Guilherme Ottoni é físico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo o dia, normalmente, por volta das 12h, quando acordo. Costumo tomar duas doses de uísque (ou de absinto, que embora eu prefira, raramente tenho) assim que levanto e junto fumo meu cachimbo. Tenho compromissos quase todos os dias de tarde, então normalmente saio de casa às 13h e retorno apenas por volta das 17h – 18h. Se fosse para responder que faço isto todo dia acabaria mentindo, porque de fato não o faço. Isso é somente para quando tenho compromissos. Porém, nos dias que não tenho, não há regra que dite quando irei levantar e nem o quanto irei beber ou fumar. Dessa maneira, não posso dizer que tenho rotina alguma, muito menos matinal, horário que muito provavelmente – a não ser que vire a noite – estarei dormindo. Aqui cabe uma diferenciação importante de rotina matinal e rotina. Isto porque se eu falasse qual a minha rotina matinal seria para, basicamente, repetir o que disse quando respondi como você começa o seu dia?. Rotina é uma asserção mais forte, pois tendo uma rotina não necessariamente se tem uma rotina matinal, portanto vou tomar a liberdade de falar da rotina, no sentido de como procedo na minha escrita, do que apenas no sentido do que faço quando acordo. Dessa forma, não ter uma rotina regular não quer dizer não ter rotina alguma. A escrita, por exemplo, passa por outros âmbitos que não os do dia-a-dia corriqueiro. E além disso, como sou formado numa área de Ciências Exatas, a Física, o meu comportamento para estudar e para escrever são totalmente diferentes um do outro, porém sempre digo que quem se propõe a fazer qualquer um destes estudos – Poesia ou Física – precisa ter duas seguranças em mente: o método e o rigor. O método nos diz como devemos proceder na sequência da proposta que nos fazemos e dá luz em como começar. Já o rigor irá nos dar a certeza de que estamos indo pelo caminho certo e de que o começo também foi certo. Não é porque bebo normalmente várias doses de uísque por dia e fumo meus charutos e meus cachimbos que alguém pode falar que não sigo à risca esses procedimentos. Ambos, método e rigor, me ajudam tanto na escrita de poemas quanto na realização de trabalhos em Física ou Matemática, pois por serem paixão requerem do espírito um certo senso de compromisso. Se me comprometo a escrever um poema ou a fazer dez exercícios de Física, tento aplicar essa regra do método e do rigor nos dois casos, embora nem sempre consiga, já que a vida é cheia de atribulações incontroláveis e não podemos nos garantir de qualquer processo apenas pela promessa de fazê-lo. Então, sigo adiante fazendo ou não fazendo. Em resumo, minha resposta a esta pergunta seria: se cobre para ter uma rotina, mesmo que irregular, de escrever, porém não deixe para amanhã o que pode ser feito depois de amanhã, como diria Mark Twain, pois todos temos um tempo e ninguém, a não ser nós mesmos, pode dizer que tempo é esse.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu melhor horário para escrever está diretamente relacionado com o tempo que passoandando comas pessoas na rua, observandoo seu almoço, me relembrando dos dias de família. Costumo resumir tudo de noite e partir para a escrita durante a madrugada, isto se estou em um dia no qual surge a vontade de escrever, sem outras atividades. Tomo notas de tudo via celular e quando bate a inspiração, escrevo. Depende muito disto, da inspiração, por isso falo que não tenho nenhum ritual de preparação para escrever, tenho métodos para escrever, porém estesse definemcomo sendo simplesmente fumar meu cachimbo ou meu charuto e bebericar algumas doses de uísque durante o dia. Há vezes também que ocorre um fato muito traumático na minha vida, daí corro direto para o papel e faço a primeira versão do poema, mas isto não é comum. Basicamente, vivo anotando nessas notas ideias esparsas de algum poema e quando sinto que é a hora de escrever, faço de bate-pronto, escrevo todos rigorosamente metrificados, mas divido meus poemas nos que eu chamo de pensadosem comparação com aqueles que chamo de sentidos, pois existe uma diferença entre ambos. Não é que não se pense em um poema sentido nem que não se sinta um poema pensado, porém a práticame mostrou que cada um tem seu lugar reservado. Um sentimento constante – que poderia ser tido como um ritual de preparação – é a enorme angústia que sinto quando estou muito triste (ou muito alegre) e me sento para escrever. Estes poemas eu chamaria de poemas de angústia, pois são tanto pensados como sentidos. Uma dica que eu dou para quem quiser começar a escrever ou que se sente travado na hora de sentar e botar no papel é dar uma caminhada, observar as pessoas ao seu redor, o que está acontecendo no lugar onde se esteja, fumar um cigarro (caso goste e tenha idade para isto!), ou fazer algo que lhe dê prazer em um ambiente externo, fresco, porque pela minha experiência tanto de estudos de Física e Matemática quanto de escrever poesia, tomar um ar, relaxar, abre um pouco a mente para ideias novas. Respondendo mais sucintamente a pergunta, trabalho melhor de madrugada, porém a cada hora do dia que estou acordado, me sinto pleno para escrever – mas escrevo quando quero – porquanto observo o dia-a-dia de uma perspectiva de fora, de fora da normalidade das pessoas. Não há rotina, escrever muito é necessidade porque muitos de seus poemas sairão péssimos, outros ruins, outros mais, medíocres, e às vezes, somente às vezes, se consegue criar um poema que lhe satisfaça e também satisfaça a audiência. Isto aprendi com o falecido Alphonsus de Guimaraens Filho. Se para ele já era assim, para mim deve ser muito mais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, porém tenho ideias para poemas todos os dias. Embora não se concretizem em poemas diretamente, ficam trabalhando em meu inconsciente, e meu inconsciente escreve todos os dias, um trabalho árduo nos sonhos, eu diria, pois o que é a Poesia a não ser sonhos e desejos reprimidos vindos à tona, pesadelos que nos atormentam, viagens aos mais profundos âmagos de nossa geração. Isto só se tem, como disse anteriormente, arejando a cabeça, porque neste processo o inconsciente toma parte ativa do encadeamento de ideias – mas, como tipicamente inconsciente, é não-linear – e cabe ao poeta quando escrevedescrevê-las como um filme do qual já se esqueceu parte. Isto torna a poesia lírica ou surrealista. Particularmente, prefiro a lírica, mas é apenas gosto. Os pesadelos nos dão uma outra forma de encarar o mundo onde nós mesmos vivemos, é um devaneio sonolento e sarcástico, que tira sarro dos nossos maiores medos, mas o que fariam os poetas se não falassem de seus medos e deles não rissem? Tendo dito do quanto sonhar é importante, não em como ter um grande carro ou casa, mas de como transfigurar as pequenas percepções do ordinário e transformá-lo em extraordinário, venho dizer que nem sequer tenho meta de escrita anual, quanto mais diária. Eu escrevo e escrevo quando estou no clima para escrever, pois, novamente por experiência própria, percebi que quando escrevo fora do clima, normalmente, saem poemas muito pensados e que não se encaixam com a minha realidade.Tento,então,dentro dos meus padrões de método e rigor, escrever na mesma língua de mendigos, bêbados, crianças ou adolescentes (adolescentes, principalmente, eu diria). Alguns objetariam falando que a escrita metrificada seguindo o padrão da Gramática Normativa jamais iria se conectar com essas pessoas. Em parte, concordo, mas a maioria dessas pessoas tem o Português falado muito bom e com muito ritmo (exemplo dos Slams de Poesiaonde há impressionantes versos rítmicos, muito embora não haja necessariamente conhecimento de Gramática, de Harmonia ou de Melodia). Então, escrever metrificado, para mim, seria dar o compasso de sua estrofe para eles. Os adolescentes gostam mais dos meus versos, pois como digo: para os adolescentes só vale desejo e sangue. Dessa forma, anotando as ideias, sonhando os sonhos (ou os pesadelos) vou construindo notas que depois de decidido estarem todas prontas e não haver mais ideias para encaixar, sento e me foco sóem as passar para o papel. A grande questão é: quando terminar as ideias para um livro e fechar um ciclo para me concentrar nele em pouco tempo?Estou me deparando com isto de novo agora, e a resposta que posso dar é que, relativamente, quando se está com um projeto de livro na cabeça, as ideias, conforme o tempo vai passando, acabam por começar a se repetir, e este momento creio ser o certo para encerraros poemas de um livroe assim de um ciclo. Apenas para começar outro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como escrevo versos, o processo é diferente da tradicional dissertação de mestrado ou doutorado. É estranho notar que mesmo tendo notas suficientes para escrever um poema pretendido, eu não o faça por uma questão que apenas estou começando a desvendar: existe um tanto de momento certo para escrever, não é como se somente por ter compilado notas, ter feito os resumos, eu pudesse criar um poema. Existe algo mais, essa diferença sutil entre o acadêmico e o artista – que de fato creio existir. Visto assim a escrita mais vem a mim do que eu me levo a ela. Decerto, é um processo intrincado. O método e o rigor ditos anteriormente têm lugar apenas quando o poema começa, não há nada que possam fazer para que eu comece a escrever. E rebate agora um sentimento de que escrever uma tese não se dá no mesmo processo de escrever um poema, ou até mesmo um livro de romance, há de se ter perfil para cada um desses tipos de escrita. Respondendo mais sucintamente, não é que seja difícil começar, nem que haja um caminho de passagem da pesquisa para a escrita, o começo apenas ocorre para mim, não depende da minha vontade, mas sim, do momento, da famosa inspiração – e a partir dela da aplicação do método e do rigor conforme acima mencionado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ah! A procrastinação é uma santa! Bem encadeado com as ideiasacima está o meu pensamento sobre ela: não se deve lutar contra ela, mas, sim,deixa-la agir no seu inconsciente – que gere angústia, não importa, a angústia é parte do ofício– para que quando um momento reflexivo lhefizer andar no caminho das palavras e do ritmo certos, se possa sempre, inadvertidamente, deixa-lo lhe conduzir pela escrita. Como mencionei, a procrastinação tem muita valia quando pensada no contexto da poesia e não de um trabalho acadêmico, quase sempre atrelado a metas e a calendários muito rígidos. Não há medo de não corresponder expectativas, ao menos no meu caso, uma vez que estou ciente de que qualquer livro pode lograr um êxito enorme,quanto pode ser um fracasso,sem necessariamente haver justificativa clara e suficientepara isso, como diria Bukowski. Obviamente, gostaria que o público me entendesse, mas se não me entende, não há nada que eu possa fazer, uma vez já me tendo feito desentendido paraele. Por último, para mim, um projeto longo nada mais é do que uma sucessão de projetos pequenos, de maneira que tento finalizar os pequenos que daí com certeza terminarei o grande. Não me entenda mal, não estou falando que o caminho seja fácil, há riscos no meu pulso para cada verso feito, porém estou tentando mostrar que não é impossível. Todos podem e devem, caso queiram, achar sua vocação na escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muito meus poemas antes de mandá-los para qualquer forma de publicação. Como trabalho segundo o método e o rigor acima descritos, preciso da forma e da métrica perfeitas, nada pode estar fora de lugar num poema, tudo deve estar prontamente colocado como se para confundir e fazer pensar o leitor ao mesmo tempo que o faz ter certeza da dúvida e acreditar na sua própria reflexão acerca do poema. Não penso em agradar outras pessoas a não ser eu mesmo quando escrevo um verso. No entanto, eu mostro, sim, meus poemas para outras pessoas, em especial para meus mais queridos amigos, antes de os mandar para publicação. Creio que uma primeira leitura não devaser de um crítico que, pelo ofício, vai lhe criticar, mas, talvez, uma leitura mais amena, por parte de pessoas queridas em sua vida, sirva melhor como primeira escolha, porquanto também serve para sua própria reflexão acerca do que escreveu, revisando sempre e sempre em busca do metro perfeito. Não há melhor crítica do que a feita por um amigo sincero e que se importe com o que se escreveu tão profundamente quanto você mesmo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é de um distanciamento respeitoso, uma vez que creio ser uma forma muito importante e ainda inexplorada para as artes em geral ao mesmo tempo que muito pode corromper o âmago das mesmas num piscar de olhos. Dessa forma, faço sempre uma cópia à mão dos meus poemas e, depois de prontos, os transcrevo para o computador, de maneira que haja sempre um salva-guarda das minhas produções, até porque existe toda uma delicadeza em escrever com a caneta e fazer a tinta –o seu próprio sangue –passar para o papel, escorrer da mão até o verso. E, como disse, ainda há muito a explorar da tecnologia além de simples transcrições analógico-digital.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Realmente não sei de onde exatamente vêm as minhas ideias, embora, além do que disse anteriormente a respeito da procrastinação ser importante para se ter ideias, eu mantenha a cabeça no mundo de possibilidades que existe quando lemos um livro, prestamos atenção no quotidiano a nossa volta, nos entregamos de corpo e alma para a angústia existencial. Eu acho, e isto é um mero achismo, que para me manter criativo tento sempre buscar o que está escondido, seja nos recônditos da minha existência, seja na conversa de uma senhora com uma criança num trem do metrô: há um mistério e uma simbologia naquilo que está escondido, porquanto há o desejo de ser descoberto. Portanto, para me manter criativo – já que assim a pergunta me chama, muito embora eu não tenha tanta certeza de que sou de fato criativo – apenas me mantenho como um recém-nascido, tentando fazer de cada segundo uma experiência nova e dela descobrir os seus mistérios.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que a motivação original para escrever mudou pouco em mim desde quando comecei a fazê-lo: é sempre a vontade de salvar-me em vida através da arte. No entanto, conforme fui lendo mais livros, ampliando o meu universo de influências, pude ir percebendo que existe toda uma sorte de poetas que se aproxima de mim, enquanto há uma outra sorte que se afasta, no que creio ser exatamente a minha procura por um estilo próprio: a História ensina como cada época refletiu na poesia as suas tendências e, para poder se amadurecer na escrita, é necessário entender como cada artista, mesmo se definindo-se pela negação daquilo que já foi, se apresenta como fator do momento histórico em que vive. Acredito estar na mesma situação, no meio do meu próprio processo histórico de descobrimento de novas formas, e isto me faz mudar a cada novo poema enquanto escritor. Se pudesse falar comigo mesmo quando comecei a escrever, não diria nada, nem mesmo me alertaria para o quão penoso o sacrifício seria, o mundo corre como corre, interferir nesse meu processo seria me enterrar enquanto poeta, pôr um fim no que acabara de começar. Não diria nada a mim mesmo do início dos meus versos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Na verdade, existem poucos projetos que ainda quero fazer, então não há nada que possa dizer a respeito de projetos que nem mesmo comecei. Há alguns ensaios que gostaria de escrever, o meu próximo livro também me consome tempo, mas nada que de fato seja um pensamento urgente em mim, já que o ânimo decerto falha. Esta última questão é a que tenho mais dificuldade em responder, uma vez que sendo formado nas Ciências Exatas, tendo a ter um certo distanciamento por perguntas auto-referenciais ou contraditórias, pois se o livro que quero ler ainda não existe, como sei que é certo querer lê-lo? Mas também imagino que, para esta pergunta, apenas o temperamento artístico possa me ajudar: o livro que quero ler e ainda não existe é o livro que não quero ler, muito embora já o tenha lido. Se isto fizer algum sentido, tome como resposta.