos por ideias, por lembretes, por pedaços de histórias, por esboços de personagens, por frases de outros artistas, por referências de filmes, por anotações feitas em palestras ou aulas, e nunca sei de onde surgirá o próximo texto que escreverei. Relendo anos depois os meus cadernos, vejo que algumas ideias deles se encadeiam em outras, e que tudo acaba surgindo dentro da minha literatura, de uma forma ou de outra.
Também sou péssimo em pesquisa. Não tenho muita paciência para realizar longos trabalhos de investigação. Em geral, investigo um pouco o assunto, mas logo passo para a escritura. Depois que acabo de escrever, volto a analisar o texto para ver se existe alguma grave incompatibilidade com o mundo real. Então, a minha pesquisa é mais retroativa, para caçar inverossimilhanças, do que um fator determinante para a criação. Claro que, se aparecer algo na pesquisa que talvez forneça um charme adicional para a história, não tenho problema algum em inseri-lo na trama, mas, em geral, não faço muita pesquisa para que isso não influa ou afete demais a minha escritura. O ideal é que a pesquisa não seja incapacitante ou detalhista demais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A melhor maneira de lidar com essas “travas de escrita” é não pensar nelas. Prefiro me concentrar somente em ser digno do texto que estou escrevendo. Fico com o pensamento fixo no texto, e isso impede que situações externas acabem me afetando. Se porventura parasse para refletir a respeito do que estou fazendo, sobre as implicações, prazos e expectativas, com certeza acabaria me bloqueando, então o mais adequado é manter o foco voltado para o aperfeiçoamento constante da escrita. Se ela corresponder às expectativas, terei atingido meu objetivo; se falhar, ao menos sei que o texto está bom de acordo com o momento de vida que eu estava passando.
A única maneira possível de lidar com a procrastinação é sentando e escrevendo. Pode ser ruim, pode ser feio, pode ser que depois o único destino seja a lata de lixo, mas o importante é estar escrevendo. Se existir uma prática constante, logo o texto sairá ao natural, e a procrastinação será passado.
Sobre o medo de não corresponder às expectativas, o único receio que tenho é de não corresponder às minhas próprias expectativas. Como sou um crítico muito cruel dos meus próprios textos, não existe nenhuma frustração externa que seja capaz de superar a minha inconformidade com o meu próprio texto, o qual sempre acho que ficou devendo em relação ao que imaginei. Para ter chegado ao mundo, o meu texto passou por mim, seu mais persistente crítico, e sobreviveu, ou seja, dificilmente algo irá me desanimar, só servirá para que eu aperfeiçoe os textos futuros.
Quanto à ansiedade de lidar com projetos longos, é o mesmo que ocorre com a procrastinação: no momento em que escrevo um pouco de cada vez, a distância até o final vai progressivamente reduzindo. A melhor maneira de acabar com a ansiedade é ceder a ela, e permitir que sirva de combustível para alimentar o texto e fazê-lo ir logo até o fim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes cada texto. Além das constantes reescrituras, estou sempre pensando em como o texto pode ficar mais efetivo, o que me faz revisá-lo cada vez mais. Não existe um número específico de revisões que eu faça: alguns textos pedem muitas, outros menos. Alguns textos, pela sua complexidade, pedem revisão incessante e cruel. Costumo ler meus textos em voz alta, alterando a impostação da voz e a sua intensidade, para ver se eles fluem bem, e, em geral, os excessos, cacofonias e problemas acabam surgindo com clareza. No entanto, cada texto tem a sua própria forma de ser lido, se é rápida ou lenta, irônica ou séria, e é para essa voz do texto que acabo revisando.
Mostro os textos para alguns colegas escritores, em especial para ver se o ritmo está bom ou se ele faz sentido. No entanto, só faço isso com os textos sobre os quais tenho dúvidas. Existe uma categoria de textos que leio e não sinto necessidade de perguntar para outros escritores se eles estão bons ou não, pois sei que correspondem àquilo que imaginei.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sem dúvida, a tecnologia é uma ferramenta que facilita os meus escritos. Não poderia desdenhar o seu extraordinário alcance e capacidade de ajudar quem está escrevendo, em especial para rastrear palavras repetidas, ver como funciona o deslocamento das cenas, pensar em novas variações do começo e do fim, refletir até mesmo no aspecto visual do texto.
No entanto, ela não é determinante para a minha literatura. A tecnologia ajuda, mas não escreve os textos. Se existir papel ou qualquer outro meio de registro, não tenho problema algum em usá-los. Inclusive prefiro escrever o primeiro esboço à mão e só depois passá-lo para o computador, já refletindo e modulando o ritmo. É uma forma inclusive de revisá-lo nessa conversão da mão para o computador, do papel para a tela. Sinto que a escrita à mão está mais próxima da inspiração genuína, enquanto que a digitação em um teclado tira um pouco da espontaneidade do texto. Mas isso, claro, em relação ao meu processo de escrita. Também me sinto confortável em escrever esboços no computador e depois passá-los para texto escrito, para, em seguida, reescrevê-los no computador. Alguns textos pedem um tratamento diferenciado, não existe nenhuma fórmula que eu siga de maneira absoluta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Em primeiro lugar, as minhas ideias vêm da inconformidade: recuso-me a crer que estou em um mundo no qual tudo já está previamente ajustado. Recuso-me a crer que a vida é isso que estamos vendo. Recuso-me a crer até mesmo na lei da gravidade ou se estou aqui neste exato momento. A literatura nasce da subversão não só em relação às ordens inexoráveis do mundo, mas contra as imposições da realidade.
Contudo, as minhas ideias também surgem da observação. Escritores são pessoas que observam o mundo com um olhar muito particular, muito detalhado. Vista de perto, qualquer pessoa ou situação é uma história em potencial a ser contada. O problema é parar de observar: o mundo está cheio de histórias capazes de serem contadas e de despertar os sentimentos mais díspares em outras pessoas, a questão é escolher quais eu terei tempo para contar. Existem histórias, também, que tenho noção de que não serei capaz de contá-las de forma apropriada e, sobre estas, prefiro silenciar a me arriscar a arruiná-las por meio de uma construção deficiente. Para mim, a verdadeira sabedoria literária é saber quais histórias não tentarei escrever.
O único hábito que cultivo para ser criativo, além de observar o mundo em busca de qual história se esconde como uma pepita de ouro em meio ao restolho da realidade, é fazer uma pergunta simples: “e se?”. Por meio desta pergunta frequente, consigo estar sempre me estimulando a buscar respostas dentro de uma lógica não do acontecimento, mas do que poderia ter acontecido. É um exercício muito estimulante para a criatividade, e me deixa em constante estado de reflexão e tensão sobre as consequências ficcionais de cada fato que vislumbro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Depois de tantos anos de leitura e de reflexão sobre o fazer literário, assim como depois de tantos anos aprendendo em aulas e/ou palestras e frequentando grupos literários, percebi que estou cada vez mais eficiente. Os textos vêm ao mundo com maior facilidade do que no passado. Os mecanismos de construção textual foram assimilados e transferidos para o estilo; o que antes saía com dificuldade e muito trabalho braçal, hoje se desenvolve de forma mais orgânica. Estou me sentindo mais confortável com o meu fazer literário, e percebo que estou próximo de escrever as histórias que realmente ambiciono.
Se eu pudesse retornar ao momento em que estava escrevendo o meu livro, não diria nada. Tudo segue o seu propósito, e o livro veio ao mundo da forma que eu desejava, tanto nas virtudes quanto nos defeitos (os quais hoje consigo ver com mais clareza e sei que fazem parte da sua existência). Se pudesse dizer algo para mim mesmo no passado, acabaria atrapalhando o processo de criação do livro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Existem vários projetos que gostaria de escrever, mas a verdadeira luta do escritor é contra o tempo, que se torna cada vez mais escasso ao passo que as forças – pois escrever também é um ato que consome muita energia – diminuem. Hoje sei que não conseguirei escrever tudo o que desejo, mas farei o máximo possível. O meu destino é escrever até tombar, espero que no meio de uma frase enigmática.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é o próximo que escreverei. Para mim, a literatura só se justifica se eu escrever os livros que gostaria de ler e que mais ninguém tem paciência para realizar.