Glênis Cardoso é realizadora em audiovisual e ensaísta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente começo meu dia cuidando dos gatos, depois faço balé e preparo as aulas do dia, não tenho uma rotina para escrever porque não trabalho exclusivamente com isso, minha escrita geralmente acontece em rompantes caóticos e esporádicos. Mas acho importante começar o dia me preparando materialmente, limpando a caixa de areia, dançando, acordando o corpo para depois acordar a mente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor durante o dia, manhã ou tarde; depois que o sol vai embora, minha energia para trabalho vai junto. Não tenho nenhum ritual específico, mas minha escrivaninha precisa estar organizada e a casa limpa, senão encontro vários motivos para não começar ou me distrair.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo de forma concentrada, geralmente escrevo ensaios ou roteiros em períodos curtos, 2 ou 3 dias de trabalho intenso. Não possuo meta diária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como falei anteriormente, minha escrita vem em rompantes e acontece de forma esporádica, até mesmo rara, mas ainda é muito preciosa e necessária para mim. Eu passo muito tempo vivendo e pensando, assistindo e lendo obras que despertam inquietudes em mim. Depois, preciso de palavras para me expressar, mas elas passam um tempo na minha cabeça, depois são ditas em voz em alta em conversas com amigos e no meu podcast. Às vezes isso é suficiente para acalmar as minhas inquietações e o assunto se resolve dentro de mim, às vezes não. Às vezes as inquietudes crescem, se aprofundam, leio mais, falo mais, mal consigo dormir. Minha escrita passa por um longo período de gestação antes de ir para a página, é como se uma torneira estivesse pingando, as gotas caindo num copo lentamente por um longo tempo e, de repente, ele transborda, as palavras precisam sair de dentro de mim. Outra forma de colocar isso: leio muito, penso muito e falo muito, aí, quando meus ouvintes e amigos não aguentam mais me ouvir falar no assunto, sento e escrevo, o que é, também, uma forma de se fazer ouvir. A criação do podcast foi muito importante para a minha escrita. Ele me faz escrever menos porque eu encontro nele um escape para a maioria das minhas questões, é um espaço de elaboração das ideias, um espaço para aprofundá-las e, muitas vezes, acalmá-las. Mas as questões que permanecem, mesmo depois de muito falar no podcast, são mais intensas. Escrevo menos, mas escrevo melhor, com mais intenção.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando começamos o Verberenas, a revista sobre cinema pela perspectiva de mulheres realizadoras que eu criei com outras alunas e ex-alunas do curso de audiovisual da Universidade de Brasília, uma das coisas que logo percebemos é que não queríamos trabalhar com “pautas quentes”, não tínhamos interesse em frequentar cabines para ver filmes antes do público e sermos obrigadas a escrever sobre eles. Estávamos mais interessadas em escrever sobre o que nos movesse e inspirasse. Isso trouxe hábitos bons e ruins para o meu processo de escrita fora do Verberenas. Tenho muita dificuldade de escrever sobre demanda, não tenho uma rotina criativa que me obrigue escrever, minha condição normal é a trava e a procrastinação com breves lampejos de inspiração. Porém, quando a escrita acontece, é um processo mágico: excruciante e delicioso. Uma tortura, mas o mais perto da transcendência que eu já cheguei.
Sobre o medo de não corresponder às expectativas: sou a pessoa mais insegura que eu conheço, estou sempre me julgando e recriminando, acho tudo o que faço medíocre. Acho que o que me faz escrever apesar de tudo isso é o fato de que as coisas precisam ser ruins antes de ficarem boas. Adoro ver rascunhos de desenhos, primeiros tratamentos de roteiros, a jornada de criação de um livro, de um filme. O processo, mais que o resultado, é o que me move.
Outra coisa que me ajudou foi o trabalho da acadêmica Brené Brown. Ela pesquisa coragem e vulnerabilidade e sempre fala muito sobre o tema da crítica e como lidar com ela. Foi a partir do trabalho dela que conheci a seguinte citação de Theodore Roosevelt:
O que importa não é o homem que critica ou aquele que aponta como o bravo tropeçou, ou quando o empreendedor poderia ter atingido maior êxito.
Importante, em verdade, é o homem que está na arena, com a face coberta de poeira, suor e sangue; que luta com bravura, erra e, seguidamente, tenta atingir o alvo. É aquele que conhece os grandes entusiasmos, as grandes devoções e se consome numa causa justa. É aquele que, no sucesso, melhor conhece o triunfo final dos grandes feitos e que, se fracassa, pelo menos falha ousadamente, de modo que o seu lugar jamais será entre as almas tímidas, que não conhecem nem a vitória, nem a derrota.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes, não sei precisar o número. Tive uma editora e amiga muito crítica no Verberenas que sempre me desafiava ao ler e editar meus textos. Sentia vontade de chorar com os comentários dela, não porque ela era cruel, ela era dura, mas muito sincera. Se doía ler e ouvir o que ela tinha a dizer era porque eu não sabia lidar com críticas. Os primeiros anos da revista fizeram parte de um processo muito importante para não levar críticas para o lado pessoal e perceber o quanto o texto crescia e melhorava com esses apontamentos. Desde então, cultivo um pequeno grupo de amigos cuja opinião eu considero muito valiosa, pessoas que também escrevem, ou seja, estão “na arena, com a face coberta de poeira suor e sangue” também.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No geral escrevo no computador, mas já aconteceu de páginas do meu diário virarem um texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tem uma frase que eu gosto muito da Zadie Smith que ela fala que lê para entrar em contato com uma consciência diferente da dela mesma. Eu amo isso muito porque sinto que, na minha escrita, esse é o lugar do nascimento: o encontro com o outro. O outro pode ser uma amiga, um livro, um filme, até uma planta. Um corpo se encontrando com o meu, criando algo novo. Muito do que eu admiro na obra de artistas que eu amo vem de um jogo entre a identificação e o estranhamento, me sentir compreendida e também compreender algo que nunca me passou pela cabeça. Para mim, estar em contato com outras pessoas, obras, outras consciências, é fundamental. O podcast é um hábito que me mantém criativa, a leitura, filmes, conversas profundas, a escuta ativa, tudo isso me mantém desperta e me inspira.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevo menos, o que é bom e ruim. A criação do podcast foi muito importante para a minha escrita. Ele me faz escrever menos porque eu encontro nele um escape para a maioria das minhas questões, é um espaço de elaboração das ideias, um espaço para aprofundá-las e, muitas vezes, acalmá-las. Mas as questões que permanecem, mesmo depois de muito falar no podcast, são mais intensas. Escrevo menos, mas escrevo melhor, com mais intenção. Acredito, entretanto, que eu deveria procurar encontrar uma rotina e tentar escrever mais. Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria a mesma coisa que diria agora: escreva sem pensar se vai ser publicada ou não, escreva para os olhos de ninguém, o que tem de mais original em nós sai quando ninguém está olhando. E, se for ruim, ninguém precisa saber.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever um livro de ensaios sobre prazer, deleite, comida, desejo, mitologias e monstros, mas, como deve ter dado pra perceber nessa entrevista, eu não sou a pessoa mais constante do mundo, mais fácil ir escrevendo os ensaios quando baixa o espírito da escrita e depois compilar tudo hahaha o livro que eu sempre quero ler e que ainda não existe é todo futuro livro da Zadie Smith.