Gilberto Mendonça Teles é poeta e crítico literário, professor Titular Emérito da UFG.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
É isto mesmo: sou eu quem o começa, não ele: de manhãzinha, entre as cinco e as seis horas. Por aí já estou tomando meu cafezinho.Desde que me lembro foi sempre assim. Aprendi com meu pai fazer o dia ficar maior, isto é, levantar um hora mais cedo e deitar uma hora mais tarde — às seis da manhã e às onze da noite. Foi assim nos tempos de criança, pelo menos a partir dos sete anos; foi assim nos tempos de escola; e assim já em Goiânia, quando professor: sempre gostei de dar aulas a partir das sete; até há pouco quando me aposentei tinha uma classe (de poesia) que começava às sete horas. E o melhor é que habituava os alunos a chegar na hora. Neste ano entro nos sessenta anos de casado (com a mesma mulher) e nos sessenta de professor universitário.
Assim se percebe que a segunda parte da pergunta é mesmo positiva: Tenho, sim, “uma rotina matinal” que se foi modificando mas sem deixar de ser uma “rotina” e que variava de acordo com as cidades onde morei: Goiânia, Lisboa, Montevidéu, Rennes e Nantes (França), Chicago, Salamanca, Lisboa de novo e finalmente o Rio de Janeiro, onde estou há quarenta e nove anos.
Com relação ao trabalho de escrever, ele se dá assim: Primeiro, preciso fazer dele uma doce rotina; acostumar-me a ele, gostar dele, amá-lo. Para isso, saio pouco, elimino as reuniões fúteis, fico a maior parte do tempo em casa, no escritório; penso continuamente no meu projeto, no que desejo escrever; leio com os olhos nele; tomo nota. Depois me lanço à escrita: escrevo, reescrevo, rabisco, passo a limpo e procuro salvá-lo numa pasta, na gaveta ou no computador. Depois é só continuar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pelo que já disse, o melhor para mim é escrever de manhã: nos últimos anos tenho acordado às duas e ficado até às cinco no computador. Sinto que a escrita flui mais facilmente sem os rumores diários, quando na solidão do silêncio.Se há algum ritual, ele está inerente à toda preparação da escrita: saber o que se quer escrever e como escrever, de qualquer maneira fixar-se intensamente na linguagem.E mais: Mesa limpa, só com o material da escrita. Por aí a escritura se faz memória, torna-se vertical, e deslisa-se.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É muito difícil quem tem outro trabalho (e no Brasil a maioria dos escritores o tem) dedicar-se inteiramente só ao mister da escrita (de poesia ou de crítica), como é o meu caso. Se o trabalho não for longo, como uma resenha, um prefácio ou um poema, é fácil terminá-lo pela manhã ou numa tarde. Mas se se tratar de um livro como Drummond, a estilística da repetição ou Camões e a poesia brasileira é preciso de um método que envolva pesquisa e análise, o que leva dias, meses e anos. Os dois volumes de Defesa da poesia, que estão sendo publicados pela Editora do Senado, em Brasília, já me tomou quase dez anos de preparação.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em Hora aberta, reunião de meus poemas pela Editora Vozes (2003), a parte denominada Falavra começa com uma epígrafe de Roland Barthes (“J’ai une maladie: je vois le langage”) e com o poema “Origem”, cuja segunda parte tem a seguinte estrofe:
Todo início é noturno. Todo início
é maior que seu tempo e sua agenda
de imprevistos. Mas todo início aguarda
a visita dos deuses e demônios.
A expressão “deuses e demônios” lembra também Paul Valéry, quando lhe perguntaram se acreditava na inspiração. A sua resposta foi a de que “Os deuses ou os demônios nos dão o primeiro versos, cabe a nós fazer o segundo”. Ou, entã, como acrescentou alguém, “é preciso corrigir também o primeiro verso”. Assim, não basta compilar muitas notas (este foi um dos erros da crítica positivista), mas as necessárias, as suficientespara o método e para saber mover-se da pesquisa para a escrita. Aí entra a importância do valor da linguagem e do estilo: a seleção das palavras na organização clara do discurso. Às vezes a ideia fica revoando na cabeça, nem nos damos conta dela. Até que enfim cai a ficha e a jogamos no teclado ou no papel (há sempre um jogo). Então continuamos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se há algumas travas, elas terão de ser afastadas pela razão, pelo raciocínio a favor da escrita e do saber. Logo, pelo estudo. Penso que as travas da escrita estão em todo início (“todo início e noturno”). À medida que estudamos bem e o suficiente para conhecer as normas da língua (para fugir do obscuro e alcançar a claridade do discurso), começamos a eliminar a maioria dos impecilhos da escrita, principalmente quando passamos a entender as sutilezas do estilo. Por aí grande parte do caminho já teremos avançado no sentido da linguagem escrita e, claro, da literatura que, por sua vez, depois da leitura das várias teorias sobre o discurso literário, já tolhe toda procrastinação e medos de escrever. Quem possuir um bom cabedal de conhecimento linguístico-literário e sentir que foi picado pela abelha mestra pode sem dúvida lançar-se a seu gosto ao prazer da criação literária, do poema ao livro e, dele, com o tempo, à obra literária. Atenção! Não basta apenas saber é preciso adquirir também a sensibilidade artística, que costuma chegar pela leitura dos bons escritores.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando termino de escrever algum poema costumo mostrá-lo a Maria, mas nem sempre. Prefiro que ela leia meu trabalho de crítica e quase sempre aceito a sua opinião sobre algo problema ético. Do ponto de vista gramatical, ela vê pequenas coisas que me passam despercebidas, apesar das duas ou três leituras que lhe fiz.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu demorei a chegar ao computador. Em 1991, trabalhando na Universidade de Chicago, tive um à disposição e, quando voltei, trouxe um Macintoshi que logo teve um problema e eu o deixei de lado. Graças a uma orientanda de doutorado na UFRJ, que mandou instalar um na minha casa, acabei sabendo bastante de alguns programas e hoje acho que o computador me deu mais de vinte anos de vida produtiva. Já escrevo direto nele, mesmo os poemas que no começo tinham de ser rascunhado. Em homenagem a um amigo que me ajudou bastante, fiz o colofão de O terra a terra da linguagem, referenciando com humor alguns programas:
EDITORAÇÃO
Ao André Duran
Para ter o prazer de lamber a própria cria
e se sentir autor de um famoso best seller,
tratou de rabiscar os seus versinhos
sobre uma antiga história de mulher.
O problema foi na hora de editá-los,
de transformá-los em Word e PDF,
de aprender a linguagem do software,
da lógica da nova máquina de escrever.
Tentou o Quarker x Press, o Corel Ventura,
o Illustrator, a perfeição do Wordperfect,
mas viu logo que, com o tempo, a coisa cai no
complicado Pagemaker ou no InDesign.
Assim achou melhor chamar o André
e sair de fininho, e dar no pé.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Se eu fosse o nosso Augusto dos Anjos, diria que ela, a Ideia, “Vem do encéfalo absconso que a constringe, / chega em seguida às cordas do laringe” e “Esbarra / No mulambo da língua paralítica” ou, então, bilaqueanamente, “das palavras de amor que morrem na garganta”. Além dessa visão científico-parnasiana, do início do século do XX, só posso repetir o que está na pergunta: vem de um “conjunto de hábitos” ou de mitos que fui adquirindo na infância, que se ampliaram no imaginário da adolescência e que, de mistura com tudo que já li, estão sendo cultivado com o auxílio da cultura adquirida de uma imensidão de livros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Que mudou, mudou, mas, no fundo, há, persistente, a sombra do mudado. É como se o perespírito agarrasse ao corpo antigo em luta com o “esprit nouveau” da vanguarda que deseja novo léxico, nova sintaxe e novo sentido, mas sabendo da importância “didática” da tradição literária. Não diria nada a mim mesmo: o que escrevi no início tinha de ser como foi dito: funcionou como exercício, matéria escolar, como está aliás no livro Aprendizagem, de 2010.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma História da Poesia Brasileira, aliás pedida por uma grande editora. Ainda não a comecei, mas para a qual vem a experiência de tudo o que li de história literária. Já estou na fase de seleção das obras. Devo tratar mais das obras do que de seus autores. Tem de ser diferente de tudo o que existe a respeito, no Brasil e no exterior. Um livro como esse que pretendo escrever.