Gabriela Ribeiro Lozano é graduanda em Letras pela Universidade de São Paulo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal muito específica por, sobretudo, ter uma rotina muito noturna, visto que optei por cursar Letras no período noturno na Universidade de São Paulo. Então todos os dias acabo chegando muito tarde em casa por morar distante da faculdade (nos tempos antes da pandemia), mas também não havia espaços para muitas “irregularidades” nas manhãs, já que acordava sempre no mesmo horário durante os dias de semana, pontualmente às nove da manhã. Acredito que o que nunca falta de manhã é sempre café preto (de vez em quando chá) e música. Durante esse tempo de tomar café e ficar escutando música, tento organizar o que preciso fazer no decorrer do dia e, se for numa segunda-feira, tento organizar um cronograma mental para a semana inteira. Dependendo do dia ou de como ele se inicia, as músicas também variam e consequentemente essas músicas da manhã acabam influenciando o resto do dia todo. Naturalmente essa tem sido a rotina matinal mesmo nos tempos de agora, talvez mais fortes até e demoradas na sua duração, não é algo que tem uma variação muito substancial.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De noite, com certeza. Quando ia para a faculdade, muitas vezes durante os trajetos longos já pensava em coisas para anotar, nem que fossem frases simples, rascunhos de verdade que ficaram muitas vezes por terminar e só depois de dias voltava para eles, vendo que precisariam de alguma resolução. Outras vezes ficavam, sem términos. Mas com uma rotina muito mais reclusa, essa rotina de escrita está muito variável e inconstante, tem semanas inteiras que não escrevo nada, outras semanas escrevo pelo menos alguns versos todos os dias mas isso tem sido muito raro, muito mesmo. Não costumo fazer nenhum “ritual” de preparação, escrevo no momento em que alguma ideia vem e, como disse anteriormente, às vezes somente frases soltas que podem ou não ter continuação. Isso também se deve ao momento em que fazia isso com frequência: em movimento, no metrô e muitas vezes no ônibus pois o exercício de observação é muito mais aguçado, se torna mais móvel e fácil de absorver muitas coisas, ruídos, paisagens, movimentos, simultaneamente. Às vezes, claro com algum tempo a mais sobrando (e o mínimo de planejamento), pegava qualquer ônibus na praça da República de propósito que vai direto para a USP só para ficar observando os trajetos, muito diferentes do trajeto de metrô, por exemplo, que é tudo no subterrâneo. Claro, um trajeto mais rápido e utilitário, mas um pouco sem graça no quesito da observação. Já escrevi textos inteiros nessa espécie de “ritual”, por força maior da rotina, algo que na verdade acabava sempre sendo um estímulo pois o mesmo trajeto não era nunca o mesmo em nenhum dia. Sem isso, agora, acho que é necessário treinar muito mais o olhar para coisas pequenas do dia a dia, um tipo de olhar interior, exercícios de observações muito menores, talvez treinar aquilo que o Leonard Cohen fala no seu texto (uma âncora) “Como dizer poesia”, “O poema é senão informação. É a Constituição do país interior”. Sem ser uma espécie de slogan, sem ser uma autopropaganda muito inapropriada dentro desse mote, desse leitmotiv.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho que, atualmente, isso tem sido uma média, talvez seja em períodos mais concentrados, na rotina de antes era um pouco a cada dia, nem que fossem coisas pequenas. De vez em quando, quando surge ideia para um texto, este acaba enganchando outro então são dois ou três escritos de uma vez, mas na maioria das ocasiões, acaba sendo um por vez com intervalos um pouco mais espaçados, até grandes para o que eu gostaria de fazer nesse momento. Mas claro que para mim, não existe qualquer tipo de obrigação quanto a isso então essa meta diária é inexistente. Não é uma obrigação, mas precisa ser um exercício, sim, todas às vezes, se não acaba não saindo o que queria que saísse, então às vezes é bom ficar muito tempo em um texto até achar as palavras que cabem nos seus espaços devidos. Se isso não acontece também deixo o texto pela metade até encontrar algo que se encaixe nele. Talvez essa meta (ou a obrigação de uma) exista quando tenho algum trabalho para redigir e por isso a necessidade de cumprir prazos, então o que faço é escrever um pouco todos os dias até a finalizá-lo, essa parte é algo com que eu tenho bastante facilidade em resolver por ser um tanto pragmática.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca tive o costume de compilar muitas notas para precisar escrever, quase sempre poucos versos são o suficiente para alavancar alguma ideia futura, então, às vezes, vai ficando pequenos versos/frases anotadas que podem servir para um texto inteiro ou podem ser aproveitadas em outros textos. Acho que deixar muitas notas nos caderninhos ou nos rascunhos poderiam atrapalhar ou me deixar confusa, prefiro deixar bem organizado, por isso se você pegar os meus cadernos (que nem são muitos), você pode ver que a quantidade de rascunhos, anotações, é bem diminuta. O que fica mais são os textos já inteiros, prontos, no máximo ficam versões diferentes de um mesmo texto, já que do ano passado para cá, eu e meu companheiro estamos fazendo alguns textos juntos, tentando compor criações em que os dois possam mexer e acrescentar coisas no meio delas, uma coisa bem mista mesmo, que eu, particularmente, acho muito interessante de fazer. Toda vez acaba sendo uma surpresa diferente e curiosa. A minha pesquisa para escrever é sempre uma: ler, ler muito e sempre. Se fico sem ler por algum tempo, as ideias demoram muito para aparecer, ou são quase nulas. Por isso sempre tenho alguns livros de poesia para os quais posso me dirigir quando estou um pouco sem ideias ou desmotivada para escrever. Quando faço as leituras, tudo vai se organizando novamente e as ideias aparecem devagar. Para os últimos textos, sempre tenho pego um “livrinho” muito interessante do Julio Cortázar, que é o “Último round – tomo II”, cheio de colagens poéticas e dissertativas, com fotografias, registros, crônicas interessantíssimas e muito inspiradoras para criar algo que possa conversar – ou estar junto do processo de leitura e consequentemente da escrita. A pesquisa é sempre consequência da leitura, mas um sempre move o outro, intrinsecamente. A questão da escrita e feitura de trabalhos acadêmicos também sempre ajuda muito pois você é induzido às análises, sempre, e quase sempre precisam ser análises próprias, particulares, contudo com um mínimo de embasamento bibliográfico para não ficar algo muito distante e inapropriado com o que você está aprendendo e absorvendo no processo de aprendizagem. Então esse processo da escrita não se esgota, porque ele é permanente, o que eu acho ótimo e estimulante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso ainda não ocorreu de forma muito significante na escrita “sem obrigação” pois é assim que costumo lidar com a minha escrita fora da academia, direcionada para o curso, não tenho obrigação com ela pois acho que com obrigação isso não fluiria de uma forma muito boa e saudável. Escrevo quando as ideias vêm e se não há alguma muito prontamente, não existe nenhum tipo de desespero e ansiedade. Para mim, precisa ser um processo natural, como uma espécie de diário da linguagem própria e interna (muitas vezes muito intuitiva), algo com o que você precisa lidar de forma razoável para não ter que ser um problema a mais em meio ao que você faz. Claro que quando existe um intervalo muito espaçado da escrita é um pouco difícil retornar depois, mas, ainda assim acredito que é normal que esse tipo de coisa aconteça, já que não estamos lidando com algo técnico e massivo, a escrita não pode ser isso se não vira simplesmente um produto e não algo que pode ser minimamente transformador e singular. Lidar com a escrita e criação como uma obrigação é algo bem estranho, claro, a não ser que prazos, metas concretas, estejam envolvidas nisso. Se é algo independente, não existe real necessidade desse processo ansioso. Mas o assunto da criação independente também é outra história, bem mais complexo do que o senso comum julgar ser, embora eu não seja a melhor pessoa para dissertar sobre. Acredito que ele ainda seja o caminho para criações e ideias verdadeiramente originais e sem assuntos mercadológicos envolvidos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo revisar, no mínimo, umas duas ou três vezes, e se for um texto acadêmico costumo revisar um pouco mais do que isso. O processo de ler/reler também me auxilia muito na questão prática: é algo até simples, muitas coisas podem ser acrescentadas e também retiradas. Mas não é algo que faço com extrema frequência, ele ocorre de forma natural e também um tanto intuitiva. Vou tirando o que soa um pouco estranho na segunda ou terceira leitura e também acrescentando o que parece pertinente. Apesar disso sempre tento manter o máximo que posso da ideia original/natural como ele veio através do primeiro processo de registro, acho que fica bem mais interessante. Algum tipo de força estranha fica conservada ali e talvez com algumas mudanças o sentido original acaba se perdendo. Se é algo um pouco mais difícil e menos intuitivo para resolver, deixo por tempo parado e faço um certo distanciamento para depois retornar. Sempre funciona. Quanto a mostrar os trabalhos para outras pessoas, sim, é o que mais faço – muito mais do que publicá-los em algum lugar pois ainda existe um receio da minha parte por isso. Nesse processo de algumas divisões de escritas com meu companheiro é para ele que vou mostrando os textos, um pouco de cada vez, à medida em que eles são escritos. É interessante compartilhar os registros e dividir esses processos de escrita, mas nem sempre ocorre. O fato é que já existem alguns textos compilados decorrente desse processo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acredito que seja uma relação saudável e não tanto específica pois não costumo publicar nada em redes sociais – em relação ao que escrevo. Se existe alguma publicação é algo mais direto e simples, sem muitos floreios ou coisas assim, a escrita não pode ser uma autopropaganda ou autopromoção para se sobressair em jogos de ego, principalmente em redes sociais. A minha relação da escrita diretamente nos meios digitais, eletrônicos, simplesmente acaba sendo a de conveniências, servindo como apoio para aquele momento em que não tenho papel e lápis de fácil acesso. Então é bem simplória, envolvendo o bloco de notas do celular e muito raramente o computador. Serve como apoio pois depois esses textos ou pequenos registros são transferidos para o caderno que uso (atualmente cadernos muito menores e sem pautas). Nem sempre também esses registros surgem primeiro no celular, é algo variável, atualmente. Quando estava mais na rua e na rotina normal, o processo era mais intensamente feito nesse bloquinho de notas que tenho no celular pois na locomoção achava um pouco difícil registrar sempre com papel e lápis. Porém, depois de ter sido assaltada no ano retrasado e (quase) perdido muitos registros do bloco de notas – graças ao backup do celular, esses registros foram recuperados – fiquei muito desconfiada de manter tudo de forma temporária no celular então o registro para o papel ocorre logo depois dos textos prontos, como uma forma também de usar mais papel e caneta na hora que as ideias vêm e não o celular, já que comumente é o meio de mais fácil disposição.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm sempre de muita observação, das andanças na cidade (através de qualquer meio), das muitas músicas e por onde elas vêm, de todos os jeitos, e o lugar mais essencial de onde elas surgem é do lugar da leitura constante, da busca incessante por autores que não conheço. Particularmente, meu gosto é muito mais por autores que escrevem poesia então o cultivo desses conhecimentos sempre é muito variado e parece que nunca cessa e acho muito difícil isso acontecer algum dia futuramente e é por isso que sou movida, sem soar algo clichê demais. Esses hábitos estão ligados intimamente à manutenção constante de todos esses afazeres que citei acima. Se param repentinamente e ficam um tempo dormentes, não tem problema, alguma hora voltam e então é um pouco mais fácil me manter ativa e cultivando coisas pelas quais tenho apreço e muito interesse.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou é o foco nesses afazeres, a tentativa de manter isso constante sem que seja em um nível de obrigação, mas de realizar isso por prazer, escrever pelo prazer da observação e da vivência na metrópole e toda e qualquer tipo de experiência que ocorra em consequência disso. Um fator que foi significativo nesse processo, sem dúvida alguma, foi a mudança para a capital de São Paulo. Sem isso, muito provavelmente minha escrita estaria estagnada e não teria conseguido resolver os projetos e as ambições acadêmicas que até agora acumulei e a vivência na cidade é outra coisa, não se compara com uma cidade de trinta mil habitantes quase na fronteira do estado. Aqui você vive a cidade em tudo que faz e escreve, é inevitável. E o que eu diria a mim mesma alguns anos atrás seria: continue fazendo o que você está fazendo, pode estar complicado agora, mas vai dar tudo certo no final, você vai ver e não se arrependerá de nada. Tudo o mais e o resto foi uma (feliz) consequência feita de acasos, encontros e desencontros na cidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos planos, mas não penso com exatidão ou tanto afinco nisso, tento fazer o que é possível de ser feito no aqui e agora, sem desesperos pois sei que tudo está ocorrendo na maneira do possível ocorrer. Um projeto que definitivamente sempre quis fazer foi o de ter algo de poesia autoral lançado, de forma independente e realizei ano passado, com meu companheiro. Lançamos o projeto com poesias escritas por nós dois, eu e Sandro Garcia, e o fizemos pelo seu selo de publicações gráficas (e agora literárias) que se chama Vítimas da Op. Art Edições. A publicação se chama “CIDADE SILÊNCIO” e foi produzida durante a quarentena, primeiro, lançada de forma digital e depois Sandro idealizou e montou o projeto gráfico para podermos lançar em formato físico. Ficou bastante admirável e delicado, eu gostei muito, pois não é no formato usual de livreto ou plaquete e sim no formato zine, por meio do feito manual com costura e datilografia em superfícies diversas, catálogos de mostras de cinema, envelope de carta, ilustrações. A datilografia também fica um processo bem interessante e delicado, um charme. O nosso próximo projeto será um livreto na sua forma usual (e também datilografado e artesanal) de poesias de nós dois, nesse não feitas em conjunto, mas de poesias individuais. Ele se chamará “Ondas Lunares” e o projeto já está pronto, praticamente. Então tudo isso vai ligando uma coisa na outra, o que eu acho fantástico, pois Sandro também é músico e já usou um texto meu para uma música da sua banda, Continental Combo, e música e poesia sempre tem um ótimo diálogo. Também existe uma publicação que ainda vai ser lançada pela Editora Primata, uma plaquete chamada o amor é o fim do cerco, um tanto inspirada pelo romance “A História do Cerco de Lisboa”, do Saramago. O livro que gostaria de ler e não existe, reside aí a questão principal: ele pode existir um dia e eu ainda não sei. E pode ser que não também, que ele fique na imaginação eternamente. Acho que agora prefiro descobrir o que ainda não descobri e que ainda não me saltou os olhos, existe tanta coisa que eu ainda não sei, tantos textos, poemas e outras coisas mais…