Gustavo Castro Araujo é autor de “O Artilheiro” e “Pretérito Imperfeito”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Creio que num mundo como o nosso todos têm uma rotina. Não há como fugir disso. Pouco importa se temos um emprego, se temos filhos, se somos casados. Depois de um tempo, a mente nos condiciona a adotar os mesmos hábitos, a fazer as mesmas coisas. Todos os dias. Quer no trabalho, quer em casa, fazemos tudo igual. Observamos os mesmos horários, formulamos as mesmas perguntas, nos indignamos com as mesmas coisas. Sucumbimos a essa repetição de forma consciente porque isso nos dá segurança, porque acreditamos ter o controle dos nossos dias. Curioso é que, mesmo entorpecidos, temos a convicção de que um dia acordaremos e o espelho nos mostrará a imagem de Gregor Samsa, obrigando-nos a despertar, a fazer algo diferente, a mudar.
Penso nisso todas as manhãs, enquanto faço a barba. Mas logo é hora de acordar as meninas para ir à escola, para ir ao trabalho, para ler os emails, para analisar os processos. Pensando bem, minha vida é mesmo kafkiana.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Houve um tempo em que eu quis ser como Murakami, ao menos nos hábitos. Acordava às 4h30 para escrever. Realmente, o silêncio da madrugada era bastante propício para desenvolver as ideias, para deixar a imaginação fluir. Às 6h30 saía para correr e só então ia para o trabalho.
Contudo, um belo dia surgiu o Entre Contos, uma comunidade literária que passei a gerenciar, reunindo um grupo de escritores cada vez maior. Isso acabou exigindo muito mais do meu tempo e, eventualmente, colocou um fim em meus hábitos solitários matutinos.
Na verdade, o Entre Contos não só provocou uma alteração de meus horários no tocante à escrita, como levou a uma reestruturação completa de minha relação coma literatura. Isso porque na época de ativação da comunidade, lá em 2013, resgatamos uma tradição inaugurada pela comunidade Contos Fantásticos, ainda da época do Orkut, de promover desafios literários.
Assim, desde então, elegemos um tema determinado, fixamos um limite de palavras, e escrevemos, de forma anônima, contos a respeito. Comentamos os textos uns dos outros, e elegemos ao final os melhores em votações transparentes.
Os desafios em si são uma motivação e tanto para a escrita, já que você sabe, de antemão, que seu texto será lido e comentado por outros escritores, muitos deles exigentes, que te fornecem um retorno sem igual sobre sua maneira de escrever, sobre seu poder de persuasão, sobre sua técnica e assim por diante.
Assim que o ritual de preparação estará sempre atrelado ao tema escolhido dentro de cada desafio, o que garante novas descobertas e epifanias a cada certame.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária. Segundo alguns, Hemingway dizia que todo escritor deveria produzir algum tipo de texto todos os dias, só para manter a prática. Não consigo ser assim. Não consigo dizer a mim mesmo: escreva mil palavras por dia. Dependo muito da inspiração. Se ela vem, pronto, saem quantas palavras quanto possível. Do contrário, esqueça. Melhor parar e ler alguma coisa interessante.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Normalmente, quando a ideia surge, eu consigo conceber o texto todo. Faço um esquema, anotando os aspectos principais. Depois passo ao enredo macro, escrevendo o conto de uma só vez. Por fim, acrescento os detalhes.
Você falou em pesquisar, que é algo que me atrai bastante. Além de entreter e informar, a pesquisa serve como fonte de inspiração, nos abre horizontes, estimula a curiosidade, confere credibilidade ao texto. Claro que você não vai transformar sua história de ficção numa obra acadêmica, mas se souber dosar, os elementos técnicos e históricos hão de enriquecer a trama, fazendo com que o leitor se sinta mais envolvido, mais próximo daquela realidade.
Escrevi certa vez um conto sobre um piloto kamikaze que tinha medo de morrer – foi para o desafio sobre “Fobias”. Para fugir dos clichês que cercam o assunto, ou melhor, para escapar da ideia comum de que esses pilotos eram fanáticos que passaram por lavagem cerebral, decidi mergulhar a fundo nos detalhes. Entre outros lugares, a pesquisa que fiz me levou às cartas que esses jovens escreviam para as famílias – hoje disponíveis na internet –, demonstrando que muitos deles relutavam em morrer pelo imperador, que eram submetidos a tratamentos sub humanos. Descobri como era o dia a dia deles em suas bases aéreas, o medo que tinham da invasão americana, o tipo de avião que usavam, o armamento, os poemas que escreviam antes de partir para a decolagem derradeira, enfim, um universo fascinante que nos é desconhecido e que só me foi revelado porque eu cismei de pesquisar.
No final, achei tudo tão interessante que acabei inserindo no conto. Pedi a um amigo que vive no Japão que traduzisse e transcrevesse para o japonês um verso que concebi como o poema da morte. Foi uma experiência fascinante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não costumo travar para escrever. Com os desafios do Entre Contos, a mente está sempre alerta, pronta para captar o menor sinal de inspiração. Agora, claro que a procrastinação está sempre à espreita, especialmente por conta das redes sociais. Sempre queremos dar uma olhada na comunidade, saber o que está sendo discutido, se há comentários sobre os contos, qual a tendência do eleitorado…
O negócio é dominar mente e, uma vez que a inspiração se mostre, deixar de lado o que não interessa, o que vai desviar seu foco. Disciplina é liberdade, já dizia o velho Renato Russo (ou talvez outra pessoa antes dele). Isso é especialmente verdade no que se refere à escrita. Sabendo conter a curiosidade pelo supérfluo, o escritor vai mais longe.
Já o medo de não corresponder às expectativas é sempre presente. Ainda que o escritor esteja consciente de que domina a arte de escrever, sempre estará curioso para saber como seu texto será recebido. E claro, na maioria das vezes, não estará pronto para lidar com críticas que considere infundadas. Mesmo que externamente agradeça as observações construtivas, na verdade, em seu interior, estará desejando que o autor da injustiça vá tomar banho no inverno e que o chuveiro elétrico queime.
Projetos longos são mais complicados. Embora eu tenha escrito dois romances e mais um livro infantil, não me vejo atualmente preparado para enfrentar uma rotina assim extenuante. Contos terminam sendo mais interessantes pelo fato de que consomem menos tempo para serem produzidos e, além disso, para serem lidos e comentados. Aliás, se há ansiedade, é pelos comentários. E nisso, o Entre Contos só fez aumentar as expectativas, já que são poucos os sites da internet onde seu texto recebe tantos comentários diferentes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou um escravo da revisão. Por vezes tenho que me lembrar de Borges, que disse que chega um ponto em que o escritor tem que se libertar de seu texto sob pena de jamais conceder-lhe vida própria.
Estas perguntas mesmo, que ora respondo, estão sendo vítimas dessa revisão obsessiva. Por mais que eu reanalise, reescreva, apague, escreva de novo, sempre haverá um detalhe a acertar. Se amanhã eu olhar para estas respostas certamente pensarei que não estão boas o suficiente e, inevitavelmente, concluirei que devo começar tudo outra vez.
Antes de publicar os trabalhos, quando finalmente me convenço de que é inútil prosseguir nas revisões, peço à minha esposa que leia o que escrevi. Naturalmente, ela descobre os erros de digitação que passaram incólumes por todas as versões do texto e não raro faz sugestões quanto à trama em si, quanto aos personagens e quanto ao final. É minha mais fiel leitora.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Varia muito. Por vezes a ideia surge quando estou longe do computador e dessa forma acabo usando o que tenho à mão, papel e caneta, celular, mensagem de voz. Mas o normal é que eu utilize o computador mesmo, pela facilidade no que se refere às pesquisas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Existem alguns sites que gosto de visitar e que funcionam, ao menos para mim, como um celeiro de ideias interessantes. Destaco aqui o Vintage News que tem matérias fantásticas – em todos os sentidos da expressão. Também gosto de filmes clássicos, que normalmente têm um enredo mais elaborado. Outra coisa que me atrai são indagações filosóficas e existenciais em obras literárias, não necessariamente as acadêmicas, mas aquelas inseridas em contextos reais, como os artigos escritos pelo médico Oliver Sacks. O último livro dele, por exemplo, publicado post mortem, é uma fonte inesgotável de questionamentos desconfortáveis, desses que fazem a mente trabalhar incessantemente. Chama-se “O Rio da Consciência” e, ao menos na minha opinião, deveria ser lido e consumido por qualquer pessoa que busque vida inteligente.
De fato, ler outros autores ajuda muito no processo criativo. Não só os medalhões, mas também escritores não conhecidos do grande público. No Entre Contos há muitos deles, sempre prontos a nos surpreender com sua verve imaginativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que o processo de escrita é algo em constante evolução. Atualmente dedico mais tempo para que as ideias se assentem. Antes eu tinha essa necessidade de que os textos ficassem prontos o mais rápido possível – mesmo com toda a revisão que eu me obrigava a fazer. Agora deixo que as letras se decantem. Espero dias para reler o que escrevi, algo que não ocorria no início. Meu sonho é ser como Joyce ou Proust – não na técnica, obviamente, pois isso é evidentemente impossível, mas na paciência para escrever. Levar anos escrevendo um romance. Pode parecer suicídio para quem deseja viver da escrita hoje em dia, mas para quem não tem essa intenção (meu caso), a ideia se torna bastante atraente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho o projeto-não-tão-secreto de transformar o Entre Contos em uma editora voltada unicamente para escritores desconhecidos do grande público. Não tenho a menor intenção de torná-la um sucesso comercial, mas sim dar voz a essa galera que escreve muito bem e que, por conta da vocação eminentemente financeira do mercado editorial, jamais terá voz.
Quanto à outra pergunta, provavelmente o livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe seria um livro para eu escrever. Tenho algumas ideias em mente, desdobramentos de contos que escrevi, que podem ser promissoras. Mas isso demanda um tempo que hoje me falta.