Guido Bilharinho é escritor e crítico de cinema.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meus dias têm duas variações. De segunda à sexta-feira, levanto-me, tomo café, leio os jornais de Uberaba e depois vou para o escritório de advocacia, onde permaneço o dia todo, só saindo para almoçar ou para eventuais audiências e reuniões.
Aos sábados e domingos, após tomar café e ler os jornais de Uberaba, vou para minha biblioteca situada em edifício executivo no centro da cidade, já que face ao número de livros e arquivos de recortes, que coleciono e organizo desde os 15 anos de idade, não tive condições de mantê-la em meu apartamento.
Essas, são rotinas raramente alteradas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente, escrevo pela manhã, não tendo nenhum ritual de preparação.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No caso, há de se fazer distinção.
Poesias e contos, ou seja, atividade criativa, são escritos aleatoriamente, quando ocorre uma ideia ou sugestão, que é vazada no papel para depois ser trabalhada exaustivamente. Meu primeiro livro de poesia, Aspectos, lançado em 1992, levou 17 (dezessete) anos para ser concluído.
Já os artigos sobre cinema foram e são elaborados seguindo esquema preciso. Sextas-feiras e sábados à noite, assistia aos filmes (VHS e DVD) e, no dia seguinte, pela manhã, na biblioteca, escrevia o respectivo artigo. O artigo sobre o filme assistido no domingo à noite era escrito na segunda à noite, na biblioteca, onde permaneço sábados, domingos, feriados e à noite dos dias da semana.
Com esse sistema, já escrevi mais de 1.100 (mil e cem) artigos de crítica de cinema, tendo publicado já uns setecentos nos livros da coleção “Ensaios de Crítica Cinematográfica”, iniciada com O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock, em 1999.
Os artigos de crítica literária foram e, eventualmente, ainda são escritos, após ler (ou reler) o livro, também aos sábados e domingos de manhã na biblioteca.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita de poesia e contos é automático, levando a ideia para o papel com pouca intermediação laborativa, já que o objetivo no momento é resguardá-la para não cair no olvido, como geralmente ocorre quando não é desde logo fixada no papel.
Já os artigos sobre cinema são processados após assimiladas no decurso da noite as impressões provocadas pela celeridade da imagem em movimento, surgindo quase espontaneamente no dia seguinte quando, à mesa, começo a escrevê-los.
Sobre filmes, não consigo (nem nunca tentei) escrever logo em seguida à sua assistência (as impressões ainda não se consolidaram) e nem, ao contrário, depois de vários dias, neste caso as impressões se esvaem, diluindo-se, apagando-se.
Com os artigos de crítica literária (tenho um livro sobre o romance brasileiro e outro sobre o romance europeu do século XIX, este a ser proximamente publicado no blog) ocorre o mesmo fenômeno, mas de maneira bem diversa, já que a leitura se desenvolve por vários dias. Mas, logo terminada, e de posse de anotações, elaboro o artigo pela manhã de sábado, domingo ou feriado na biblioteca.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nada disso me ocupa (e preocupa).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio e reviso meus escritos várias vezes, sempre alterando-os e procurando aperfeiçoá-los ou assim julgando que o faço.
Contos e poesias só são publicados após exaustiva elaboração, que pode levar anos.
Os artigos e ensaios são de publicação mais imediata, mas, só depois de várias vezes lidos e relidos, o que não impede de serem alterados mesmo após publicação em livro.
Apenas duas vezes mostrei originais de livros para outras pessoas, em ambas ficando insatisfeito com as sugestões que não eram para ser apresentadas e, sim, apenas para eles tomarem conhecimento e, se o caso, darem opinião genérica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Mesmo tendo sido datilógrafo (ao tempo das máquinas de escrever), sempre escrevi e continuo escrevendo à mão. Depois é que os textos eram datilografados e, agora, digitados. Após essa mecanização é que se produzem as maiores (e creio, melhores) alterações.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa é indagação pertinente, mas, ardilosa, talvez a mais séria do questionário.
As ideias para contos (e os tenho de três categorias: absurdos, dialogais e narrativas) surgem inopinada e imprevistamente, por exemplo, quando certa vez vi da janela um carro em frente à uma casa comercial e articulei estória de explosão e ET; quando estando no elevador e imaginei nele entrando uma vaca; quando o elevador, ao invés de se mover verticalmente passou a fazê-lo horizontalmente, ou, ainda, quando andando pela rua ao sol observei minha sombra. Tudo isso virou conto e está em Enigmas, de 2002.
Já os artigos são produtos de reflexão sobre filmes, livros e a realidade brasileira, visto que neste último caso publiquei Questões do Nosso Tempo em blog e, atualmente, divulgo artigos em página do Facebook.
O hábito que cultivo é me manter sempre antenado, interessado e participativo, neste último caso, com os escritos, publicações e edições.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Apenas a intensificação e deliberação de produzir sistematicamente, já que os projetos e as ideias não param de surgir e foram muito aumentados com o passar dos anos.
Nesse sentido, curiosamente, o que me fez escrever sobre filmes foi o sol. É que, sistematicamente, nas décadas de 1970 e 1980 e início da década de 1990 sempre aos sábados e domingos pela manhã ia a clube de campo para caminhar, nadar e tomar sol.
Ocorreu que por volta de 1994 li que o sol provoca câncer na pele. Imediatamente suprimi esse hábito e passei a ir, nesses dias, para a biblioteca, onde, antes, só ia à tarde.
Aí, tendo assistido (ou revisto) na sexta e no sábado filmes de Hitchcock, a impressão que me causaram fez-se forte ao sentar à mesa de trabalho, pelo que resolvi escrever sínteses, apenas um parágrafo, sobre cada um deles para registrá-la e mantê-la.
No terceiro filme visto já surgiu todo um artigo, prosseguido esse sistema daí por diante.
A única coisa que faria, se pudesse voltar ao início, seria efetuar rigoroso planejamento de leitura e aquisição de conhecimento de maneira persistente, sistemática e contínua.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos em andamento e, alguns, apenas ideados. Entre estes, por exemplo, antologia do conto uberabense e outro livro de biografias de personalidades da cidade.
Gostaria de ler inúmeros livros existentes que ainda não li.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Como me dedico a projetos de natureza diversa, desde pesquisas e levantamentos históricos à formulação de poemas, contos e exercícios de crítica literária e cinematográfica, para cada um deles há origens e circunstâncias desencadeadoras, que se submetem na prática daí derivada e impulsionada aos determinativos peculiares a cada um desses gêneros.
Nenhum deles partiu de planejamento previamente deliberado, mas, depois, de assumidos seguiram seus cursos naturais de desenvolvimento.
Exemplo: não me dispus e nem pretendia exercer a crítica cinematográfica. Devo-a ao Sol. É que durante dez ou mais anos, impreterivelmente nas manhãs de sábados e domingos frequentava clube de campo, para caminhar e nadar. No dia que li que o sol ocasionava câncer na pele, parei imediatamente de ir ao clube.
Então, em minha biblioteca, num sábado pela manhã, assaltou-me forte impressão de filme que tinha assistido na noite anterior, o que não ocorria anteriormente face à dispersão e distração naturais de atividades em clube de campo. Para não deixá-la esvair-se, escrevi-a ou descrevi-a num parágrafo. No dia seguinte, a mesma coisa. Na terceira vez, já escrevi todo um artigo. Daí não parei mais.
Geralmente, o mais difícil é escrever a primeira frase, conquanto nem tão “difícil” assim.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha semana de trabalho cultural é determinada pelo tempo que me sobra da atividade profissional advocatícia. Por isso, aproveito ao máximo as noites (até 23 ou mais horas) e os dias de sábados, domingos e feriados para executar as obras em andamento. A crítica cinematográfica sempre foi balizada pela assistência de filmes nas noites de sextas-feiras, sábados e domingos e escritos os respectivos artigos nas manhãs de sábados e domingos e nas noites de segundas-feiras.
As ideias para poemas e contos são completamente aleatórias e suscitadas por circunstâncias momentâneas, sem nenhuma previsibilidade e determinação. Contudo, depois são submetidas a exaustivo trabalho de elaboração, tendo, alguns poemas, por exemplo, quase trinta versões antes do texto final e definitivo.
Dessa variedade de induções e solicitações decorrem projetos que se vão sucedendo e alternando-se interruptamente.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Impulso interior e consequente necessidade de implementá-lo.
A curiosidade e o interesse, por ouvir estórias, assistir filmes, ler estórias em quadrinhos e livros infantis impulsionaram-me a escrever desde os doze anos de idade, quando comecei a publicar contos infantis em periódicos escolares.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Nunca tive dificuldade para escrever. Como observou um leitor, parece que escrevo como se estivesse respirando.
Isso, com artigos e livros de transmissão de conhecimentos. Não com poemas e contos. Esses, após colocados no papel são submetidos à intensa reelaboração, norteada pela lição de Mallarmé – aqui aplicada a ambos os gêneros – de que “poesia se escreve com palavras e não com ideias”.
Todos os autores que li devem ter-me influenciado. Porém, não detecto nenhuma influência particular, a não ser, em certa época, os poemas da Psicologia da Composição, de João Cabral de Melo Neto.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Aproveitando a solicitação de indicar três livros e como é muito difícil restringir a preferência, se for possível e admissível, aproveito para relacionar e divulgar as seguintes obras por gêneros, das poucas que li:
ROMANCE BRASILEIRO: Dom Casmurro (Machado de Assis), Triste Fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto), Macunaíma (Mário de Andrade), São Bernardo (Graciliano Ramos), Grande Sertão: Veredas(Guimarães Rosa), Chapadão do Bugre (Mário Palmério), Pernaida (José Humberto Henriques, publicado na Amazon).
ROMANCE ESTRANGEIRO: Memórias do Subterrâneo e Crime e Castigo (ambos de Dostoiévski), Guerra e Paz e Ana Karenina (ambos de Tolstoi), Os Maias e A Ilustre Casa de Ramires (ambos de Eça de Queirós), Os Malavoglia (Verga), A Montanha Mágica (Thomas Mann).
MEMÓRIAS: Memórias do Cárcere (Graciliano Ramos), Roteiro Cinza (Lincoln Borges de Carvalho).
POESIA BRASILEIRA: Cobra Norato (Raul Bopp), Psicologia da Composição (João Cabral), A Luta Corporal(Ferreira Goulart), O Azul Menos o Nome (Carlos Roberto Lacerda), Geografia da Palavra (Jorge Alberto Nabut), Araguaia (José Humberto Henriques).
POESIA ESTRANGEIRA: Ilíada e Odisseia (ambos de Homero), A Divina Comédia (Dante), Os Lusíadas(Camões), Trilce (César Vallejo), Obras de Saint-John Perse e Francis Ponge.
PEÇAS DE TEATRO: De autoria de Ésquilo, Eurípedes, Sófocles, Plauto, Skakespeare, Tchecov, Gogol, Ibsen, Strindberg, Shaw, Beckett, Pirandello, Ionesco, O’Neill, Artur Miller, Thorntan Wilder, San Shepard, Vestido de Noiva (Nélson Rodrigues).
ESTUDOS BRASILEIROS: Os Sertões (Euclides da Cunha), Bandeirantes e Pioneiros (Viana Moog), Os Donos do Poder (Raimundo Faoro), Evolução Econômica do Brasil (Celso Furtado).
HISTÓRIA DO BRASIL: Brasil: Uma Biografia (Lília Schwartz e Heloísa Starling), História da Riqueza no Brasil (Jorge Caldeira), Maldita Guerra (Francisco Doratioto, sobre a Guerra do Paraguai), História da Imprensa no Brasil (Nélson Werneck Sodré).