Gleycielli Nonato é indígena da etnia Guató, feminista, escritora, poetisa, atriz e produtora Cultural.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minhas manhãs são pura rotina. Preciso acordar cedo, preparar o café, arrumar as mochilas das crianças, acorda-los, leva-los ao banheiro, insistir no banho, alimentá-los e aí sim, quando estão prontos o pai deles chega para leva-los a escola e creche. Vida de mãe.
Apenas depois das sete da manhã, quando já estão todos em suas salas de aula é que eu começo a preparar o meu dia. Um banho, café sem açúcar, incenso de laranja, arrumar o quarto, varrer a casa, outro banho, outro café, o computador e enfim… começo a escrever.
Moro no interior, e a beira de uma reserva florestal, tenho em minha companhia o cantar dos sabiás laranjeiras, arancuãs, e bem- te- vis. O sol aqui sempre está em seu ápice. Há um ditado na cidade que fala que Coxim tem um sol para cada habitante. É poético, e real. O calor me faz estar acompanhada de uma tereré gelado (o tradicional, no máximo limão e algumas ervas desintoxicante), e de cuíada em cuíada eu aproveito o frescor matinal para proferir as ideias.
Prefiro pela manhã focar em trabalhos mais técnicos, pesquisas, anotações, releituras, algo que requer meu foco profissional. Como escrevo para jornais da região, esse é o período que tiro para fazer esses tipos de escrita. Dou a manhã a tranquilidade necessária para trabalhar em “coisas” que preciso focar com mais atenção, ou que precisem de prazos mais curtos para a entrega. Essa é aminha maneira de dizer: “foca Gleyci, você está trabalhando”.
Há vantagens, mas essa é uma das lombadas em trabalhar em casa, preciso ainda me concentrar para não perder o ritmo. Mas a altura da minha atual escrita, já estou acostumada com o ritmo, e essa separação (manhãs e noites) contribui muito para isso.
Quando as crianças estão em casa fica um pouco mais complicado, mas não impossível. Me adapto a eles, assim como eles a mim. Enquanto estão entretidos aproveito para escrever. Entre risos, mamadeiras, dodóis e choros, eu escrevo quando não há outra forma. Caso não seja tão urgente transfiro para as noites.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Apesar das manhãs e suas poesias, entre pássaros, ventos da mata e o frescor do tereré, confesso que não é o meu horário preferido para trabalhar a escrita criativa. Me sinto bem mais à vontade para isso, de noite, madrugada a dentro. Parece que nesse horário tudo fluí. O portal do mundo das ideias se abre e facilita captá-las com clareza.
Mas para que eu possa ter essa tranquilidade de noite, preciso primeiro colocar as crianças para dormir e aí sim começo a me preparar.
Um banho, um chá, uma roupa confortável, incenso de jasmim e silêncio (essencial). Aliás essa é a grande vantagem de morar no interior e a beira de uma mata. Nada de vizinhos e músicas desagradáveis e sons urbanos.
Tenho a necessidade de estar sempre tomando algo ao escrever. De manhã um tereré gelado, de noite um chá confortante ou até um café sem açúcar para manter o foco. No ar é sempre bem-vindo um aroma suave. Incensos ou velas aromatizadas fazem o ambiente ficar mais aconchegante para a produção.
E as noites e madrugadas são propicias para a imaginação. Me sinto mais produtiva nesse horário. Guardo esse período do dia para as poesias, composições, crônicas e textos que me requem mais a criatividade primaria, para depois vir a técnica.
Como se fizesse assim: De noite eu dou a luz ao filho, o alimento, visto-o, dou o nome, mas só de manhã é que registro a criança. Escrita criativa está na flor da pele para as noites e madrugadas, deixo solto como a corrente de um rio. E de manhã, com menos intensidade poética, e mais técnica é que revejo os texto e os dou forma.
Mas para isso acontecer cada período precisa de seu determinado trabalho. De noite gosto de uma música ( não qualquer uma), um vinho quem sabe, um chá mais adocicado, um incenso suave, pausas para ir a varanda e contemplar o céu, escutar o silêncio de fora, ou deitar no sofá com um caderno e uma caneta, E de manhã preciso do silêncio, o mais puro silêncio, um café mais cedo e o tereré ao lado. Nada de pausas, nada de pensamentos longos, apenas o foco no que eu preciso terminar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De alguma forma, todos os dias estou escrevendo. Mas não faço disso uma obrigação.
Na verdade não gosto muito de me sentir pressionada, tenho meu tempo e conforme ele, eu vou alimentando o projeto até o seu limite.
Não procuro estabelecer uma meta diária. Faço isso em espaços de tempo mais longos. Por exemplo: “Esse mês vou terminar três capítulos”. Tenho então o mês todo para isso. Sem pressão, sem correria. O tempo é inimigo da produção (pelo menos na minha produção).
Sei que as vezes, eu me vejo atrasada com algum material, mas mesmo assim não enlouqueço. Até porque eu produzo mais, e melhor, quando meus batimentos cardíacos estão em modo zen. Preciso respirar para fazer a força necessária para a criança sair do útero das ideias centrais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Saiba que essa é a parte difícil, começar. Tudo é mais fácil quando pegamos o embalo do meio para o fim. Por isso que procuro um ambiente mais confortável possível para esse começo. Separo os períodos, assim fica mais fácil identificar o que estou fazendo. Pela manhã uma atividade, de noite outra. Quase nunca pela tarde, só quando extremamente necessário.
Então procuro fazer o seguinte: Deixo sempre a pesquisa para as noites e madrugadas. Assim parece, aparentemente, que estou fazendo algo natural. Não por obrigação, mas porque aquele momento me dá prazer e ler e analisar.
Na manhã seguinte coloco no papel as anotações da noite anterior. E assim vou fazendo até encorpar o suficiente para dar início ao texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não há nada mais doloroso para um escritor do que estra “trava da escrita”. Quando tenho algum tipo de bloqueio, procuro primeiramente separa-lo. Vejo se ele é um bloquei de ansiedade, um branco que as vezes temos antes de começar o trabalho, algo que nos deixa meio sem saber por onde começar. Ou se ele é uma trava intermediaria, aquela virgula imensa que ora ou outra aparece no meio do projeto que nos impede de dar continuidade com o mesmo ritmo. Para cada um há uma ação diferente.
Para o primeiro, um locaute. Essa ansiedade, comigo, me faz pensar de mais. Começo a enxergar várias possibilidades de um fim que não consigo centrar no começo. Então locauteio essa doideira com um susto. Começo de uma vez, mesmo sem saber por onde. Sento na frente do computador e faço meu cérebro entender que ele precisa trabalhar agora. E então começo a escrever.
Às vezes (a maioria das vezes), não sai nada de útil, mas objetivo era destravar. Assim que você destravar sua insegurança você estará preparado para refazer o que você começou meio torto.
Para o segundo eu relaxo, ou me desligo. Mesmo se estiver com prazos apertados, se esta virgula aparecer e for um grande quebra-molas na minha estrada, então estaciono no acostamento. Desço, e sumo um pouco de vista.
Dou um tempo para o projeto, nem que seja um ou dois dias. Saiu, bebo, namoro, em fim… esqueço do projeto. Respirar novos ares, falar sobre outros assuntos nada a ver com meu objetivo, me faz depois voltar e entender melhor o que fez meu carro diminuir a velocidade depois do quebra-molas. Facilita acelerar depois.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Está aí algo que eu precisei pedir ajuda para fazer. Toda vez que ia revisar o meu texto eu fugia um bocado do assunto original. Chegava a revisar dez vezes em um só dia. Estava completamente descentrada.
Mas tenho um amigo escritor que passava pelo o mesmo problema, e então resolvemos nos ajudar. Juntos revisávamos nossos textos, e assim evitava fugir do contexto original e ainda tinha uma segunda opinião sobre ele. Quando surgia alguma dúvida, pedíamos uma terceira opinião para revisar, e assim ajudando um ao outro vamos dando direção para a escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A pouco tempo, cerca de três ou dois anos é que me adaptei as tecnologias, antes mantinha minha escrita em cadernos e blocos de notas para só depois passa-las para o computador. Agora já estou mais familiarizada. Procuro começar no próprio computador, até para manter uma sequência mais clara do que estou trabalhando. Inclusive em relação a ideias. Eu tinha o costume de evitar o uso de gravadores, mas percebi que são muito mais adequados.
Estou no meio de um bate papo descontraído com amigos, de repente em meio ao assunto surgi uma ideia nova, ou até um texto já sequencial, eu anotava em blocos de nota que carrego sempre em minha bolsa, mas depois acabava perdendo ou não sabendo naquele momento como escrever. Foi então que surgiu o gravador de voz do celular, uma ferramenta que estava sempre ali, mas eu por desconhecer de seus atributos o evitava. Quando surgi esses relâmpagos de ideias, que são rápidos e passageiros, eu corro para um canto e gravo tudo em áudio, salvando em uma pasta especifica. Até porque eu sei que se não fizer isso no dia seguinte vou ter esquecido dos detalhes.
Assim mantenho a ideia fresca, pois sei que boas coisas, ou não, estarão ali naquela determinada pasta. Mas mesmo assim sempre carrego um caderno ou um bloco de nota para ser usado se necessário. A tecnologia está para facilitar, basta saber qual é a correta para determinadas ocasiões. E perder a linha do raciocínio é meu principal problema, já que como falei, esses ensejos são rápidos e passageiros. Mas tudo fica arquivado no celular, assim eu sei que pode ter algo interessante naquela pasta, e verifico sempre no dia seguinte.
Mas como adoro ficar sentada escrevendo, tiro algumas madrugadas para ficar com o meu caderninho e uma caneta, e ali vou depositando. Apenas para não perder o costume da deliciosa sensação de escrever à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas maiores inspirações vem de meu povo. Sou indígena pantaneira, e moro em uma cidade banhada por dois rios lindos e seus afluentes. Ler e escrever respirando esses ar interiorano é mais que saldável para o escritor, é necessário.
Nos últimos anos tenho transformado a minha escrita em uma voz ativa. Sou ativista dos direitos indígenas e dos direitos das mulheres, por isso ler jornais e sites de notícias fieis ao que está acontecendo a sua volta, me faz querer falar(escrever), a revolta que muitas vezes tenho com determinadas coisas que acontecem em meu estado e cidade. Mas estar sempre ajudando, me faz ter conhecimento empírico dos fatos. Como ativista e voz escrita dos direitos das mulheres, eu procuro ser voluntária em ações para estabelecer a legitimidade desses direitos. Assim eu vejo de perto coisas que acontecem todos os dias, e alimento essa voz dentro de mim.
Mas também não dá para ficar só no stress de alguns assuntos. Sou uma poetisa e contadora de causos. Preciso conversar com as pessoas, navegar em rios, tomar banho de cachoeiras, estar em contato com o pantaneiro, conhecer seus costumes, me inspirar. Ficar trancado em casa só me limita, então procuro sempre que posso conhecer pessoas e culturas diferentes, mesmo aquelas que estão ali dentro da sua cidade.
Ler bons livros é essencial. Mas como saber o que é bom e o que não é? Simples. Leia o que te faz bem. Faça o que te de prazer, aventure-se, conheça o pôr do sol, todo dia tem um diferente, nunca é o mesmo. Mesmo sendo o mesmo lugar. Procure enxergar a poesia, só assim a poesia irá ser enxergada na sua escrita.
Um escritor não pode ter limites.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo de escrita amadurece junto com a alma do escritor. Já que a escrita, para mim, é parte do meu ser. E este ser vivente está sempre em evolução. Quando somos jovens, somos movidos pelos sentimentos mais primitivos, ódio, amor, enfim, eles nos guiam e nos aceleram, tudo parece estar sempre a flor da pele, parece exalar nos poros como uma necessidade orgânica de jorrar. É tudo tão intenso que chega a ser inconsequente. Lembro-me dos meus doze e treze anos, das frustrações da idade, da necessidade de ser ouvida, ou de deixar o meu recado. Sempre com tanta revolta sentimental e nenhum perspectiva social, pois não ligava para o que estava a minha volta, apenas falava sobre mim. Sobre as desavenças com os pais, sobre os encantos da idade mais imortal que temos, sobre o quanto eu queria apenas ser. Apesar dessa tamanha intensidade era individual de mais, imatura o suficiente para não entender que a escrita em si é mais do que apenas o mundo que estava em mim, mas tudo que está a minha volta. Por isso posso dizer que ao amadurecer, floriu também o meu olhar para fora do meu eu.
Essa sensibilidade deixou de ser uma revolta romântica para ser uma revolta social. O interesse por leituras menos cômodas saltou para leituras mais abstratas. Algo que me fazia pensar: “Mas é só isso? Não, não pode ser.” E escrevendo essas perguntas comecei a procurar escrever sobre as respostas. Recordo que minhas poesias terminavam, quase na maioria das vezes com um ponto de interrogação. A menina que queria saber o que estava acontecendo lá fora, mas não se levantava para abrir a janela.
Hoje tenho trinta e um anos de idade, sei que preciso ver, ouvir e ler muito para chegar ao nível de escrita que tanto almejo. Mas pelo menos agora sei que para escrever eu preciso ler mais, ver mais, ouvir muito mais. E ficar trancada em meu mundo não fará mim uma escritora, fará apenas uma escrita. Quero inúmeras escritas sobre o olhar de quem está perto o suficiente para senti-las.
Quando escrevi uma poesias sobre o pôr do sol, dizia nela que nenhum pôr do sol é o mesmo, que no dia seguinte teria outra pintura no céu para me inspirar, mas melhor que isso é saber que a cada pôr do sol que eu escrevo sobre, vai junto com ele para uma folha de papel tudo que vi, li e ouvi, tudo que senti até aquele dia, até aquele sol se por.
Se eu pudesse sussurrar no ouvido da jovem aspirante a poetisa de doze anos de idade, iria dizer pra ela: “Vá, e depois me conte o que viu. Saia de dentro de você, tem um mundo louco lá fora.”
Quando fui mochileira aos 19 anos por um período, tive a experiência de conhecer outras tribos (literalmente), culturas, comidas, poesias sobre outros olhares. Mas conheci a dor, a solidão, a dificuldade em ser mulher e não saber me impor sobre isso (eu não sabia, hoje sei). E todas essas experiências fora da minha caixinha me fizeram autora de dois livro intensos como a aspirante a poetisa de doze anos, mas viva (ou vivida) como a escritora ainda ascendente de trinta, que ainda quer muito mais. Ler, ouvir, e sentir é extremamente fundamental. Copos vazios não são úteis.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Depois desse processo de amadurecimento pessoal e na escrita, sinto que devo contribuir pelas causas que acredito. Que de alguma forma os meus textos estarem presentes no atual momento em que nosso país vive. Como mulher, indígena e ativista, preciso mostrar mais que talento, creio que essa seja uma obrigação de todos os escritores\artistas. A arte pela arte é vazia. Por isso que o meu projeto mais audaz e completo de minha iniciante carreira de escritora, é registrar a vida e luta das inúmeras mulheres indígenas de meu estado. Mulheres que precisam ser ouvidas e vistas por suas barreiras constantes do dia-a-dia. Imagine ser mulher e índia no estado que mais invadem terras indígenas e mais agride mulheres.
Venho empiricamente fazendo parte de movimentos de direitos humanos, recolhendo dados, fazendo notas e escrevendo alguns informes. Mas nada o suficiente ainda. Alguns enclausuro particulares me impedem de ir até as informações necessárias, mas a minha expectativa é que esse ano eu consiga, pelo menos, iniciar esse projeto.
E respondendo à pergunta seguinte, gostaria de ler obras que falam a respeito desse assunto em meu estado, mas as informações estão espalhadas em dados quantitativos, dificultando a visualização dessas informações. Mas por outro lado, se eu for precisa, serei pioneira nesta escrita em Mato Grosso do Sul.
Concretizando um desejo antigo, mas nunca iniciado, e começando uma nova etapa de minha carreira literária, com paixão e objetivo. Preenchendo com afinco o meu copo vazio.