Gustavo Ferraz de Campos Monaco é professor do Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há uma rotina, em geral, que comporta exceções. Acostumei-me a acordar bastante cedo, o que me permite uma rotina um tanto quanto vagarosa. Faço o café e preparo o café da manhã de meus filhos, enquanto minha mulher lhes prepara o lanche da escola. Ainda antes de acordar as crianças, leio dois jornais (O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo). Depois de deixá-los no colégio, entre 7h e 7h10, faço uma caminhada, em geral de 30 minutos e às 8h15 já estou trabalhando.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Hoje em dia trabalho muito bem em qualquer período, desde que esteja bem física e mentalmente. Mas houve uma época, antes dos filhos, em que dormia e acordava tarde e, por isso, não conseguia trabalhar de modo produtivo pela manhã.
Quando sento para escrever preciso ter boa iluminação e ventilação. Escrevo com música. O silêncio total me distrai, pois gosto dele. E quando atinjo um grau de concentração tal, o barulho circundante deixa de me atrapalhar. Nesse sentido, minhas crianças estão sempre por perto e me animam na persistência de sua presença.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O método que desenvolvi só me permite uma escrita concentrada. É um período de efetiva tradução de uma escrita mental, que já tinha feito, para a escrita convencional. Claro que estou exagerando. Escrevo, efetivamente, nesse momento. É o período em que a inspiração se torna importante. Mas a ideia já fora mentalmente construída e burilada.
Assim, quando estou nesses períodos de escrita convencional, minha meta é a de escrever o máximo possível. Mas às vezes passo dias sem escrever nada. Como sou professor, escrevo mais e melhor nos meses de dezembro, janeiro e julho, quando temos férias escolares ou em feriados longos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A preparação para a escrita é bastante intensa, vigorosa e ao mesmo tempo vagarosa. Só consigo escrever quando estou bem seguro a respeito das linhas gerais que pretendo transmitir. Nesse sentido, eu diria que minha escrita é antes mental. Só depois que estou convencido de que a escrita é viável eu efetivamente escrevo. Leio muito antes de escrever e, por isso, padronizei sinais que coloco à margem dos textos e nas primeiras páginas dos livros para eu que eu não me perca depois. A pior sensação é a de pensar: “onde foi mesmo que li isso?”. Tenho uma memória visual muito boa, de modo que consigo me lembrar se aquele trecho que estou procurando estava na página da direita ou da esquerda, mais para cima ou mais para baixo, mas perde-se muito tempo com esse processo de reprocura. Daí as notas que vou deixando pelo percurso de leitura e reflexão e que são importantes para a construção do texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou uma pessoa organizada e metódica, o que facilita enfrentar esses percalços que você descreveu. Imprevistos acontecem e, por isso, planejo-me sempre para atender eventuais prazos. Claro que nada é infalível. Falhei diversas vezes. Mas uma característica da minha personalidade é ir tirando da lista de pendências coisas mais simples, ao mesmo tempo em que me dedico às mais longas e complexas tarefas. Acabo falhando, quando as coisas se acumulam, nas intermediárias, ou seja, nas que não são nem complexas nem simples, nem curtas nem longas…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A cada dia o trabalho começa com a revisão do texto escrito no dia anterior. E depois de concluído, deixo um tempo para o texto descansar e faço uma leitura crítica, como se não fosse eu quem tivesse escrito. Como se eu fosse o examinador. Quando fazia meu mestrado tive uma conversa casual e inesperada com o doutor Castanheira Neves, um importante filósofo do direito e professor em Coimbra. Ele me disse, nessa ocasião, algo que ninguém tinha dito antes, mas que é uma verdade cortante: “o escritor é um péssimo revisor”. Nós ficamos viciados em nosso próprio texto, em nosso estilo. E lemos o que quisemos dizer, e não necessariamente o que efetivamente dissemos. Daí a distância, o tempo entre o término da escrita e a leitura crítica.
No entanto, sou sempre desconfiado de mim mesmo (e acho que todos deveriam ser desconfiados de si próprios… quem não o é acaba confiante demais, ou arrogante demais…) e, por isso, sempre peço a alguns poucos colaboradores, amigos mesmo, que leiam e critiquem o que escrevi.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Direto no computador, que é, para mim, um misto de duas saudades da minha infância: a máquina de escrever (que, ainda bem, foi substituída por um mecanismo que permite a edição) e o correio tradicional (que hoje em dia entrega apenas compras e contas…). Raramente escrevo à mão, embora não tenha dificuldades, se for preciso. Mas a leitura crítica é feita no papel, com o computador desligado. Quando tentei fazer direto na tela o trabalho foi colocado em risco. Nós nos tornamos imprudentes com os recursos de edição, às vezes…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Os melhores hábitos são antiquíssimos: leitura, oitiva e reflexão. Leitura de outros que pensaram até certo ponto, mas não avançaram, ou que concluíram algo que não me parece bem: completar e discutir científica e criticamente, portanto (uma das belezas que ainda se encontra na academia). Oitiva de alunos e de pessoas comuns, não versadas em minha área: são as instigantes observações destes que muitas vezes garantem bons avanços críticos. Reflexão que ocorre no silêncio, de mim para comigo mesmo, ou em conversas com colegas da mesma área: a observação contemplativa da realidade é essencial para a criatividade esteada em fundamentos sólidos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Mudou demais. Amadureceu dentro das minhas limitações de pessoa humana. E espero que ainda amadureça muito e sempre. Quanto aos trabalhos acadêmicos, uma hora é preciso abandoná-los à própria sorte… sempre achamos que é possível melhorar, complementar. Mas se esse sentimento continua em espiral, perdem-se prazos. Abandonei minha tese. Depois eu a revi para publicação. São dois retratos daqueles meus dois diferentes momentos. Estou preparando a segunda edição. Será um terceiro retrato. Lutar contra isso seria ficar confinado num só tema à luz de um só tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou professor e pesquisador. Projetos são parte importante da minha rotina, mas eles vêm e vão. No momento estou finalizando um projeto. Em seguida começarei outro. É sempre assim. Na hora certa eles se apresentam e, por vezes, se impõem. Nesse momento eles se (auto)selecionam, ganhando um deles relevância, com o que acaba eclipsando os outros. Quando isso acontece eu tento executá-los. É um contínuo desafio. Se um dia eu achar que os realizei todos, melhor me aposentar e mudar meus objetivos.
Quanto a um livro que gostaria de ler e não existe (será que não existe?)… uma coisa que me instiga, do ponto de vista histórico, é pensar “e se…”. Isso me parece que abre possibilidades ficcionais interessantes para romances: e se a monarquia não tivesse caído quando caiu? Quando teria caído? Como? O que teria desencadeado a queda? Ou estaria hígida?; e se o golpe militar de 1964 não tivesse ocorrido? O que teria acontecido? Quem governaria hoje o Brasil? Como estaria a economia? Qual seria a configuração do Estado de Direito? Seria democrático? E dá para fazer o mesmo no plano mundial… acharia interessante que alguém escrevesse nessa perspectiva.