Guajajara é pai, poeta, músico e filósofo africano.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Ao despertar do Sol a saudar Olorun, meu Orí e meus ancestrais e Orixás e a terra mãe, África, por vezes na cama antes mesmo de me levantar ou, por vezes, de pé ante a janela ao avistar o mar no horizonte, ou de joelhos tocando a cabeça ao chão na direção nascente olhando pra dentro de olhos fechados.
Em geral, quando há um equilíbrio entre a ordem interior e exterior é assim que é. (o que não há faz muito tempo). Quando há ainda mais equilíbrio, procuro também meditar.
Deste modo, se seguem as horas através das etapas da possível ou não lavagem de louça suja da noite anterior e a preparação do ajeum. Em casa, nos últimos tempos temos cultivado uma leitura de poemas enquanto tomamos café (invariavelmente, a qualquer hora do dia).
Água fresca e tapioca, são ótimos para o dejejum.
No entanto, quando há muita bagunça interna e externa, há uma deserto de desejos ao amanhecer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A noite eu habito um terreno criativo do meu pensamento e opero em bom ritmo.
Durante o dia, se dá, em geral, o trabalho de revisão e reescrita do que veio a luz no período noturno, junto a notas e transcrições.
Ainda que esse modo de funcionamento não seja uma norma, mas sim uma maneira mais geral como as coisas acontecem, sinto que há alguns lapsos que ocorrem a noite e apenas quando o céu se descobre é que é possível ordenar e ver com lucidez o texto redvivo.
Não possuo ritual para escrever.
A escrita é, para mim, toda ela, uma obra do ofício de viver e existir em sintonia com a natureza mais orgânica da Terra e da criação dos dias africanos, da invenção das horas negras, da significação da luta diaspórica, da engenharia genética da memória ancestral, do sopro transformador do improviso, do risco cotidiano do inesperado.
E, entre outras coisas, da atualização das heranças históricas que eu e meus povos carregamos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há uma leve e breve oscilação entre a escrita cotidiana esparsa e parca, com momentos de intensidade e produtividade assim como a instauração de um grave ou quase total estado (estágio) de abulia.
Uma certa (ou incerta) forma de procrastinação crônica derivada tanto de aspectos físicos e espaciais ligados temporalmente (digo acerca do ritmo) e ao aspecto subjetivo e psico-emocional que se apresenta qualitativamente (digo acerca da forma literária e em alguma medida, sobre seu relevo temático).
O registro, o documento, a preservação e a perpetuação da experiência individual e coletiva e sua memória histórica e social poderiam ser metas que orientassem alguma escrita, mas não há.
Muitos meses passo dias e semanas sem escrever e depois de algum acúmulo desabo as palavras no papel para montar um quebra cabeça rítmico e fluído. Ou, acumulo entre dias, semanas e meses alternados uma coleção de espécimes de experimentos e testes, ensaios e erros da voz, da linguagem e da ação para aí encontrar poemas ou prosas.
Assim se dá quando não é o caso de escritas técnicas ou sob encomendas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita, pra mim, se constitui em um processo de tradução e engajamento, de crença (ou descrença na linguagem e/ou no autor) e de fé na missão da mensagem como veículo transmissor das formas de sentido de difícil circulação.
O processo pressupõe a comunicação.
O começo não é um “start”, mas um modo no qual se percebe que algo está acontecendo, que está sendo criado. Muitas vezes, a escrita já é em si mesma a própria pesquisa. A pesquisa seja por uma narrativa, uma poética ou uma teoria já contém, ao mesmo tempo em que encerra, uma forma expressiva da linguagem que condensa o seu todo e o seu outro – o seu duplo – para além da sua finalidade.
O fim, ou seja, a sua objetivação enquanto tal, a sua existência prática depende do interesse envolvido e motivador da criação, ainda que a sua natureza não determine o seu percurso através de contingências utilitárias ou críticas, quando e onde as ideologias operam rotações, torções e vãos de fuga nos pontos de vista e argumentos e permitem as trocas que acarretam e ocasionam rachaduras nas estruturas da linguagem comum e na vida social.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Muito mal.
Esses momentos representam largos desafios a vida e a carreira de um escritor. À parte as expectativas que são sempre as nossas.
Ao mesmo tempo não sofro ou me imponho condições a serem realizadas em função de algum resultado ou resposta. Muito embora quando há tetos, eles geralmente não são negociáveis.
Não tenho ansiedade, longos projetos necessitam longos períodos para se realizarem interna e externamente. Quando há equilíbrio entre o tamanho do projeto e o tempo para realiza-lo (o que é raro) as coisas têm muitas chances de serem bem-sucedidas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes, mas nunca a quantidade de vezes necessárias, (rs), pelo menos eu acho.
No fundo a gente nunca acaba de escrever algo ou, geralmente, está 100% satisfeito com isso ou aquilo. É sempre possível melhorar ou aperfeiçoar algo.
Um poema nunca está terminado, talvez uma imagem ou uma metáfora sim, se calhar bem-acabada, nos contenta e abre veredas, por outro lado o texto final de um livro ou um ou outro título também causam aquela vontade de mudar e mexer incontidas.
Nesse sentido, acabo sim compartilhando muito o que escrevo principalmente por áudios e também por escrito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Em grande medida, rascunho a mão e no papel esboço ou escrevo mesmo, a valer, letras de música e poemas, passo a limpo também a caneta ou grafite, antes de empreender algum esforço mais elaborado como uma breve reunião de textos ou começar a escrever um novo livro compilado no computador.
Não é o mesmo caso na prosa ou na escrita técnica que pede um lastro de consulta e busca por referências que, ainda que se gravem primeiro no papel sob forma de fichamento e rascunho, mas o salto qualitativo e, principalmente, a revisão se dá na tela, de sobremaneira.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Desde o oco do átomo dos confins do cosmo que está no grão de areia da praia ou na dobra da curva da próxima esquina que ensaia o futuro dos meus ancestrais e das histórias dos meus povos africanos e indígenas, nagôs e guajajaras.
Vêm da verve do vir-a-ser o que se e é, a um só tempo, em presentes contemporâneos.
A única cultura que há é a de se manter vivo mais um dia, hábitos, rotinas e regras acredito que não são as melhores maneiras de nomear a experiência. Minha criatividade é cria da sobrevivência, do se virar, do dar o zig e pá e tal… e depois jogar um mó de cal nas caretas dos racistas, como driblar um (o) português com uma lambreta!
Podem haver métodos e técnicas, princípios e propósitos, prazos e até, às vezes, com alguma sorte, pagamentos, mas a escrita entendida como criação literária ou ensaística é a língua da lida, é o sangue da labuta, é ritmo do mito, é o que se cria e nos cria desde o primeiro pio, silvo, salto ou grito, na mata ou no mar, é o eco da gruta, é a última dose de cicuta no sangue da civilização, é o refazer da história uma eterna morada de anti-memórias.
Viajar, tocar pandeiro, violão, amar, compor um não da noz no vão da voz que ecoa no ser.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
As ideias de simplicidade, narrativa e linguagem se transmutaram em força, forma e conteúdo da agência das palavras em textos.
A prolixidade primeva e tão comum, a jovem escrita, se queda ao ceder espaço a uma expressão estranha e sóbria de minimalismo da forma menos emocionada em versos curtos, afiados e condensados em únicas palavras, tudo isso por um lado na poesia.
Ainda que não se tenha o mesmo efeito no que tange as ideias e pensamento na prosa crítica ou política que se afina em argumentos e organização, mas ainda contém a versão racional da abstração que é mostra da complexidade que se expressa em meio a diferenças de pontos de vista, alteridade de argumentos e ideologias em jogo nas discussões.
Não diria nada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tradução de orikis e dos odus e itans de Babá Orunmilá Ifá nas tradições iorubás nigeriana e cubana.
Um livro que narre o fim do racismo.