Gabriela Soutello é escritora e jornalista, autora de “Ninguém vai lembrar de mim”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo e me demoro. Como trabalho, atualmente e ainda, em horário comercial e cercada de gente, gosto de ter nas manhãs um início de dia inteiro meu. Passo café e como alguma coisa sentada na varanda, onde geralmente bate sol, quando há sol. Ali ouço os barulhos da cidade já acordada. De manhã eu mais sinto do que penso, então é meu corpo quem entende o calor ou o vento gelado, os sons, os climas, as frequências do dia que está nascendo, e acorda junto, em sintonia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Certamente pela manhã – após esse momento inicial de amanhecer junto ao dia. Gosto de escrever no claro, próxima a janelas, vidros, ventos, sóis, luminosidades. Os sábados são meus dias preferidos, porque não preciso me preocupar com compromissos em seguida. Gosto de ter tempo, de saber que tenho um espaço de horas – ainda que não o use inteiro – para me dedicar às palavras. É também quando leio, trechos de quatro ou cinco ou mais livros, a depender do momento. Meu ritual é somente esse: ter tempo e luz, e nada que me pressione ou prenda. Aí, me permito uma imersão completa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O que escrevo todos os dias são frases soltas, rompantes de ideias, filosofias de rua, sensações que me atravessam de acordo com o que me acontece a cada vez. Quando tenho um texto para nascer, ele suscita frases assim que giram em torno de uma mesma temática e em um período determinado (que geralmente não é o mesmo, mas não é longo, porque urgente), e, nesses casos, faz-se um tempo concentrado todo inteiro dedicado a ele. Quando tenho prazos, obviamente, também. Não tenho uma meta imediata de escrita diária porque infelizmente não consigo tempo & espaço suficientes para isso, ainda. Mas tenho uma a médio prazo, sim, a de alcançar esse espaçotempo – saudável, e não atropelada por tudo o que me proponho a fazer de uma vez – de ao menos duas horas ininterruptas para o mergulho disciplinado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é difícil começar porque o texto já começa, justamente, antes de ser escrito. Posso me demorar sobre um tema, por exemplo, por três dias – e ele vai me acompanhar às vezes no meu pensamento ativo, e às vezes no inconsciente (particularmente, quando eu mais me divirto, já que de repente me vem pronta uma frase após sentir um gosto, ou um medo, ou um susto). Após esse período, sento e junto os pedaços soltos, mas interligados. Aí é só unir as anotações em linha narrativa. Como gosto também de desafiar as paredes da linguagem, me deixo livre para co-criar, com as palavras vivas, uma lógica própria em cada texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não existe maior fantasma que me acompanhe do que esse: o de não corresponder. Curiosamente, um dos lugares em que ele não é tão presente é na escrita. Talvez porque em quase todo o resto eu me preocupe em ser. Na literatura eu encontro o meu abismo de liberdade. Prefiro não pensar em quem vai ler. Escolho não imaginar o que vão dizer. Espero somente que atravesse alguém – e até de forma incômoda, por que não? Espero que o texto alcance os caminhos que pode e deve e irá alcançar. A ansiedade, também, reservo para os momentos em que preciso me divulgar, me expor assim Gabriela, falar em público, defender uma ideia, etc. Para não dizer que ela não aparece nunca na escrita, existe sempre quando há prazo, já bastante vizinha da procrastinação, e, bem, com essa, imagino ter que me lembrar de criar um método pra tentar, quem sabe, talvez, conseguir lidar, durante toda a vida. Sou muito aberta e distraída, os estímulos todos me puxam fácil ao desvio.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Varia de acordo com o tempo que eu tenho para entregá-lo. Geralmente, assim que termino de escrever, releio e reviso duas ou três vezes. Depois, deixo o texto respirar e me tiro da responsabilidade de mantê-lo comigo: já está ali, escrito, então eu vou sair daquele espectro e pensar em vertentes outras. Volto depois de alguns dias, quando posso, e reviso com o olhar desviciado. Às vezes me surpreendo e sinto que ele está bom, às vezes dou a arrematada que faltava, mas, na maioria das vezes, nem com cinquenta e sete revisões vou sentir que ele está pronto para ser lido. Mas, chega uma hora em que não há mais muito como segurar: ou você deixa ir, ou nunca vai sair do pulso. E tudo que eu não quero é ser mãe controladora, então tento trabalhar constantemente esse meu perfeccionismo insuportável. E mostro, sim, para algumas poucas pessoas que também escrevem e em quem confio: na literatura, no olhar e no abraço.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo as primeiras coisas em cadernos pequenos que sempre carrego comigo. Sei que serão rascunhos porque o texto se forma mais fluido quando paro para digitá-lo – e já está aí, nesse primeiro reescrever, uma outra revisão. É geralmente no computador que os textos jovens ganham corpo, se expandem. Tenho, ainda, um grupo só comigo no WhatsApp. Ele se chama “Gabriela sóbria/bêbada”. É maravilhoso para quando me vêm ideias que não tenho certeza se são boas, mas quero anotar, e rápido. Só eu vejo. Já cheguei até a me mandar áudio. O dia seguinte é, geralmente, lamentável, rs. Mas, vez ou outra, nascem palavras e até frases boas dali também. Mais recentemente, comecei a postar textos curtos no Instagram (@gabrielasoutello), e o retorno, as conversas e as trocas com leitorxs por lá têm sido bastante engrandecedores.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu percebo que há dois lugares onde me sinto absolutamente livre para sentir, expor, existir, criar e deixar correr o que vier, sem amarras: no sexo e na literatura. Penso que minha pulsão de criação vem, primeiro, do corpo; dos sentidos. São as absorções inconscientes, inexatas, escorregadias e pouco racionais que me instigam o salto primeiro, nesses dois âmbitos. No dia a dia, sou uma pessoa bastante analítica; com exceção do álcool, não uso entorpecentes porque fico paranoica, minha cabeça me interrompe em muitos casos. Mas não nesses. Então, minhas ideias vêm de muitos pontos em branco, de algum lado do cérebro que não se sente assim tão responsável como o outro, que me conduz superatenta na vida cotidiana. Ou seja: para me manter criativa eu me permito não pensar, de vez em quando. E correr, andar pela cidade, movimentar meu corpo em exercício é também algo que ajuda a destravar ideias adormecidas pela rotina ultrapensante.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que consegui encontrar um pouco mais de equilíbrio entre abstrações soltas e uma certa lógica – ainda que literária e, portanto, nem sempre quadrada. Para a Gabriela que começou a escrever em diários aos 5 anos, diria apenas para seguir, assim mesmo, como foi, a cada novo aniversário e a cada nova ferramenta. Cada momento tem uma fase que é certamente degrau para o que virá a seguir. Sei que estou constante em transformação, mutável e itinerante, e não haveria de ser diferente na minha escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever um romance. E com pesquisa, calma, dedicação, tempo, espaço, respiro, ócio. Quero ter direito a tudo isso, ainda que eu decida escrever o grosso em um período curto. Mas quero saber que me joguei com ferocidade e liberdade em leituras e estudos no máximo do meu máximo. Tudo me é estímulo, então tudo me desperta história, cenário, absorções inventivas que viram narrativas curtas. Mas tenho vontade de ir mais a fundo em mim e ver o que consigo alcançar maior. Até hoje, só pude fazer isso em trabalhos não literários. O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe talvez já exista e eu vou saber quando encontrá-lo. Preciso que ele seja uma surpresa: algo que se encaixe no momento exato do ali. Mas, provavelmente vai falar sobre contradições humanas, corpos dissidentes, androginia, sujeiras permissivas, imagens inconscientes, morte e tempo, descaminhos e valas, medos e monstros que estimulam uma vida toda inteira completa, junções de estéticas agradáveis, sustos-estímulos e por aí vai.