Gisele Cittadino é Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Os meus dias sempre começam muito tarde. A expressão “rotina matinal” quase não tem sentido para mim. Aulas, reuniões, orientações, trabalhos burocráticos ligados à coordenação da pós-graduação só se tornam atividades não dolorosas depois das 11 horas da manhã. Escrever nesse horário, então, é tarefa impossível. Nem lista de supermercado, nem bilhetes de amor, e menos ainda um trabalho acadêmico. Para compensar, trabalho com imenso prazer madrugada adentro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A partir das 13 horas, tudo muda. Com a manhã finda e o estômago forrado, a vida começa com alegria. Nos dias reservados à escrita, nenhuma outra atividade pode concorrer com ela. Preciso ter a certeza de que todo o tempo que disponho será exclusivamente dedicado a essa tarefa. É claro que posso ser interrompida. Não se trata de um claustro incomunicável, mas tampouco é uma atividade que pode ser “ligada” e “desligada” a qualquer momento. Nos dias em que dou aula, dificilmente escrevo. Não há muitos rituais, mas reúno as anotações, alguns livros e textos, muitas canetas e lápis e um caderno de espiral, cujas páginas serão inevitavelmente arrancadas e jogadas ao lixo, um sem número de vezes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Metas? Nem pensar. Escrevo um pouco nos dias reservados para isso e jamais consegui me sentar e escrever um artigo em uns poucos dias. Dificilmente deixo de cumprir os prazos que as pessoas ou as instituições me impõem. Sou obediente e obsessiva. O trabalho que me foi encomendado para julho próximo já está praticamente pronto em minha cabeça, e vou precisar de uns dois meses para escrevê-lo. Mas quando não tenho prazos previamente estabelecidos, a eternidade exerce um enorme encanto sobre mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Aprendi a bordar quando criança, nos tempos em que as meninas, no colégio, enfrentavam linhas coloridas e bastidor, enquanto os meninos construíam lindos aviões de madeira. Aquilo que me parecia uma distribuição injusta de tarefas na infância se transformou num grande prazer quando fiquei adulta. Comparo a escrita ao bordado. Faço um esboço, começo bem devagar, desmancho, faço, refaço e ele vai ganhando forma. À medida em que avanço, vou ficando encantada com o resultado. Jamais dou por concluído um bordado ou um texto se não fico admirada com o produto final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já faz um bom tempo que me livrei dessas travas e medos. Tenho a impressão que elas são típicas da juventude, ainda que não me lembre de grandes angústias em relação às expectativas alheias. De qualquer maneira, acho que a idade traz uma certa segurança e autoconfiança. Quanto aos projetos longos, o último deles foi a tese de doutorado, de 1998, que virou um livro com várias edições. Foram dois anos dedicados exclusivamente a essa tarefa. Enquanto não o tinha desenhado inteiramente na cabeça, não escrevi uma única linha. O processo me causou um sofrimento tão intenso que não acredito que seja capaz de repetir tal façanha. Bordei e rebordei cada parágrafo várias vezes, mais por exigência minha do que do orientador ou das minhas expectativas quanto à avaliação da banca. Quando concluí, tinha absoluta convicção que jamais alteraria o texto. Tenho um novo livro desenhado na cabeça, mas sinceramente não me sinto disposta a enfrentar, mais uma vez, tanto sofrimento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Cada parágrafo é desenhado, bordado e rebordado. Lanço meu olhar sobre ele diversas vezes. Nunca consegui escrever mais do que uma ou duas páginas por dia. Gosto de parágrafos longos e são muitos os dias em que não consigo escrever mais do que dois. Não é à toa que nunca altero o texto uma vez concluído. A consequência disso é que não partilho meus trabalhos com ninguém durante seu processo de elaboração. Sei que perco muito com isso, mas não apenas não tínhamos esse hábito em minha área, como também não aprendi a sofrer senão individualmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nenhuma ideia sai da minha cabeça para a tela do computador. Ela passa antes pelo papel. Pego a caneta como pego a agulha. Isso não significa dificuldades com a tecnologia. Fiz minha dissertação de mestrado numa época em que não existia computador. Uma máquina eletrônica da IBM, que apagava a última letra datilografada, era um sonho de consumo realizado apenas alguns anos depois. Usei o equivalente a oito cadernos em espiral, datilografei os manuscritos numa máquina Olivetti manual e fiz, literalmente, alguns “cortes” e “colagens”. Muito pouca coisa, pois, como disse, depois de concluído, quase nunca altero o texto. Esse trabalho datilografado foi enviado para uma datilógrafa profissional que nos entregava tudo pronto e encadernado. Enquanto muitos perderam os cabelos quando encontraram necessidade de fazer alterações agora impossíveis, eu nem toquei naqueles volumes pretos encadernados, tal a confiança no meu trabalho e no da datilógrafa. A tese de doutorado não foi diferente. Apenas usei mais cadernos, o computador era uma espécie de Olivetti de última geração, e já não existiam datilógrafas profissionais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Algumas ideias muito interessantes aparecem quando menos espero. Gosto muito de dirigir pensando no trabalho que estou escrevendo. São muitas as vezes em que paro no sinal vermelho e uso o celular como caderno. Essas ideias espontâneas, fruto de inspirações eventuais, são, obviamente, exceções no conjunto do trabalho. Ninguém consegue ser criativo da primeira à última página. Acredito que o único hábito capaz de nos tornar criativos é a leitura. Com o tempo, ela nos permite articular autores, estabelecer conexões entre ideias provenientes de lugares distintos, e experimentar olhares críticos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Aprendi com um dos meus melhores professores, Wanderley Guilherme dos Santos, que existe a “lei da ignorância crescente”, segundo a qual à medida em que estudamos vamos nos dando conta de que a nossa ignorância só faz aumentar. Ao invés de angústia, isso me gerou conforto. Não vou ficar deprimida porque meu colega leu um autor que eu nem conheço. Por outro lado, é bem mais fácil articular ideias e autores quando os conhecemos bem, e, para isso, precisamos de tempo. Ao contrário das matemáticas, em nossa área o tempo joga a nosso favor, e o processo de escrita se torna mais autônomo quando vamos ficando mais velhos. Não faria sentido dar nenhum conselho a mim mesma sobre a escrita da minha tese. Afinal, nada seria capaz de alterar o fato de que 20 anos atrás eu tinha 20 anos a menos de leitura, ainda que tivesse mais capacidade interna de suportar a dor da escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como disse, tenho um livro em elaboração dentro de mim. É um projeto que vem sendo gestado desde 2012 quando ampliei minhas leituras sobre o racismo no Brasil. Esse tema aproximou-se do direito constitucional pela primeira vez através das discussões sobre a legalidade e a legitimidade das políticas de ação afirmativa. Até então, o racismo estava restrito à área penal. Gostaria de articular o tipo e a experiência do racismo no Brasil com a nossa trajetória política e constitucional, tentando demonstrar que aqui os direitos coletivos da comunidade negra devem derivar exclusivamente dos seus direitos individuais.
Muitos autores foram fundamentais na minha formação e trajetória, mas Habermas foi responsável por me causar dois fortes impactos. Já conhecia uns poucos trabalhos dele, quando li A Teoria da Ação Comunicativa. Este texto foi decisivo na minha forma de compreensão das relações sociais, e, ali, o direito já dava sinais da sua importância para o pensamento do autor. Quando, anos depois, tive acesso aos capítulos de Faticidade e Validade – não leio em alemão e um gaúcho traduzia os capítulos para o português e nos enviava muito tempo antes da publicação da edição em inglês – a minha primeira sensação foi a de que Habermas havia escrito o livro para mim. Eu devorava o capítulo recebido e enquanto aguardava a chegada do próximo me divertia muito com essa ideia. Nunca um livro foi tão especialmente feito para mim, sem que o autor fizesse a menor ideia de que eu existia. Adoraria ler novamente um livro com o qual me identificasse tanto, a ponto de imaginar que foi escrito para mim.