Guilherme Mattos de Carvalho é escritor, roteirista e professor, mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UERJ e sócio da Metaforia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como sou professor, meus dias são muito diferentes. Às vezes, acordo muito cedo e volto no início da tarde. Às vezes, saio depois do almoço e volto quase dez da noite. Assim, não tenho uma rotina. Se estou em casa pela manhã, fico na cama meia hora lendo as notícias até o corpo esquentar. Aí é café puro e trabalho (parei de fumar quando o coronavírus chegou).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em um dia normal de bunda na cadeira em horário comercial (um sonho que nem sempre ocorre), com certeza o filé mignon é entre quatro da tarde e oito da noite. Não faço a menor ideia de por que isso ocorre, mas sinto que é um horário em que as ideias das “páginas do dia” já amadureceram na minha cabeça. Sobre rituais: gosto de escutar música enquanto escrevo. Faço playlists para projetos. Ajuda a dar o tom.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo muito todos os dias. Projetos muito diversos: materiais didáticos, provas, roteiros, e-mails. Não tenho uma meta diária, mas o romance que estou escrevendo, como acaba ficando um pouco de lado diante de tantas tarefas urgentes, precisa ser pelo menos revisado todo dia. Nem que eu conserte uma vírgula. Isso é importante para mantê-lo vivo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita já foi muito, muito caótico. Notas soltas, anotações perdidas, ideias pelo meio do caminho. O que me fez mudar foi a experiência como roteirista e meu casamento. Meu sócio na produtora de desenvolvimento, o João Schlaepfer, é um roteirista muito organizado (uma característica comum a roteiristas e incomum a romancistas). Minha companheira, Juliana, também. Então agora eu tenho planilhas e pastas para tudo. Meu processo de escrita, hoje, é muito planejado, pensado e registrado. Não acho difícil começar. Sempre acho difícil terminar. Qualquer coisa na vida. Inclusive, acho que isso está muito relacionado à pesquisa. É muito difícil saber quando parar de pesquisar algo para escrever. Eu sou daqueles que cisma com uma pesquisa, se empolga e perde a medida. Vira uma obsessão.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas de escrita são incrivelmente infernais. Nisso, estou com Philip Roth: escrever é uma luta insana. É difícil imaginar um professor com pavor de entrar em uma sala de aula todos os dias, um cirurgião fugindo de um centro cirúrgico dia sim, dia não. Mas sentamos para escrever e pode acontecer de não rolar, a cortina pode estar fechada. Dá medo. No meio do ringue, você precisa pagar uma conta, estender roupa, cozinhar, ser um companheiro presente, lavar o banheiro, responder um chefe cretino. E talvez aí comece a virada. Você não quer procrastinar porque precisa pagar os boletos e precisa superar o seu chefe cretino (que talvez quisesse ser escritor, mas, como lhe falta talento, tudo que lhe resta é ser um chefe cretino).
Sobre expectativa e ansiedade: é claro que, ao terminar uma página, você pensa: caramba, o Henry James teria feito melhor, a Ana Paula Maia teria sido muito mais brilhante com menos palavras, o Milton Hatoum teria muito mais poesia. Será que sou bom mesmo ou só sou branco? Tenho pensado muito nisso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como vou revisando conforme vou fazendo, num processo contínuo, não sei quantas vezes reviso. Mas posso afirmar que são muitas, sou muito exigente comigo mesmo e com a frase. Minha luta é com a frase.
Mostro o texto a algumas pessoas, principalmente pra Juliana, minha companheira, e pro João, meu sócio. Ultimamente, cheguei a pagar para ter opiniões mais insuspeitas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tento acompanhar a tecnologia. Relutei, mas uso o Kindle. Acho o Final Draft, software de roteiro, um negócio sensacional. Acho o Word superestimado, uso o Google Docs simplesmente, porque vou editando pelo celular. Escrevo muito pelo celular porque tenho insônia e, se eu me levantar da cama para voltar ao trabalho, minha mulher reclama. Então fico rascunhando pelo telefone. Esta entrevista, por exemplo, toda pelo celular enquanto ela dorme. Sim, soa como se a literatura fosse uma amante. Isso já foi motivo de briga por aqui.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Durante muito tempo eu achei que a minha vida não valia uma autoficção. Não sei (ou ainda não sei) extrair literatura do tédio. Me achava normal, comum. Aliás, acho terrível escritor branco sem essa autocrítica. Por isso, ficava meio perdido procurando motivações, tropos. Até que fui percebendo que havia uma convergência das minhas leituras com a minha vida. O colégio católico, o manicômio da rua da minha infância, no Engenho de Dentro, o sistema penitenciário onde trabalhei e dei aula, a decadência do bairro do Encantado. Minhas ideias vêm dali. Religião, ensino, loucura, prisão, falência.
Quando você sabe qual é a sua composteira, sabe o que deve fazer. Tento ler aqueles autores e autoras que falam com minhas obsessões. Philip Roth, Ana Paula Maia, DeLillo, Natalia Guinzburg, Bolaño, Kafka.
Tento evitar telejornal e os jornais diários. Ou seja, evito a hiperinformação. Leio religiosamente a Piauí e a The New Yorker. Meus amigos de esquerda vão falar que sou liberal. De novo.
Como sou roteirista profissional, tento acompanhar filmes e séries, embora esteja muito difícil. Há muitas coisas boas.
Mas nada disso importa se você não está atento. Realmente atento. Infelizmente não é uma coisa que se possa explicar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo de escrita foi exatamente aquilo que mudou em mim. Eu era um jovem adulto muito, mas muito arrogante. Arrogante, desorganizado, e achava que a literatura era um dom pela qual eu deveria ter uma reverência sagrada. “Ela virá quando quiser, mas não agora.” Mentira. Há de se ter o mínimo de organização, empenho e disciplina. Isso não tem nada a ver com ser “quadrado”, “conservador”. É o compromisso, sabe? Penso em Bolaño, Walter Benjamim. Aquilo é ética profissional até o último minuto.
Se eu pudesse voltar no tempo, diria: escreva um livro ruim, mas escreva. Saia da toca.
Então hoje eu fico burilando, pesquisando, registrando, tento uma frase, tento outra. Por falar em Bolaño, foi ele que aproximou literatura e boxe. Duas artes muito semelhantes. Esquiva, soco, lona, esquiva, água, acho que é por aí.
Há aquela ideia do Bartleby, né?! “Eu preferiria não escrever.”
Sortudo. Tinha a escolha.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho vontade de escrever uma distopia relacionada a um pesadelo frequente que eu tinha. O mundo tinha acabado e eu ficava vagando sozinho à noite por uma cidade industrial. Esse pesadelo me acompanhou por muitos anos, até que foi embora. Era meio “A estrada”, do McCarthy, ou “Ensaio sobre a cegueira”, do Saramago. Como estamos no meio da quarentena do coronavírus, imagino que muitos terão uma ideia parecida nos próximos 20 anos. Vamos ver.
Eu gostaria de ler uma biografia monumental do Bolaño. Daquelas de 1000 páginas com título “Uma vida”, sabe? Fica aí minha súplica.