Gabriela Neves Delgado é professora de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu preciso primeiro cuidar de mim para depois me entregar às outras atividades. A minha primeira atividade do dia é um exercício físico. Acordo, tomo café-da-manhã e faço ginástica. Procuro lecionar ou marcar reuniões de trabalho depois do primeiro horário da manhã, para que eu possa fazer algo por mim mesma. Considero isso importante, inclusive para a educação dos meus filhos, para que eles possam perceber que tenho necessidades pessoais, do meu universo particular, e que depois, então, posso me abrir para o mundo. E aí sigo para a dinâmica do dia a dia, em que mesclo atividades acadêmicas e profissionais com a rotina familiar.
Exerço a maternidade com vocação e muito gosto. Tento administrar com equilíbrio as demandas profissionais e pessoais. Por exemplo, depois das atividades de trabalho da manhã, sempre retorno para casa. O almoço é o momento coletivo da nossa família. Nós almoçamos todos os dias juntos. Depois, levo as crianças para a escola e de lá retorno para as atividades profissionais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou uma pessoa do dia. Por isso, prefiro trabalhar, pesquisar e estudar ao longo do dia, tanto pela manhã como à tarde, quando estou mais concentrada. À noite é o momento em que tenho menos capacidade de concentração, tendo a ficar mais cansada e dispersa. A aula não é um problema se for à noite, porque ela me exige um dinamismo com as pessoas, mas as atividades que exigem concentração, como escrita e leitura, têm que ser feitas preferencialmente ao longo do dia.
Quando você tem um projeto de pesquisa, um tema a ser descortinado, você precisa de rotina. Aprendi isso com a minha mãe, que foi professora universitária durante muitos anos, tendo concluído sua trajetória acadêmica como Professora Titular de História. Ela me ensinou sobre a rotina acadêmica, durante o período em que eu cursava o mestrado em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Essa é uma orientação que eu passo para todos os meus alunos e alunas, e que incorporei na minha dinâmica como pesquisadora e autora do Direito do Trabalho. Por isso, eu escrevo todos os dias, mesmo que num curto espaço de tempo. Sempre digo para os meus pesquisadores: “se você tem uma vida atribulada, que seja uma hora por dia”. Quando eu tenho um projeto a ser concluído – um livro, por exemplo -, escrevo todos os dias. E de preferência no horário em que o silêncio é maior. Nos últimos anos, em razão da minha dinâmica familiar, venho escrevendo à tarde ou no amanhecer do dia, porque esses são momentos em que a minha casa está silenciosa.
Sempre tenho um projeto de pesquisa em andamento, porque, como professora universitária, considero que a maior contribuição que eu posso oferecer é divulgar o resultado das pesquisas que faço. Como meu pai ensinou, “os livros alcançam as pessoas em espaços que nós fisicamente não podemos alcançar”.
Elejo temas que considero importantes e crio projetos de pesquisa em torno deles. Foi assim, por exemplo, quando foi promulgada a Lei Complementar n. 150/2015, referente ao contrato de trabalho doméstico, e a Lei n. 13.467/2017, a da denominada “reforma trabalhista”.
Tenho uma parceria intelectual e de vida com Mauricio Godinho Delgado, um dos juristas mais consagrados do Direito do Trabalho brasileiro, um grande e respeitado profissional. Nós conseguimos firmar uma estratégia de trabalho que funciona muito bem. Elegemos um tema de pesquisa prioritário e o incorporamos na rotina de trabalho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas também em períodos concentrados. Uma coisa não impede a outra. O que importa mesmo é que a construção seja diária.
Eu não me exijo cumprir uma meta de produção diária. O que importa é você, consciente e/ou inconscientemente, estar refletindo sobre o tema objeto de pesquisa. Pode acontecer de em um dia você não ter a concentração ou a habilidade de transformar as ideias e a compreensão da leitura em texto escrito. O que importa, em realidade, é que você esteja ali pensando, refletindo. É impressionante como o inconsciente trabalha a seu favor, porque no dia seguinte o texto deslancha. Pode ser que num dia você só consiga mexer na formatação do texto, não fique ansioso, porque seu inconsciente está trabalhando para que isso se transforme, se materialize em texto escrito nos dias seguintes.
Muitas vezes você tem um prazo para entregar um livro ou um artigo científico em função de determinado contexto. Por exemplo, em relação à reforma trabalhista. O Professor Mauricio Delgado e eu elaboramos um livro dual sobre a reforma trabalhista. Era importante que o livro fosse apresentado à comunidade acadêmica e jurídica antes da entrada em vigor da Lei 13.467/2017. Estabelecemos, então, um prazo fatal para a conclusão do livro, afinal, os leitores tinham o direito de saber nosso posicionamento sobre a nova legislação antes de sua entrada em vigor. Foi o que fizemos.
Durante a minha graduação em Direito, um professor de Direito do Trabalho me ensinou a “deixar o texto decantar, depurar”. Eu nunca entrego um texto ou concluo um processo de escrita de supetão. Se o texto ficou pronto, eu deixo o tempo agir, as ideias fluírem. Eu volto para a leitura no dia seguinte, porque o tempo passou, você se concentrou novamente e pode ser que tenha, ao longo do processo, alguns insights, algumas ideias, por isso o texto precisa decantar. Ele me deu essa orientação em relação à redação de peças trabalhistas. Na condição de advogado militante, me orientou: “Gabriela, quando você for advogar, nunca ajuíze a ação no mesmo dia em que você concluir a peça”. Eu transformei aquilo para a minha realidade de pesquisadora. Não é só a peça trabalhista, qualquer texto de natureza científica precisa decantar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É um dinamismo permanente. Quando tenho um projeto a ser concluído com tema específico, as leituras são todas direcionadas para aquele projeto. Elaboro um sumário, prioritariamente. Esse esqueleto da pesquisa, por mais que possa ser alterado ao longo do processo, é muito importante, porque ele nos dá uma direção, um caminho a ser percorrido. Mesmo que o caminho mude, isso te assegura uma margem de segurança de onde você deve partir e para onde pretende chegar. À medida em que vou lendo, vou transformando isso em texto, vou vendo as demandas, os limites da pesquisa, as possibilidades de expansão.
Eu me nutro com textos e livros que não são do Direito. Em casa, a minha mesa de cabeceira é recheada de biografias, poesias, literatura (inclusive infantil, que eu leio com frequência para acompanhar o desenvolvimento das minhas crianças), livros de psicologia e sociologia. Os livros ficam ali, amontoados. À noite vou lendo, um e outro… Considero que esse processo de escuta e de leitura tem que ser amplo, sobretudo para melhor compreender os fundamentos da Ciência do Direito. É a hora que eu acredito que é possível fazer essa abertura.
Atualmente não faço fichamentos. Eu fazia fichamentos rigorosos quando era mais jovem e tinha menos carga de leitura. O fichamento era essencial, porque eu estava começando. Hoje, faço anotações, mas sem uma metodologia rigorosa. Como eu já conheço os autores e dialogo com eles, é mais fácil resgatar as leituras feitas, interpretar e memorizar.
Sempre faço registro nos meus livros, grifo, anoto nas margens.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu lido com a procrastinação e com o olhar do outro com naturalidade. Esses dois elementos não me geram ansiedade, porque eu acho que como autora, que já tem um perfil, uma identidade reconhecida, algumas pessoas vão se identificar com a minha maneira de escrever e interpretar o Direito e outras não. Tenho tranquilidade em relação a isso. Em relação às travas também, porque elas fazem parte do processo, são inerentes a ele. Não existe pesquisador que não tenha travas de pesquisa, todos têm, cada um à sua maneira. Agora, a ansiedade com projetos longos é terrível mesmo, porque a pesquisa se torna exauriente. Por isso é que acho que projetos de escrita têm que ter início, meio e fim. Porque um pesquisador que é de fato sério e dedicado, que se envolve e, como no meu caso, trabalha rotineiramente com a pesquisa, em algum momento terá exaustão física. É preciso concluir. Eu sinto, em processos longos de escrita, ou em processos muito intensos, como nesse último, em que nós queríamos entregar o resultado da pesquisa para as pessoas, porque a lei da reforma trabalhista entraria em vigor. Foi um trabalho intenso e eu terminei exausta, sob o ponto de vista físico. O corpo sinaliza. É natural que nós tenhamos ansiedade, mas é salutar que nós tenhamos prazo para concluir. E isso significa ter humildade para entregar a pesquisa em algum momento, submetendo-se à análise crítica da comunidade acadêmica e profissional. Repito: os resultados das pesquisas devem ser compartilhados democraticamente. As pessoas têm direito de acesso à leitura, à informação qualificada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os textos sempre. E quando livros são reeditados, ou reformulados para uma nova edição, eles são sempre revistos, porque ficamos melhores com o tempo, a carga de leitura é maior, amadurecemos, por isso a revisão é necessária.
Compartilho com colegas alguns textos antes de publicar, outros não. Como eu trabalho em parceria com o professor Mauricio Godinho Delgado, nós compartilhamos muito o texto de um e do outro. Essa revisão acaba sendo parte do processo. É um processo naturalmente compartilhado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu tenho um caderno onde anoto minhas vivências, observações, ideias, emoções, como um diário de bordo que me acompanha por onde vou. Mas, em relação aos projetos acadêmicos, escrevo diretamente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Existem alguns critérios de interpretação que são ligados à perspectiva dogmática da Ciência do Direito e não tem como fugir disso. É o caso, por exemplo, da lei da reforma trabalhista, em que foi preciso analisar, pormenorizadamente, os dispositivos da Lei n. 13.467/2017. Esse é um estudo dogmático, puro e simples, que não pode deixar de ser reconhecido. Mas existe uma outra perspectiva.
O que eu acho que é mais importante no Direito, e que permite que o Direito seja um instrumento civilizatório, de engrandecimento da humanidade, são os fundamentos principiológicos e axiológicos que lhes dão substrato. O que me mobiliza no Direito é a abertura que traz para o mundo. O estudo dos fundamentos é o que mais me interessa. Por isso considero imprescindíveis as pontes com a interdisciplinaridade para me manter criativa, para enxergar o Direito de uma maneira mais larga.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu não voltaria ao passado. Compreendo que durante a escrita da tese, há mais de dez anos atrás, eu tinha uma carga teórica e de amadurecimento que foi possível viver naquela época. Compreendo que o processo de escrita e de interpretação se torna melhor com o tempo, porque agregamos valor à nossa carga de leitura, nossa vivência supostamente é mais amadurecida. Eu vejo com naturalidade os textos de uma pesquisadora jovem, que estava em processo de formação. Não vejo com crítica, acho que isso faz parte do processo.
Hoje posso me considerar uma pesquisadora amadurecida. Essa maturação, que vem com o tempo, se reflete num processo de escrita mais sofisticado e numa compreensão de mundo mais larga.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minha formação acadêmica é toda vinculada à área de humanidades. Fiz mestrado em Direito do Trabalho, doutorado em Filosofia do Direito e pós-doutorado em Sociologia do Trabalho, mas ainda quero fazer uma formação em Psicanálise. É um desejo que tenho há muitos anos e que ainda não pude realizar em função da minha rotina de vida. Espero um dia poder fazê-lo. Vibro com a possibilidade de enxergar o outro para além de sua presença física.
Também tenho vontade de fazer um curso de fotografia. Não por conta das redes sociais. É que a fotografia faz parte da minha história de vida, das minhas memórias. Meu bisavô materno era um fotógrafo profissional reconhecido. Viveu da sua arte. A fotografia é um recurso poderoso de visualização da beleza do mundo e de registro na memória. Não só pessoas, mas lugares, espaços, cantos, esquinas, emoções. Isso eu ainda quero fazer.
De projetos, seriam esses dois, que de alguma forma dizem respeito à possibilidade de vivência de uma intelectualidade mais larga, de uma vivência cultural mais aberta e dialógica.