Gabrielle Albiero é jornalista, professora e autora de Pangeia: fragmentos da guerra da Síria no Brasil.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como trabalho com revisão de texto, a minha produção textual fica concentrada em finais de semana e pós-expediente. Se pudesse escolher, gostaria de escrever durante o dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de escrever em lugares silenciosos, organizados e com uma iluminação não tão forte. Em relação à hora do dia, tudo depende do caráter do texto. Quando é mais intimista, como poesias e contos, prefiro escrever à noite e de madrugada. Se o texto for mais acadêmico, prefiro o dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A minha organização se dá a partir do que tenho que escrever e quanto tempo tenho para isso. Não tenho metas diárias, organizo a escrita a partir de pequenos prazos. Mas essa organização também precisa englobar processos não tão produtivos, como deixar o conteúdo de lado um pouco ou conversar com alguém a respeito ou ler algo que nada tem a ver com aquilo diretamente, mas que vai me ajudar a escrever, que vai me dar inspiração ou fôlego.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevo textos mais acadêmicos ou jornalísticos, o primeiro momento é o de pesquisa excessiva. Geralmente, durante a pesquisa, eu me sinto provocada a escrever, mas espero. Essa espera gera uma tensão, e é nela que me sinto criativa e, ao mesmo tempo, sinto medo de não conseguir dar conta. Quando sinto que essa tensão chegou ao limite, que consegui tocar o lado criativo, aí é lidar com o medo e começar a escrever. A maioria das vezes, quando consigo escrever o primeiro parágrafo, tudo flui, como se eu desse vazão ao que estava tensionado. Lógico, se o tempo é curto, esses momentos ficam menos delineados, mas existem.
Por outro lado, quando escrevo poesias ou contos, o processo é um pouco diferente. Alguma imagem, impressão ou até mesmo sonoridade de palavras me toca. De novo, represo esse impulso de dar vazão e da espera gera-se a tensão. No caso dos contos, consigo trabalhar melhor questões de construção que, por mais que sejam criativas, ainda conversam com um lugar racional. No caso dos poemas, eu me sinto menos no controle, mais em um campo de inspiração, por isso são eles o que mais respeito e os que me deixam mais insegura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há uma parte muito rigorosa em mim que apenas sempre afirma que o que foi feito “não está bom o suficiente”. Por um bom tempo, ela foi um peso muito grande, que me fez menosprezar meu trabalho e até deixá-lo de lado. Hoje tento dialogar com ela, isso é bom porque reafirmo o porquê faço as coisas que faço. Nunca estará perfeito, mas escrevo somente coisas em que acredito e busco escrever porque acredito e não pelo ideal de perfeição. Acho que isso legitima o processo, até porque, se estivesse perfeito e não fosse algo em que acredito, de nada valeria.
Em relação aos contos e poesias, sempre escrevo jurando para mim que aquilo nunca será visto por outra pessoa e depois me traio e publico. Sinto que eles são íntimos demais, desnudos e que, por isso, também me exponho demais. Mas aí também há uma questão que li em uma entrevista da Flávia Péret, que a escrita é um conjunto de símbolos arbitrários e abstratos, o que foi escrito nunca será exatamente o que foi lido, porque não há verdade vinculada à palavra e porque o processo de interpretação também é de criação, um processo conjunto. Então essa nudez não é possível, sempre há alguém para vesti-la, mesmo que com a nudez dele mesmo ou com a interpretação que ele tem da nudez. A minha nudez em si só pode ser vista por mim. Da Flávia, também guardo um ótimo conselho: foda-se o que você pensa do seu texto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quantas for possível, gosto da comparação do Graciliano Ramos entre a escrita e o processo das lavadeiras de Alagoas, que torcem a roupa inúmeras vezes ao lavá-la; acho que é como o texto deve ser tratado, tirando excessos, lapidando.
Mas há um momento em que o olhar fica “viciado”, e aí não adianta continuar a revisão, é preciso deixar o texto de lado, dar um tempo e voltar. Por isso, acho bom quando há um período entre a escrita do texto e a revisão. Há uma ou duas pessoas para as quais mostro as coisas que escrevo antes de publicá-las, são pessoas que sei que serão sinceras e cuja opinião é importante para mim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto muito de escrever à mão, porém só nos meus cadernos de anotação diária, cujo conteúdo ninguém vê. Há muitas coisas deles que acabo gostando e quero lapidar e publicar, mas aí é no computador. Normalmente, as coisas vêm muito rápido e de uma vez, e o computador acompanha isso, escrever à mão é mais lento. Por outro lado, quando preciso documentar entrevistas e pesquisas, gosto que seja feito no papel, acho mais seguro e “real”. Para mim, a tecnologia é mais prática, mas tudo se perde mais fácil.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu preciso ter paixão por aquilo que escrevo e acreditar naquilo. Sei o que me toca, o que me incita e o que me desafia e busco por isso – autores, ideais, amigos, outras paixões. Às vezes, esse encanto se perde pela pressão de produzir. É preciso ter disciplina na paixão também.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tento ser mais generosa e menos rigorosa com aquilo que tentei exercer e não consegui. Se pudesse voltar, acho que diria para dar mais enfoque em amarrar os pontos do que em prever a imagem toda a que chegarei no fim do percurso. No entanto, é preciso tentar prever a imagem, é um exercício que ajuda a selecionar o que deve ser dito ou não e em que momento, ajuda também a ter um senso estético de construção narrativa. Mas esse exercício em excesso pode ser uma trava, impedir que você tenha novas ideias ou fazer que você se sinta inapto ao trabalho, porque toda imagem prévia é também uma imagem idealizada, inalcançável.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não consigo pensar agora em um livro que gostaria de ler e que não existe, mas penso logo em traduções que gostaria que existissem. Gostaria muito que houvesse tradução da obra da Lou Andreas-Salomé, mas não há. Do italiano, também gostaria de ler a Elsa Morante, por exemplo, mas as traduções são poucas e antigas, não tenho certeza da qualidade; mesmo caso da Nathália Ginzburg, que, apesar de haver boas traduções, não tem a obra inteira ainda em português. Sem contar os espólios da Cosac Naify que ainda não têm previsão de reedição por outra editora e que estão à venda por um preço nababesco na estante virtual, como Moby Dick traduzido pela Irene Hirsch.