Como eu escrevo

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Como escreve Geraldo Lima

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Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Começa, geralmente, pelas atividades domésticas, como ir logo cedo à padaria, tomar o café da manhã à mesa [atualmente, apenas eu e minha esposa, já que os filhos estão longe, cuidando da própria vida], ir ao supermercado, regar as plantas, lavar a louça, depois, pagar as contas, resolver um ou outro problema… Nessas horas, tem-se a impressão de que a criação literária desaparece. Mas que nada, às vezes, desses afazeres ordinários salta uma fagulha que incendeia a mente, e a ideia de um novo texto começa a arder, a crepitar, a consumir minhas energias. E a leitura? E o escrever em si? Pode ser que tudo o que eu disse antes seja subvertido pela urgência de ligar o computador e começar a dar forma a alguma ideia que povoa minha mente há dias. Nesse caso, costumo me levantar mais cedo. Como estou aposentado, posso administrar meu tempo com mais liberdade. Nessas primeiras horas do dia, inclusive, reservo, às vezes, uma pequena parte do meu tempo para me inteirar do noticiário, dar uma passada nas redes sociais. Nesse caso, tendo algum texto interessante, literário ou não, leio-o e compartilho-o. A leitura de livros ou revistas vai se encaixando no ritmo dessa rotina [se é que há uma rotina aí], ora acontecendo logo cedo, ora mais tarde.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

O meu trabalho com a escrita rende tanto pela manhã quanto à noite. É óbvio que escrever pela manhã é mais agradável e tranquilo, a mente descansada, relaxada, mas nem sempre me foi possível fazer isso diariamente, de forma metódica, meu ganha-pão era outro, em sala de aula. Então treinei a minha mente para render também à noite, cansada ou não. Inclusive, quando decidi escolher entre a pintura e a literatura, este foi um fator que pesou bastante para eu optar pela criação literária: eu poderia escrever à noite enquanto a família dormia, sem a necessidade de ter um espaço reservado para isso, ou seja, um atelier. Posso entrar madrugada adentro escrevendo.

Não, não tenho. Nesse ponto sou bastante seco, sento-me e começo a escrever, e tenho a paciência para ficar nessa posição durante um longo tempo, como aconselharia o Philip Roth. O Charles Dickens, imagine, só conseguia escrever de frente para uma janela, e numa mesa decorada!  A Lygia Fagundes Telles disse que tem o hábito de escrever ouvindo música clássica. A Patrícia Highsmith, pelo que contam, costumava tomar uma dose de uísque antes de encarar a escrita. Cada qual com suas manias, não é? Nesse sentido, sou bem comum, nada de anormal, eu acho.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Costumo escrever um pouco todos os dias, isso é um hábito, uma necessidade, um compromisso com a criação literária. E mesmo que não tenha nada de novo para escrever, ou uma história para concluir, sento-me diante do laptop e releio algum dos meus textos, faço correções gramaticais, ajustes no enredo etc. Estou sempre burilando os meus textos. Sinto-me compelido a fazê-lo.

Agora, não estabeleço uma meta de escrita diária, do tipo, escrever uma, duas ou mais páginas, ou ter a obrigação de concluir sempre o texto, no caso de um conto, uma crônica ou uma resenha. Não, não, vai até onde me sinto motivado a ir. Como eu disse, pode ser que esse labor entre madrugada adentro, mas nem sempre acontece dessa forma.

Uma ressalva: se há um prazo para entrega do texto, como pode acontecer com uma resenha que vai ser enviada a alguma revista ou jornal, com prazo de entrega definido, aí procuro ser mais ágil e concluir logo o texto, às vezes faço isso numa sentada só.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Parto, quase sempre, de uma ideia que me toma de assalto, que se aloja em minha mente e só vai me deixar em paz quando finalizo o texto.  Primeiro, já com a ideia da história me provocando, me distraindo dos outros afazes, trabalho os textos na mente, ou seja, antes de passá-los para o papel deixou-os rolando na mente, às vezes já com início, meio e fim, às vezes somente o começo, uma ideia ainda vaga. Durante esse processo mental, pode ser que eu faça alguma anotação, um esboço, um resumo da história. Isso se dá mais comumente com as histórias curtas: contos e minicontos. No caso do romance ou das peças de teatro, além de ir trabalhando o texto na mente, antes de começar a escrever, vou fazendo pesquisas sobre a temática, anotando informações mais precisas sobre os personagens, sobre eventos históricos que venham a ser mencionados no enredo etc.

Nem sempre é fácil iniciar a escrita de um novo texto, seja uma narrativa curta, seja uma longa. Mesmo com tudo anotado, com o tipo de narrador a ser usado, o como contar a história, ou seja, mesmo com o texto estruturado na cabeça, não é fácil dar o pontapé inicial. A ideia de fracasso é permanente, criando uma tensão antes e durante o processo de escritura do texto.  Há, sem dúvida, a sensação ou o temor de que não vou conseguir colocar a história no papel.

Mas, depois que começo, vai ficando mais fácil e menos estressante avançar na escrita. Costuma acontecer de a pesquisa, feita inicialmente, não ser suficiente para a elaboração de todo o texto. Durante esse avançar na sua elaboração, novas exigências de pesquisas, de leituras podem se impor. Então paro e me dedico a elas. Durante a criação do meu romance UM [LGE Editora, 2009], por exemplo, tive que parar e ler mais sobre Santo Agostinho, já que a vida do protagonista, um ex-seminarista, tinha muito a ver com a do pensador católico. A leitura do seu Confissões foi fundamental para que eu pudesse avançar na elaboração do romance. Então, isso é algo que acontece, normalmente, na criação dos textos mais longos, romances, peças de teatro ou roteiros.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Lido sempre de maneira angustiante, sabendo que não tenho outra saída senão iniciar a feitura do texto e avançar. Uma vez instalada a ideia de uma nova história em minha mente, só me livro dela ao passá-la para o papel. Recentemente iniciei a elaboração de um conto, cuja história se passa durante a pandemia de Covid-19, e, lá para as tantas, bateu a dúvida sobre o destino da personagem. Tive a impressão de que não iria chegar a uma solução, o que eu havia imaginado parecia não funcionar naquele caso. Deixei o texto de lado uns dias até que, ao retomar a sua elaboração, consegui encontrar um final adequado. No caso da criação de textos mais longos, como o romance, o processo é mais aflitivo porque pode durar meses, ou anos, e muitos são os temores de que não conseguirei concluir a obra.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Reviso os meus textos várias e várias vezes. O processo de reescritura é constante. Enquanto eles não se transformam em livro, vão sendo revisados por mim, às vezes para mudar apenas uma palavra ou melhorar a estrutura de uma frase. Até o último segundo, antes de irem para a editora, releio-os e faço alterações. Pode ser que já estejam na editora, em fase de diagramação, que me vem à mente a necessidade de substituir uma palavra ou eliminá-la – é o caso agora do meu romance O vazio está do outro lado, que se encontra na Editora Patuá, em fase de edição. Já tenho aqui, anotadas, duas ou três palavras que devo substituir assim que ele voltar para que eu faça a revisão de provas.

No início, não tinha essa prática, escrevia e publicava, até mesmo sem me preocupar com revisão. Hoje, mais que nunca, acho fundamental que outras pessoas leiam os meus textos antes de serem publicados. Este meu último romance, O vazio está do outro lado, por exemplo, foi lido por algumas pessoas, e cada sugestão de alteração, acréscimo ou ajuste no texto foi acatada por mim.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Atualmente escrevo direto no computador, apenas trago para o papel aquilo que já burilei bastante na mente. Mas nem sempre foi assim. Comecei escrevendo à mão, enchendo cadernos e mais cadernos com poemas e contos. Só mais adiante é que meu pai comprou uma máquina de escrever para os filhos, uma Olivetti manual, que tenho até hoje. O fato é que, sendo o escritor da família, meio que me apoderei da máquina. A partir desse ponto ficou mais fácil escrever, mas nada se compara ao estágio atual, com a escrita direta no Word, podendo-se fazer uso do Ctrl + C e do Ctrl + V, do delete, do simplesmente apagar com a tecla Backspace. Ou seja, não preciso digitar o texto todo novamente, como geralmente se fazia na era da máquina de escrever.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

Vêm das mais variadas fontes: da experiência pessoal, da observação atenta da realidade, da memória, da leitura dos mais diversos gêneros literários ou gêneros textuais, de casos contados por outras pessoas, de cenas flagradas na rua, da imaginação etc.

O hábito que cultivo, se posso dizer assim, para me manter criativo, para que novas ideias povoem minha mente, é estar sempre atento à dinâmica da vida, receptivo tanto à sua calmaria quanto às suas tempestades cotidianas. A criação artística, pelo menos para mim, nasce, em parte, desse espanto diário que é existir. E existir, para mim, é estar mergulhado nesse caldo pastoso que é a vida humana. Agora, ler, para mim, é o hábito fundamental que todo aspirante a escritor deve adquirir e conservar por toda a vida, caso queira se manter inquieto e criativo.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Mudou, sem dúvida, o apuro técnico, o trabalho mais cuidadoso com a linguagem, com a correção gramatical, com a construção dos personagens e do enredo. Há uma preocupação maior com o tempo de maturação do texto. Aumentou a minha capacidade de explorar os recursos expressivos da língua, evitando, no entanto, os excessos. Tenho hoje um texto mais enxuto, sem deixar, no entanto, de ser poético, denso, provocativo.

Eu tenho relido os meus textos mais antigos, estou, inclusive, reescrevendo meu primeiro romance, aplicando um pouco mais desse apuro técnico, mas mantendo-o na sua essência. Eu diria exatamente isto: revise-os, sem, no entanto, desfigurá-los, porque, creio, eles são o registro da minha visão de mundo naquele momento, testemunham o quanto de domínio das técnicas narrativas eu possuía até então e apontam a extensão dos meus horizontes imaginativos. Devo dizer que meus primeiros contos são bastante experimentais, alguns deles encontram-se no meu primeiro livro, A noite dos vagalumes [FCDF], resultado de um prêmio que ganhei em Brasília em 1997. Vê-se, logo, que não dá para mexer muito neles sem alterar a sua concepção estética.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Eu tenho a intenção de escrever um romance que seria burilado por mim ao infinito, um texto que não tivesse, a princípio, o objetivo de chegar a outro leitor senão a mim mesmo, seu leitor-criador. Um eterno gozo de escrita que não se esgota, já que não tem como objetivo a publicação. Livre, enfim, daquele desespero que ameaça paralisar o protagonista de A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges: “A certeza de que tudo está escrito nos anula ou faz de nós fantasmas”. Nunca a ideia de ser mais um livro na vasta biblioteca. Só o prazer de escrever e escrever e escrever… Esse é o livro que eu gostaria de ler, e que talvez nunca leia.

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    Sobre o editor

    José Nunes é editor da Colenda.

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