Gilberto Morbach é mestre e doutorando em Direito pela Unisinos, editor do Estado da Arte (Estadão) e pesquisador do Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim, absolutamente. Conta-se por aí a história de que Kant era tão pontual em sua rotina própria que os cidadãos de Königsberg acertavam seus relógios de acordo com o momento em que o viam em suas caminhadas diárias. Não tenho um pingo da genialidade de Kant, mas acho que sou tão cheio de manias quanto ele. Acordo bem cedo e começo meus dias sempre com uma xícara de café, uma leitura das manchetes do dia — ultimamente, isso tem sido mais difícil e mais desgastante que o normal — e uma breve organização sintética da agenda diária: compromissos, pendências, enfim. Depois, uma leitura de algo mais pessoal — ultimamente, tenho lido muito do acervo da New York Review of Books — e então uma caminhada (em tempos de quarentena, na esteira) ouvindo algum episódio de algum podcast que me interesse (o favorito é o In Our Time, da BBC).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto-me melhor pela manhã, sem dúvidas. Quanto ao ritual, diria que não é próprio apenas da escrita, mas de qualquer atividade de natureza intelectual; de novo, uma xícara de café. Estou certo de que isso é muito mais psicológico do que qualquer outra coisa e que a quantidade de café que bebo não é nada boa pra minha saúde a longo prazo, mas c’est la vie.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Um pouco das duas coisas, a depender do tipo de escrita — e do tipo de prazo. A meta diária também é variável, ajustável de acordo com o tipo de texto em que trabalho: será diferente para um artigo acadêmico, para minha tese de doutorado e para algum ensaio. Em linhas gerais, a ideia é nunca interromper o cerne do argumento que passei a desenvolver. Se quero dizer x, a meta é deixar o texto apenas depois que senti ter sido capaz de dizer x. (Claro, sempre acabo voltando, revisando ou até rearticulando o argumento, às vezes vendo que estava errado e que o argumento era péssimo; mas, bem, um dia de cada vez.)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo sempre começa com muita leitura e muitas anotações acerca do assunto que pretendo abordar. Tenho sempre muito receio de falar sobre aquilo que não sei; é uma das coisas mais feias, mais desonestas que alguém que se dispõe a escrever pode fazer. Quanto a começar, a primeira frase é sempre difícil. A primeira, aquela que, em alguma medida, dá o tom e adianta um pouco daquilo que vem a seguir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes e mostro sempre pra Bruna, minha companheira, namorada, melhor amiga e sempre primeira leitora.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia não é das melhores, eu não sei fazer muita coisa além de ligar o computador e abrir o Word. Nunca consegui aderir aos e-books, por exemplo. Acho que sou ainda um tanto analógico. Agora, claro, também nem tanto assim: à mão, só as primeiras anotações mais esparsas, iniciais, os primeiros insights. (Não sei se os rascunhos seriam do interesse de muita gente, mas estou certo de que ninguém os entenderia. Minha letra é horrível.)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não há muito segredo. Leitura, sempre. Talvez um exercício interessante seja o de tentar ampliar a esfera de leituras a ponto de garantir minimamente que aquilo que é lido não seja mera confirmação de premissas já assumidas. Quero dizer, parece clichê, mas é realmente importante buscar leituras, perspectivas, prismas diferentes. Não falo apenas de posições políticas, naturalmente, mas até mesmo de estilo e tradição — embora a distinção não seja assim tão estanque, o exemplo é válido: alguém mais analítico precisa ler algo mais continental às vezes, e vice-versa.
Outro exercício que me parece interessante é o da tradução. George Steiner fez isso até o fim da vida. A tradução de fragmentos é mais do que um exercício idiomático, é um exercício completo de linguagem para quem escreve. É sempre uma lição de que existe algo para além de nós mesmos, que mostra que os textos originais têm autoridade e que nossa interpretação tem limites — é essencial para atribuir sentido às coisas, mas tem limites.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje, sinto que consigo equilibrar melhor as coisas e fugir um pouco melhor dos dois grandes pecados extremos: de um lado, projetar demais o próprio ego no texto e falar apenas sobre si mesmo e, de outro, buscar tanto o distanciamento a ponto de tornar o texto uma abstração vazia que não diz nada. Aquela que me parece a boa escrita, a escrita que deve ser buscada, é a que encontra o justo meio. O autor não deve jamais ceder à tentação de dizer somente aquilo que já se espera dele, por obrigação, tornando-se escravo de um gosto alheio presumido; também não deve ser desonesto e fingir uma neutralidade inexistente — deve sempre dizer aquilo que pensa com clareza. Ao mesmo tempo, não vejo nenhum sentido no que fazem aqueles que degradam a arte da escrita transformando-a em mera retórica, em uma busca da polêmica pela polêmica. O “politicamente correto” é ruim, evidentemente, mas a doença de nosso tempo é a busca pelo politicamente incorreto como fim em si mesmo. “Vejam como eu sou polêmico, como eu não tenho medo de desagradar, eu, eu, sempre eu.”
Agora, se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, o conselho que daria a mim mesmo seria o de ler mais e antes e logo alguns dos autores que me ensinaram a ler e escrever: George Steiner, Isaiah Berlin, Joseph Brodsky, Iris Murdoch.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho algumas pesquisas já iniciadas, outras ideias que ainda não foram pro papel, outras ideias que ainda não são bem ideias mas a vontade já existe. Atualmente, o mais próximo de ser iniciado é um estudo mais aprofundado sobre a obra de Judith Shklar — conterrânea de Isaiah Berlin, a propósito; sempre me pergunto o que havia de diferente na água de Riga — e sua concepção de liberalismo do medo.
O livro que eu mais gostaria de ler e que não vai nunca existir é A Vida de um Grande Pecador, que meu grande herói pessoal Dostoiévski iniciou como manuscrito, chegou a usar em alguns de seus grandes livros, mas não concluiu. Claro, há ainda todos os tantos livros que eu gostaria de ler e que não vou conseguir, mas, hoje, já estou em paz com isso, graças a uma crônica de Don Arturo Pérez-Reverte:
“Quando compreendi que nunca leria todos os livros que gostaria de ler, e aceitei essa realidade com resignada melancolia, mudou minha vida de leitor. Fez-se mais plena e madura, do mesmo modo em que, na primeira guerra que eu conheci, reconhecer que eu também poderia morrer mudou minha forma de ver o mundo. Os livros que eu nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li. Estão ali, e eles sabem quem eu sei. Se sobreviverem ao tempo, ao fogo, à água, ao desastre, à estupidez humana, um dia serão de outra pessoa. E graças a mim, que tive o privilégio de resgatá-los de seus milhares de naufrágios, unindo-os à minha vida.”