Guilherme Genestreti é repórter da Folha de S.Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal não envolve escrever. Invejo, aliás, aqueles que conseguem vencer o canto da sereia que brota das cobertas e reúnem disciplina para rascunhar algumas linhas logo pela manhã. Seria o ideal para alguém como eu, que quer dar um gás na produção não jornalística. Mas não é o meu caso. Em geral, pego o celular e começo a responder as mensagens que recebi (sim, normalmente acordo mais tarde do que o horário em que o bom senso autoriza o envio de mensagens). Daí dou uma passada de olho no jornal, vejo o que saiu na concorrência, espio as redes sociais e, só então, levanto da cama.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De noite, sem dúvida. É quando é maior a chance de eu já ter resolvido pendências burocráticas do dia. É como se eu sentisse que só dá para escrever quando nenhum problema mundano está me afligindo (a conta que não paguei, aquele e-mail importante que não enviei). Agora, por ser jornalista, não tenho muito o luxo de determinar a que horas vou escrever nem manter algum ritual específico de preparação. Se a notícia chega, tenho que sentar e digitar freneticamente, tentando abstrair da cacofonia da redação. Mas se é para escrever matérias que não sejam urgentes ou algum outro texto não jornalístico (um projeto de alguma coisa ficcional, por exemplo), daí escolho as altas horas. Tenho um pouco aquela visão meio boba e romântica de que o ideal é escrever com um copo de vinho do lado enquanto as sirenes dos carros de polícia disparam nas ruas lá embaixo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, por dever de ofício. Tenho como meta escrever um texto jornalístico por dia ou, pelo menos, parte considerável de um texto. Fora do jornal, também me esforço para rascunhar alguma ideia que eu tiver na cabeça, mas minha mente é facilmente subornável por qualquer outra distração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é sempre o mais difícil. O primeiro parágrafo (ou a primeira página) é o seu cartão de visitas, né? Tenho uma analogia bem pueril: se um texto fosse uma música, o começo dele seria o refrão. Porque é ele quem vai ditar o ritmo, a pegada, o estilo do que vem a seguir. Gasto mais tempo escrevendo o primeiro e o segundo parágrafos do que os 20 ou 30 seguintes.
Na hora de levar a pesquisa para a escrita, entram algumas preferências. Gosto muito de descrições, de textos que sejam bem plásticos. Talvez tenha a ver com o fato de que o cinema me educou mais do que a literatura. Sempre que possível, busco levar o leitor para uma cena, quero que ele esteja o mais próximo possível do objeto ou personagem sobre o qual estou escrevendo. Nessa minha obsessão em pintar retratos bem precisos do que vivi, gosto de manter o máximo possível a oralidade nas frases que transcrevo dos meus entrevistados. Acho que ajudam o leitor a perceber particularidades, subjetividades sobre o entrevistado.
(Abro um parênteses aqui: Quando leio textos das outras pessoas fico prestando atenção nas pequenas escolhas estilísticas, me perguntando por que a pessoa resolveu frisar tal detalhe, e não o outro, ou por que contou a história de determinada forma. Nos últimos tempos, por exemplo, ando fissurado na escrita do americano James Baldwin, autor que levou para a literatura várias questões da luta racial os Estados Unidos. O estilo dele tem muito a ver com o blues, o gênero musical que é a síntese da experiência afro-americana em suas dores e em suas glórias. Ele para mim é o suprassumo desse casamento entre o que se escreve e como se escreve.)
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Puxa, são os três grandes fantasmas que assolam qualquer pessoa que tem na escrita o seu trabalho. A procrastinação, sim, é um grande problema, como já respondi acima. Sou tão indisciplinado que só o ‘deadline’, no caso do jornalismo, é o que dá fluxo à minha produção. Por isso, tudo o que eu escrevo fora do jornal está aí disperso e inacabado, guardado em gavetas ou pastas do computador. Se não há o que me obrigue a terminar, o texto fica lá em ‘stand by’.
Tenho mais dificuldades em trabalhar em projetos longos, como as matérias de mais fôlego. Como começar? Como resumir esse tanto de informação que apurei durante vários dias num único textinho e que não seja assim tão urgente? Talvez por isso eu me sinta mais confortável trabalhando como repórter de diário mesmo.
Agora, respondendo sobre o medo de não corresponder às expectativas. Bom, aí a coisa é paralisante mesmo. Tento não me debruçar sobre o que os outros esperam de um texto meu, se o que eu escrevo é digno da publicação em que trabalho etc. É que, claro, sou muito sensível a qualquer comentário que façam sobre a minha escrita. Deixa eu ver se consigo explicar: Para mim, escrever é um impulso quase fisiológico, um misto de ofício com hobby com aptidão com terapia, sei lá. Não me imagino tolhido dessa vontade de escrever, desse desejo que vem de lá atrás, desde que eu, criança, inventava uns minicontos inspirados naquilo que eu via na televisão ou no cinema. É um pouco como se eu tivesse direcionado a minha vida toda para a possibilidade de ter a escrita como um ganha-pão. Daí, se alguém um dia me disser que meus textos são horrorosos o que me sobraria fazer? Por isso, evito pensar em corresponder às expectativas e só faço o que acho adequado, meio que por instinto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca reviso os meus textos jornalísticos, o que não é uma coisa muito legal de admitir. É que sou tão obsessivo que sempre que releio um texto meu, quero mudar tudo. Implico com parágrafos, pondero se há palavra mais precisa para descrever algo, quebro a cabeça para dar mais fluência… Há sempre o risco de eu querer mudar toda a estrutura. Por causa disso, deixo que as idéias jorrem e, quando termino, dou um berro para o meu editor: “Acabei”. Daí espero que ele faça essa revisão tão necessária antes da publicação. Detesto ler um texto meu depois de publicado; fico me remoendo quando deparo com palavras repetidas ou errinhos de concordância que passaram batido. Fico mortificado. Sempre acho que dava para melhorar, e isso é meio frustrante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uma vez li um escritor se queixar de que o computador emperrava o processo literário por unir o ato de escrever e o de editar no mesmo meio. Ele defendia a ideia de que o escritor tinha de formular na cabeça o que quer expressar e tacar aquilo no papel, já que “lamber” o texto seria contraproducente. Acho um ponto de vista válido, mas faço parte de uma geração que foi criada à luz das telas de computador. Bloquinhos de papel sevem para textos mais breves; no meu caso, para algumas impressões de viagem que rabisco no avião ou sentado em algum canto. Mas no geral escrevo as primeiras ideias no celular. Vou compilando tudo e, num momento de ócio, organizo em pastas na nuvem. Tenho uma chamada “Daria um livro”, lotada de sacadas mirabolantes e, muitas vezes, bem infames.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias brotam ao acaso: andando pela rua, quase caindo no sono, numa fila de espera, num sonho. Ler um texto sobre um assunto aleatório pode acender a fagulha para discutir algum aspecto muito específico numa reportagem. Muitas vezes, uma cena de um filme pode me levar a um mote ideal para um conto, por exemplo. De qualquer foma, seja tratando de texto jornalístico ou ficcional, acho que tem que existir aí uma espécie de exercício de sinapse, uma associação entre ideias. Por exemplo: uma frase solta num texto aleatório que li pode ser reunida a um outro comentário que ouvi sobre algo que tem a ver e, bingo, talvez eu tenha aí uma pauta sobre uma tendência que está rolando. Da mesma forma, aquela cena do filme me faz lembrar de um trecho de um romance que eu gostei muito e me faz pensar que eis aí a semente para desenvolver uma terceira coisa, totalmente diferente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi que, conforme os anos passaram, eu ganhei mais confiança e isso acabou revertendo em mais ousadia na hora de escrever. Se leio os meus primeiros textos jornalísticos, acho que eles são muito quadradões, sem personalidade, como se tivessem sido escritos por qualquer pessoa. É claro que, ao falarmos de reportagens, estamos tratando de textos que são muito menos livres do que os textos literários. Há uma série de regras e de requisitos que um texto jornalístico precisa atender para ser informativo e que acabam tornando ele mais engessado, menos pessoal.
É bom também ter alguns freios nesse ímpeto de soar mais “poético”. Repórteres de jornalismo cultural em especial têm uma tendência a produzir textos muito afetados, cafonas até. Ainda assim, dá para arriscar um pouco aqui e ali, incluir alguma pimenta, algum recurso estilístico mais pessoal, enfim, ousar mais. E essa eu acho que foi a grande mudança no meu caso. Com mais confiança, passei a experimentar mais. Por causa disso, não sei se eu diria algo especial à minha versão de 10, 12 anos atrás. Caso falasse para ser ousado desde o começo da minha carreira jornalística, talvez eu viesse a me tornar justamente um desses repórteres cujos textos eu acho afetados demais e meio bregas. Espero os meus não sejam assim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou fissurado pela ideia de perseguir o ‘zeitgeist’, de conseguir absorver toda essa vibração ao redor e produzir algo que reverbere o espírito do tempo. No jornalismo, seria algo como escrever uma grande reportagem que traduzisse inquietações com as quais qualquer ser pensante do mundo de hoje pode se identificar.
Outra obsessão minha é tentar compreender as distorções do Brasil e as particularidades da experiência de ser brasileiro (se é que podemos dizer que há algo como ser ‘brasileiro’). É um pouco egoico, claro, mas essa obsessão tem a ver com minha tara em compreender o meu lugar no mundo. O livro que eu gostaria de ler/escrever tem a ver com isso. Adoraria ser um autor com capacidade para escrever uma obra de ficção que encapsulasse a brasilidade, a nossa versão do que os americanos chamam de ‘great american novel’, e que abordasse questões como a nossa ilusão de que somos liberais nos costumes e a violência que faz parte da gênese do país.
(OK, fui longe demais agora e ultrapassei qualquer limite da soberba agora. Melhor enviar logo essas respostas antes que eu revise e censure esse meu arroubo presunçoso).