Glauco Mattoso é poeta, profeta e paratleta da metrificação com barreiras.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou muito metódico e sigo a rotina diária dum cego reduzido à “prisão domiciliar”. Acordo pontualmente às seis e, às sete, atualizo, com a ajuda de meu esposo, a parte inacessível da rede virtual, ou seja, aquela que meu computador falante não tem capacidade de monitorar, pois não uso mouse junto ao teclado convencional. Checado o facebook e outras plataformas virtuais, atualizo pela mão dele meus arquivos na nuvem e fico liberado para trabalhar sozinho na minha própria máquina. Selecionados e respondidos os e-mails, passo a trabalhar em meus próprios textos. Antes de 2012 eu compunha até dezenas de sonetos por dia e sempre tinha algo ja memorizado a ser digitado ou aprimorado. Atualmente, apenas reviso a ortografia dos arquivos que ainda estavam na redação original, anterior a 2009, além de um ou outro poema novo. Já não trabalho com textos teóricos, concluídos que foram o tratado de versificação e o dicionário ortográfico. Também já não escrevo ficção, publicados que estão meus romances e volumes de contos. Já não colaboro com crônicas para alguma coluna virtual em sites alheios, exceto a ultima, no Itaú Cultural, que finalizo agora em julho. Resta mesmo a poesia, mais sintética mas que exige mais atenção a cada palavra. Ainda aproveito a manhã para uma caminhada ao lado do acompanhante, uma visita a algum basset hound da vizinhança, uma passada na farmácia ou na padaria. Quando meu esposo não cozinha em casa, almoçamos fora e, depois, tento cochilar durante a tarde, já que sofro de insônia e à noite nem sempre durmo. No fim da tarde, antes e depois do café das seis, ouço radio para me inteirar do noticiário ou para acompanhar o futebol, radio que tenho à mão, com fones de ouvido, em vários momentos do dia, até na cama. À noite, quando meu esposo não está dando aulas de inglês, assisto com ele algum filme que me será audiodescrito e que comentaremos juntos. Ainda abro o computador para checar algum e-mail mais urgente ou para digitar algum novo poema memorizado, antes de me recolher. Em caso de insônia, passo o tempo ouvindo música nos fones da aparelhagem de som, para não incomodar ninguém. Basicamente essa é a rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Consigo me concentrar melhor pela manhã, mas, si algum ruído começa a interferir, como o dalguma obra externa ou no meu prédio, deixo para trabalhar de madrugada. Isso ocorria particularmente enquanto eu estava trabalhando com algum projeto mais extenso e demorado. Em caso de poesia, abrevio o tempo de digitação si houver barulho. O ritual consiste apenas em colocar fones de ouvido também durante a digitação, para poder me concentrar melhor e para que a fala do computador não incomode ninguém, já que parece uma secretaria eletrônica em viva voz a quem esteja por perto, muito maçante.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Enquanto estavam em andamento os livros mais volumosos em prosa, minha disciplina era diária, tipo duas horas pela manhã, duas à tarde e duas à noite. Agora a meta se reduz à fatura dum ou doutro poema e à resposta para mensagens como esta, atendendo às perguntas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso das obras teóricas, minha memória de ex-bibliotecário já tinha em mente quais fontes seriam consultadas a cada passo. Eu sempre partia dum ponto já planejado para argumentar e fundamentar com a ajuda de cada fonte previamente recortada e colada no computador falante. Alguém já tinha ditado para mim os trechos selecionados, de modo que eu já os podia escolher conforme o argumento abordado. No caso da ficção ou da poesia, dependo unicamente da memória enciclopédica para me socorrer de informações que, em caso de duvida, confiro depois, pedindo que consultem alguma obra de referencia ou alguma fonte virtual.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Medos não os tenho, já que confio no meu taco poético e na minha erudição. No caso de projetos longos, eu chegava a entrar numa espécie de transe, semelhante aos de Fernando Pessoa ou de certos bruxos, durante o qual a atividade criativa se torna febril, compulsiva, e as horas de digitação ultrapassam a rotina. No caso do romance lírico RAYMUNDO CURUPYRA, O CAYPORA, por exemplo, compus duzentos sonetos em dois meses e o enredo se desenvolvia simultaneamente ao processo de digitação, como si eu estivesse “possuído” pelos demônios da poesia. Isso também ocorria na fase em que os primeiros sonetos se sucediam durante a insônia e sob a excitação das fantasias masturbatórias. Considero que tal atividade sofre influencia transcendental e, embora não seja kardecista, acredito em algum tipo de assistência espiritual, não exatamente uma psicografia, mas uma “revelação” da parte de meus confrades cegos já desencarnados, como Homero, Milton, Borges ou o Cego Aderaldo. Também recebo algum sopro no ouvido da parte de Sade e Masoch, naturalmente… (risos)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Só os mostro ao meu esposo, mas não para submetê-los a alguma critica e sim para comentar com ele algum ponto que já tinha sido assumto de conversa. Reviso cada poema apenas uma vez, logo após composto. O mesmo vale para cada parágrafo em prosa, como este. Anos depois, faço eventuais correções quando estou repassando algo que já foi publicado mas pode ser reeditado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando ainda enxergava eu preferia redigir tudo à mão, rasurando e reescrevendo até concluir, e só depois de quais pronto datilografava numa máquina manual tipo Olivetti. Já cego, só me resta fazer tudo de memória ou direto na máquina falante. De memória só componho quando o poema é curto e a ideia já está clara. Em geral começo e termino no teclado mesmo.
De onde veem suas ideias? Ha um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias proveem de três fontes básicas: O noticiário corrente, que me dá sugestões comportamentais, politicas e artísticas; as situações mais cômicas ou grotescas que ouço ou presencio; e as fantasias masturbatórias, estas exageradas pela cena sadomasoquista. Com tais ingredientes, é impossível deixar de criar algo em poesia ou prosa. Como diziam os antigos satíricos, difícil não nos é fazer humor; difícil é deixarmos de fazê-lo. E como diziam os velhos trovadores, não é difícil ser poeta: ou é muito fácil, ou é impossível.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo si pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu não apenas diria, eu voltei efetivamente. Comecei escrevendo pela ortografia clássica, na época em que me bacharelei em biblioteconomia e quando editei meu poezine, o JORNAL DOBRABIL. Mais tarde, fiz concessão à grafia oficial quando comecei a ser publicado, sob contrato, por editoras comerciais, mas, após a ultima reforma, em 2009, decidi retornar de vez ao sistema etimológico, movido pela minha independência intelectual, politica, poética e estética.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ainda enxergando me arrependi de não ter empreendido uma enciclopédia da tortura, na época em que publiquei O QUE É TORTURA pela coleção “Primeiros Passos” da editora Braziliense. Depois de cego, me faz falta que me leiam em voz alta uma historia universal da cegueira que não omita tantos olhos vazados nos prisioneiros de guerra escravizados em tantos séculos de “civilização”, a exemplo de Sansão no Velho Testamento, que obviamente não foi caso isolado. Na falta de tal livro, compus eu mesmo uma releitura daquela alegoria, em forma de narrativa sonetística à maneira de Milton no AGONISTA. Continuo aguardando a contribuição de algum autor melhor que Saramago, o que não será lá muito difícil de suceder. (risos)