Gabriela Silva é doutora em Teoria da Literatura, professora e pesquisadora de Literatura Portuguesa e poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina de pesquisa, como sou professora e pesquisadora de Literatura Portuguesa, tenho meu horário de escrita de artigos, ensaios e resenhas. Costumo realizar essas atividades na parte a manhã, que me permite aproveitar melhor o dia para as demais atividades que eu pretenda realizar. Meu horário de escrita desses textos implica também o horário de leitura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho bem quase por todo o dia, na minha escrita acadêmica. A vida notívaga, que implicava em sentar-me à secretária às 23:00 horas e prosseguir até o raiar do sol, não me agrada mais. Hoje, mantenho horários mais saudáveis para o trabalho. A escrita poética acaba por se misturar ao longo do dia no trabalho de pesquisadora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária e não escrevo todos os dias. Embora o trabalho acadêmico exija uma velocidade e uma produção acentuada e sem distrações. Acabo por trabalhar com margens de tempo: tantos dias para pesquisar, redigir, corrigir e revisar. A poesia é algo que me surge mesmo em inspiração. O trabalho só acaba por ser regrado quando reviso os poemas para publicar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho dois processos de escrita diferentes o processo de escrita acadêmica implica num hábito muito antigo: escrevo tudo a mão; tenho muitos cadernos anotados à lápis em que vou rascunhando meus artigos e ensaios, as resenhas do mesmo modo. Assim, eu penso, é como se ao escrever à lápis algo de luminoso me permitisse pensar, transcender o texto, sem o brilho da máquina a minha frente, aquele traço piscando no Word e pedindo palavras o mais rápido possível. Eu pesquiso, anoto, recorro a todo o material que me parece válido para construir o que preciso e depois parto para a escrita. Gosto do momento em que digo: “Pronto, já posso começar a digitar essas coisas todas. Há um texto aqui.” Os poemas, são rabiscados também, geralmente, eles ocupam espaços entre os textos acadêmicos, as últimas páginas dos cadernos de teoria…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido muito bem com as travas ou com a procrastinação. Preciso de regras para escrever, minha liberdade, por mais absurdo que pareça, funciona melhor quando eu consigo colocá-la como prêmio aos meus prazos e projetos cumpridos. Não cumprir algo para mim, soa-me muito mal, como se eu mesma me sabotasse.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muitas vezes meus textos. Escrevo-os, faço um intervalo de algum tempo, de acordo com o que posso e reviso. Tenho dois amigos leitores/revisores, confio muito neles, muito mesmo. Faço perguntas diferentes para cada um, sobretudo, um lê os textos acadêmicos e os poéticos, outro lê os poéticos (ambos são excelentes leitores, mas o que lê os poemas essencialmente, consegue na maioria das vezes identificar o pathos e me sugerir palavras, cortes e sonoridades que deixam o poema melhor trabalhado).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo é escrito à mão: artigos, ensaios, resenhas e poemas. Até mesmo a minha tese de doutoramento foi escrita à mão em vários Moleskines, depois digitada. Gosto de escrever a lápis, de colar quadrados coloridos entre as partes do texto, com informações importantes ou que eu considere relevantes. Sou um pouco maniática com a minha letra, que é de “forma” como de dizia antigamente, ao escrever de maneira cursiva parece que perco um pouco a minha identidade. Minha letra é um tanto de mim mesma.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias poéticas vêm das coisas que não posso dizer, tanto boas como más. Quando o nó tranca a minha garganta e a ideia fica permanentemente na minha mente, sei que preciso escrever, transformar aquele incômodo em poesia. É como se sufocasse até conseguir dizer. E as palavras me chamam a atenção, tenho um campo semântico que é peculiar na minha escrita poética, essas palavras me provocam, me fazem querer tê-las nos meus poemas. Isso me dá uma imensa vontade de escrever. E outra, dou ritmo aos meus poemas, enquanto ando, eles tem exatamente o ritmo do meu caminhar, pois eu gosto de pensar que eles tem algo de batimento cardíaco e devem estar associados à sístole e diástole. E gosto de um verso que me cause a epifania, um movimento em que eu mesma me emociono com o poema, dai eu penso: pronto, é isto, é esse o poema que vai ser escrito. Eu observo o mundo e a mim mesma, o ritmo do mundo sempre me deixou em estado de encantamento: andar, respirar, o movimento das cidades, da natureza, o pulsar de tudo em tudo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aprendi que tenho uma voz potente, tanto na escrita acadêmica, quanto na escrita poética. Por que gosto da paixão, do amor extremado pelo que faço, quando falo de Fernando Pessoa, de Sophia de Mello Breyner Andresen, de Fiama Hasse Pais Brandão e de Herberto Helder ou de José Saramago, meu coração dá pulos, aprendi que esses pulos podiam ser os guias do meu conhecimento, por isso tenho uma urgência de saber mais, de querer mais, de poder expressar tudo o que sinto sobre o que estudo. Na poesia, libertei uma voz que me habita há muito tempo: eu preciso falar sobre o que sinto, preciso dizer, mesmo que ninguém me queira ouvir, o grito silenciado é algo que fica criando bolor na alma e isso não me serve. A poesia pede o mundo, por que ela vem do mundo, quem se destina a escrever poesia, sabe que ela lateja no peito, nas têmporas, no estômago. A poesia para mim é navalha, corte, sangue, paixão. Gosto de pensar nela como algo antigo e feroz, quando entendi que meus punhos cerrados, precisavam se abrir e escrever à tinta o que meu peito sentia, percebi que era poeta. Ou melhor, disseram-me és poeta.
A mesma relação eu tenho com a Teoria da Literatura e a Literatura Portuguesa: aprendi a ter voz. Aprendi que o amor que eu sinto, tem uma potência enorme e vejo isso quando alguém me procura depois de ler um artigo ou ver uma aula minha, está ali, quando eu cerro os punhos ( cerro mesmo) e leio um trecho da Ilíada ou Hamlet, ainda quando minha voz se toma de emoção e fraqueja ao ler Fernando Pessoa e Camões. A Literatura para mim é desassossego, e é isto que me mantém viva. Escolhi ser professora de Literatura porque nunca soube viver sem ela, desde criança. É meu amor e desejo, sempre. A poesia, esta, me apareceu quando um dia o coração parecia que iria romper-se ao meio, e a mão escolheu o papel e o lápis para salvar o resto do corpo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro de poemas com as imagens de uma cidade que gosto muito, na qual fui muito feliz e até hoje sou: Lisboa. Cada novo sopro da brisa do Tejo trouxe-me poemas que foram escritos e às vezes retorno a eles. Quero um dia vê-los ao lado das imagens que os fizeram nascer: a fonte de uma praça, as colunas de um cais, o calcanhar exposto de um deus, um santo que observa o povo ou as ruas estreitas de um bairro antigo.
O livro que eu gostaria de ler, já existe e eu o li, aliás, nele habita um dos meus grandes amores: o Livro do desassossego de Fernando Pessoa e seu semi-heterônimo Bernando Soares. A sensação que tive ao ler este livro, para mim, até hoje é como quando adolescentes vemos o objeto de nosso amor se aproximar: algo que deambula do peito ao estômago e nos causa um efeito de entorpecimento.
O livro por vir (lembrando Blanchot) teria que me arrebatar desta mesma maneira ou de outra mais feroz ainda. O certo é que um dia outro livro me deixará muda de encantamento e adoração. E eu sempre quero me sentir assim de novo.