Gabriel Philipson é doutorando em teoria literária na Unicamp e na Universidade Livre de Berlim.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A pergunta é boa, pois coloca desde já o pressuposto de uma relação entre rotina e escrita. Escrever – e ler –, para mim, é uma atividade ética, o que significa dizer que é um fazer que envolve o corpo, os fluídos, um modo de estar e de viver. A escrita, pois, é uma atividade no limite física, para a qual é preciso a constância, a repetição, a demora ou morada, o alongar das horas, o descanso. Estou pensando a escrita a partir de um estranho materialismo, no qual a atividade teórica é assumida literalmente como uma atividade, em nada oposta à praxis, na medida em que a teoria se mostra não apenas em potencial, mas atualmente uma atividade que faz mundo e algo no mundo e, não preciso dizer, constantemente o modifica. Estar parado como um tipo de movimento, em suma. Contudo, pensar a escrita como uma atividade em seu sentido mais literal implica entender a escrita também paradoxalmente como ativa, quer dizer, como agindo e, com isso, determinando, não só o modo e o que se escreve, ou seja, o objeto, mas também o sujeito que escreve. A escrita seria, assim, uma atividade ética, mas também técnica, uma mídia. Assim como o ruído branco dos meios de comunicação em massa, o rabiscar do lápis no papel, o ra-ta-ta-tá do teclado ou os sons digitais da escrita por celular constituem também a escrita em sua materialidade tácita, como aquilo que inscreve o sujeito que escreve e aquilo que se escreve, que dá seus limites e suas possibilidades. No âmbito do tratamento subjetivo e individual de cada uma e cada um com a escrita em torno do qual gira essa entrevista, isso significa que a rotina de quem escreve pode ser entendida, portanto, tanto como ética, quanto como condicionamento, tanto como um modo de viver, ligado ao corpo e à mente saudável ou doente, atlética ou tecnocrata, podendo em alguns casos ser até tomada (in)voluntariamente por uma ritualização, quanto como um modo de viver ritualizado já em outro sentido, uma série de atos repetitivos, maquinais, nos quais é a escrita que se inscreve e se escreve.
Daí que a rotina matinal, para mim, é tão indispensável, quanto aterrorizante. Quero máxima distância da rotina matinal tanto quanto a necessito. A manhã pode simbolizar de certo modo sanidade, racionalidade, o que não necessariamente é desejável, mas também evidentemente é não menos submissão a um sistema que inscreve e determina. Para o ato de escrever, significa que a manhã e os hábitos pelos quais a tornamos manhã são acoplamentos do maquinário da escrita, daquilo que ela exige a cada um de quem quiser utilizá-la para pensar ou criar. Por mais que existam diversos modos de relacionar rotina, manhã e escrita, esta exige o regramento, quer dizer ela dá regras, as mais diversas quanto há escritores no mundo, como um programa – e não à toa, me parece, existem tantos aplicativos ou mesmo métodos do tomate que prometem o acesso à produtividade do estudo, cuja finalidade é, também, a escrita. Pois essa ideia da escrita como atividade acaba apontando para como, no limite, a sociedade está organizada pela, mais do que para, a escrita. Nesse sentido, é possível pensar o Estado, os regimes de trabalho, as possibilidades de ascensão, de formação, não menos todo o sistema da justiça e de justiça e até mesmo a atividade crítica como estando dados pela forma como a escrita vem forjando as relações sociais, as relações entre os corpos e dos corpos, organizando e regrando até mesmo os espaços públicos e privados – a escrivaninha, a estante, a lousa, a carteira, a biblioteca, os arquivos, mas também as placas, os avisos, os correios, a imprensa, o digital, o cartório, o nascimento, o casamento e a prova de vida, o óbito e a lápide, e a lista poderia continuar. A escrita também molda os sonhos, a constituição, os levantes, as possibilidades de mudança política, tudo o que entendemos por política e por pensamento, no sentido de que a escritura na condição de um sistema histórico de formação, de produção e distribuição de textos – que são a base, vale lembrar da poesia, da literatura, da ciência e não menos da filosofia de matiz ocidental –, organiza e instaura os seus próprios territórios de validade, suas próprias noções do que seja verdadeiro, real, verossímil, válido, justo, ético. Trata-se, não menos, de um sistema ligado intimamente com a produção das raças e do racismo, com o colonialismo e as divisões de trabalho entre os sexos e os gêneros, e com tudo isso, com os fluxos de desejo, as relações de consumo e de produção, dando com isso os contornos limítrofes do que pode ser pensado – até mesmo da própria questão pelos limites do pensamento. Os sistemas de inscrição da escritura forjam, além disso, toda uma concepção de bem viver e uma promessa de boa morte, estando no centro das políticas da memória, e das noções de historicidade (mais do que a história seria seu produto, um bom exemplo de um pressuposto gerado pela atividade da escritura) e de tempo, em geral linear como ela mesma convencionou-se ser. Um sistema de poder positivo, em suma, ao qual a gente se submete ativamente e de bom gosto, dada a promessa de emancipação e salvação que histórica e ideologicamente ele promete. Apesar dessa promessa, há uma escrita técnica, que leva à tecnocracia e ao burocratismo, passando pelos mais bizarros arroubos latinescos de juizecos patrimonialistas, mas não menos por um elogio da rotina ou do ritual do ato de escrever que só pode ser tosco não dissesse tanto pelo que, afinal, pressupõe: o domínio da escrita como um domínio em sentido territorial, como aquilo mesmo que determina o que é e o que pode ser a escrita, um senhor de terras que territorializa a escritura, que a torna um território a ser conquistado e dominado segundo a lógica personalista dos cartórios ou exclusivista das provas, vestibulares, bancas ou até mesmo taxas para o estudo universitário, dos próprios cidadãos de um país aos estrangeiros. Não há crítica, não há pensamento crítico, que não passe pela profunda suspeição do sistema de inscrição pelo qual ele pode se dar, que não passe pela questão pelo direito à escrita e à crítica e por sua constante suspensão. Pensamento crítico, aliás, não nada mais do que um pleonasmo, já que é difícil conceber um pensamento que não se queira crítico – a crítica, talvez até mais do que o bom senso, em tempos de sensacionalismo e fake news, parece ser um comum que, basta ver qualquer comentário na internet, se aspira compartilhar.
Para voltar ao ponto e responder, então, à questão pessoal, diria que tendo a começar meu dia pela alteração. Isso não quer dizer transformar a alteração em rotina, seja por uma estratégia de alteração de rotinas e hábitos ou anti-hábitos, seja por uma obrigação menos sistemática de mudança e alternação de modos de levantar. De fato, a pergunta não pode, ao meu ver, jamais ser propriamente respondida, porque, tanto a resposta afirmativa, quanto a negativa, afirmam a repetição de um dia como todos os dias. A alteração de que estou falando está mais ligada à ideia de que os hábitos matinais dependemdo dia, o que quer dizer que eles são sempre relativos a um processo mais do que a um procedimento. Ou seja, a alteração pela qual começo um dia consiste na recusa da repetição que igualmente recusa a recusa da repetição naquilo que tal recusa tem de repetitivo, ao mesmo tempo em que consiste também no dizer sim a uma rotina, graças àquilo que a cada vez ela, como o fluxo do rio heraclitiano, jamais foi e será igual a si mesma. Nesse sentido, minha rotina matinal tenderia mais, diria, a um interminável e constante arranjo de forças, entre desejos e obrigações, por vezes conciliatório, por vezes conflitante, a um arranjo instável no fluxo de agenciamentos – do corpo, pelo café, desjejum, o banho; do próprio trabalho, que passa pelos emails, pelas questões burocráticas, e também pelas notícias, conversas; da agenda e seus compromissos e prazos, mas também do cuidado com a casa e com as refeições, da gata e da companheira, do calor ou do frio, da chuva, dos feriados, dos horários de funcionamento dos estabelecimentos e dos sons da vizinhança, como as obras públicas na rua e nos apartamentos e terrenos aos lados, os caminhões, carros e motocicletas, as sirenes e os amplificadores (dos carros dos ovos, das pizzas de dez reais, das comemorações alheias).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na medida em que entendo a escrita em parte também como uma atividade física, há, sim, um momento ótimo do dia em que sinto que trabalho melhor, assim como prefiro me exercitar em determinado momento do dia. Sinto – já que se trata de sensação – que na verdade a pergunta deve ser a cada vez ao corpo, enquanto acoplamento técnico-material do trabalho ligado à escrita e à leitura. O melhor momento é aquele que sinto o corpo bem, para usar uma expressão imprecisa, a mente ligada e atenta, ainda não cansada com todos os agenciamentos pelos quais passa ao longo do dia, bem como pelo processamento dos dados dos sentidos – a escuta, que nunca pode ser desligada, a visão, que tanto esforço faz para que se veja sempre em máxima resolução o mundo. A manhã, portanto, é quando me sinto melhor para o trabalho, ou sobretudo para a atividade crítico-criativa, por vezes antes mesmo do desjejum e do banho.
O banho, aliás, talvez seja o que mais próximo teria de um ritual preparatório da escrita, já que ele costuma marcar o início do trabalho no sentido mais pragmático do termo –, o que não significa que não é possível trabalhar em qualquer outro horário ao longo do dia até, talvez, parte da noite, ou que o trabalho, inclusive e sobretudo propriamente com a escrita, como afirmei acima, por vezes não aconteça antes. Tudo é uma questão de conciliação das agências e contingências, até mesmo a variação da hora em que o banho é tomado, passando, por exemplo, por se tenho que sair ou se posso ficar em casa. Há dias e dias e o que se tem que fazer é se ouvir, escutar o corpo, a mente, ao mesmo tempo em que é preciso se dar tempo, ter paciência: a escrita, como qualquer atividade física, melhora com a repetição, com o regramento, enfim, com o tempo e o autoconhecimento, assim como pode se atrofiar, perder corpo, travar de vez em quando, dar branco. O ato da escrita como uma oportunidade para exercer o cuidado de si, para praticar o autoconhecimento, como uma ética, afinal.
Contudo, pela mesma razão de que para mim a escrita é em grande parte física, a ideia de um ritual de preparação para a escrita me é aterrorizante. Não porque não preciso de preparo para a escrita, mas porque a própria possibilidade de tornar isso um ritual me gela os ossos, como se estivesse me oferecendo em sacrifício a – ou assinando um contrato com (uma imagem muito melhor para isso) – uma super entidade que regeria todos os âmbitos da minha vida, até mesmo o modo como durmo e acordo, como se não houvesse um fora do ato de escrever – e em troca ofereceria os valiosos frutos da territorialização, o que significa, para os leigos, títulos acadêmicos e emprego. Há até quem sinta prazer em praticar um ritual do ato de escrever, em grande medida sacrificial, há também os que sofrem; alguns elogiam, outros, em grande parte cínicos, gozam com a repetição do sacrifício, com exigir o sacrifício que fez aos outros e com o sacrifício como repetição. Para mim, não se trata de recusar a escrita ou o que ela possa oferecer de crítico e de crítica – muito menos de não precisar de um emprego –, mas de não perder de vista seus limites, a violência que nela está engendrada, bem como o que dela escapa.
Enfim, diria que o ritual da escrita – e a preparação já faz parte do ato de escrever, assim como, como se diz, as preliminares já perfazem o ato sexual – consistiria, assim, em uma espécie de condicionamento a um modo técnico-físico de expressão, uma mídia, que tem muito de predatório (em relação a outros modos possíveis de expressão) e de parasitário. O TOC ou ritual do ato de escrever, sobretudo quando criado pelo próprio sujeito, seria, nesse sentido, como o sintoma de um organismo que está sendo consumido pela escrita, um consumo oxímoro, já que faz com que o organismo se sinta dono de si, talvez até demais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Varia. Meta não tenho, que não sou empresário de si. Só quando traduzo – para mim, uma atividade semelhante à maratona, longa, exigente, de fôlego – gosto de, como um treinador de mim mesmo (o treinador de uma equipe de um jogador só), me sugerir metas sempre factíveis, como uma forma de equacionar o trabalho e de continuar. A tradução é, em geral, para mim, emprego, tem contrato e prazo curto. E um emprego, vale dizer, extremamente extenuante e mal pago. Não que a pós-graduação não tenha também um caráter empregatício ao qual sempre de bom grado se faz vistas grossas para que não tenhamos direito à remuneração, décimo terceiro e férias, afinal, aqui também há sempre a cada vez prazos, contratos e até relatórios e exigência de exclusividade. De qualquer modo, o trabalho com tradução, por ser como uma maratona e extenuante, para mim funciona melhor quando suspendo tudo o mais e faço só isso por um período – um mês ou três meses, depende do tamanho, costuma funcionar bem. Aí trabalho como se batesse cartão, das 9h às 17h, com 1h30 de almoço (com variações, que não sou, afinal, de ferro), enfim, me torno até pavloviano. Viro um funcionário no sentido literal, funciono. Às vezes pode até dar uma sensação boa, sobretudo quando dá jogo no interior do próprio processo de variação, mas não me orgulho, longe disso. É aí que sinto de maneira mais premente um dos lados mais doentios no âmbito corporal e pessoal do sistema de escritura: falo da extenuação física e a sensação de que “está tudo dominado”, semelhante à que tinha quando percebia que o esporte competitivo, dito de alto nível, o trabalho com esporte, não tem nada de saudável em sua versão do alto rendimento do produtivismo do capitalismo pós-industrial que tem uma de suas variantes na competitividade existente no interior das universidades. É duro, cruel mesmo: a realidade do dia a dia do esporte e do sistema de escritura não tem nada de transcendente – para o bem e para o mal. Aí a meta acaba servindo paradoxalmente ao pensamento, faz ver com outros olhos e pôr em questão o próprio meio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo da escrita não é procedimento, depende. Há regramentos, mais do que regras. Minha fidelidade aqui é com o pensamento, os argumentos, e também com as destinações. Para começar, às vezes basta um artifício, uma frase pronta, uma citação, ou lembrar de uma conversa e imaginar uma resposta, às vezes uma epígrafe, o começo sempre está em outro lugar, sempre já se começou antes ou vai se recomeçar depois. Por isso a importância que atribuo aos grupos de estudo, às amizades, mas também às leituras da bibliografia dita secundária, ler e citar os colegas, gerar diálogo. Nesse sentido, não há movimento da pesquisa para a escrita, o ato de escrever é o processo como um todo – ele dita e impõe uma ética, um modo de viver, em relação ao qual sempre procuro estar aquém, e além. O movimento, portanto, é o próprio ato de escrever, a alteração e variação que ele exige, e ao mesmo tempo é para o que está fora do seu sistema, lembrando que não se deve confundir esse fora com o mundo ou a vida; o fora dos sistemas da escritura é outra coisa e o movimento em direção a ele eu entendo como uma espécie de movimento em escape e de espera.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Gosto da pergunta, porque dá a ver que o problema do entrave e da procrastinação não está na escrita, mas no sistema de poder que a envolve, a engendra, e que ela, afinal, agencia: as expectativas e os desejos, os narcisismos e as vontades de poder. Ou seja, não se trata de encontrar métodos para se pôr a escrever, como se o problema fosse da natureza da escrita, da sua técnica, um problema do momento mesmo que se senta na frente do computador ou com um lápis na mão. Não, o problema começa antes e termina depois. Por isso que para lidar com essas questões não faço outra coisa do que refletir sobre essas dominações, no sentido da desinflação – de egos, mas de tudo mais também, como o desejo de poder, e as próprias expectativas, me ponho a exercer um contra-narcisismo, mais do que um anti-narcisismo, na medida em que também não abdico do eu como uma instância que precisaria ser eliminada a todo custo, o que mal dissimula a obsessão que se mantém em território narcísico. Não uma falsa modéstia, uma abdicação do eu, portanto, mas a percepção de que tudo passa, ou melhor, de que tudo não passa, afinal, de agenciamentos outros, de que o jogo do poder está sendo jogado no interior e pelo próprio sistema da escritura. Nesse sentido, escrever contra a escrita se torna uma motivação. É importante para mim, ao mesmo tempo, pensar na destinação da escrita, o para quem e para quê escrevo, o sentido ético e político do ato de escrever, que, ao meu ver, diz respeito sobretudo à desarticulação das linhas de força e à contribuição ativa para uma mudança efetiva no estado das coisas. O que não é pouco, pelo contrário, ou melhor, é um pouco que não é pouco: um sentido, afinal de contas, mas um sentido, digamos assim, situado, contra-transcendente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No passado já revisei tanto os textos que eles viravam outros, ficavam ilegíveis, perdiam o fio da meada. Hoje faço o lacaniano, em determinado momento dou um corte; às vezes volto, depende. Não existe texto pronto, nesse sentido, cada texto é sempre o mesmo e outro texto a cada vez, assim como cada novo texto é sempre o mesmo ou a continuação ou revisão do mesmo e já um outro. Não uma cópia ou uma repetição maquinal do igual – uma espécie de Pierre Menard de si, para cuja figura tristemente o ofício pedagógico, por exemplo, ou algum evento traumático, como o exílio, pode acabar levando qualquer um –, mas um recolocar em ato a cada vez o mesmo. Gosto muito de trocar figurinhas e impressões com colegas, minha companheira, às vezes até meus pais. Para mim, só assim a escrita tem sentido, a troca e a conexão entre as pessoas, a produção de reflexão e de crítica. Visto desse modo, o ato de escrever, ao contrário do que muito se diz, e do que muitas vezes falo a mim mesmo, não tem nada de solitário, é quase um trabalho em equipe. Talvez por isso me atraia tanto pela escrita a mais de 2 mãos e suas inúmeras modalidades.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Parece mesmo que vou responder à maioria das questões com “depende”. Mas antes escrevia mais à mão do que hoje. Parece que temos cada vez menos tempo. De qualquer modo, vejo a passagem da escrita à mão para o computador como uma tradução intersemiótica, digamos assim, entre meios e estratégias de escrita, o que quer dizer, no limite, entre formas distintas do pensamento. O que significa que escrever à mão é já uma relação com a tecnologia. O papel, o lápis e a caneta não são o outro do computador. Na verdade, a escrita no computador apenas até hoje imitou a tecnologia anterior. Representando uma folha em branco – o formato impressão – e instaurando historicamente um teclado universal com suas variações regionais, a escrita do computador nunca de fato apontou para além da escrita à mão. Já a máquina de escrever colocava uma descontinuidade semelhante à da metralhadora ou da máquina de costura ao ato de escrever cursivo. É por isso que o pensamento pensa diferente segundo os meios pelos quais ele se põe a pensar, e fazê-lo transitar entre esses meios pode torná-lo mais potente, menos determinado por eles, sobretudo se se fizer com que um se disponha contra o outro, gerando rupturas e, com isso, aberturas e linhas de fuga, ou, o que seria melhor, fugas das linhas. Por isso, prefiro escrever em folhas sem linhas, pontilhadas ou quadriculadas, mas também é por isso que me interesso pelo experimento de escrita por hiperlinks – a Literary machine de Ted Nelson, mas também o experimento de Vilém Flusser que podemos encontrar no seu arquivo na Universidade das Artes de Berlim, em que, antes de a rede global existir em sua dimensão que conhecemos hoje, adapta ou traduz uma de suas palestras para um programa que escreve por hiperlinks. Flusser se interessou por isso por estar sempre muito atento às destinações de sua escrita. Se é verdade que a escrita é ativa, ela é ativa de formas diferentes a cada meio técnico que se utiliza. De todo modo, na passagem entre escrita à mão e escrita pelo computador, trata-se, então, para mim, de uma tradução criativa, talvez, mas sobretudo crítica, revisante. Ao refazer o caminho e passar o texto para o programa do computador, considero estar o reescrevendo em outra língua – uma tradução interna à própria língua e ao próprio ato de escrever. De certo modo, é essa, aliás, uma das ideias centrais do ensaio O gol da filosofia. Por isso, às vezes gosto de imprimir capítulos e textos que constituem a tese, até mesmo artigos, porque a leitura e a escrita à margem fazem o texto se tornar outro, dão a ver outras dimensões do texto que, ficando no mesmo meio tecnológico, por vezes passam batidos como pontos cegos da escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Já respondi de certo modo essas questões. O ato de escrever exige uma ética e produz uma religiosidade maquinal. É preciso a cada vez cultivar o modo de estar ético e desprogramar o maquinal. Ouvir ao corpo enquanto plataforma do pensamento e do ato de escrever e variar de acordo com suas exigências e necessidades e as vicissitudes do que nos circunda se torna, portanto, algo central. Comer porque se está com fome e não para seguir uma rotina; ao mesmo tempo, ouvir os ciclos do corpo e sua produção de rotina. Fazer algum esporte é primordial para que o corpo não fique sobrecarregado e para produzir o hormônio da felicidade, harmonizando a libido, assim como por vezes pensar em outra coisa. O tempo do ato de escrever geralmente não é o tempo do trabalho industrial e é preciso lidar com todos os mal entendidos que advém disso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo mudou, a cada texto que começo a escrever quero experimentar o processo. Ao mesmo tempo, a sensação é de que a cada vez se conhece mais as possibilidades e os limites da própria escrita; a cada vez os hábitos estão mais refinados, o que leva, paradoxalmente, a ainda mais variação. Nesse caso não diria muito, já que se trata sempre de um mesmo processo e mesmo texto, o que digo para mim hoje é o que disse ontem e será dito amanhã, no sentido de que não vejo uma interrupção ou diferença nesse processo de escrever. Ou seja, o que digo a cada vez no presente constitui o que disse antes e direi depois, eles integram e são o próprio processo na condição de sua reflexão internamente exterior, mais do que são sua exterioridade reflexiva. Não há nada que se possa dizer, nesse sentido, que sempre já não havia sido dito, ou não há nada que um eu futuro diria a meu eu de agora que já não esteja sendo dito agora. O que quer dizer, no limite, também o contrário, ou seja, que tudo que diria agora jamais teria e poderia ter sido dito, que nada posso dizer sobre o que de fato poderia falar a um eu do passado, já que só posso pensar no que poderia dizer dado o processo que torna um só|outro o eu do passado e o eu do presente – Parmênides tinha sua razão, afinal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há alguns projetos de tradução que estão bem encaminhados para que se iniciem, gostaria muito que vingassem. Além disso, vou cultivando algumas ideias para estudos posteriores, depois de concluído o doutorado, seja para um projeto de pós-doutorado, seja como material inicial de uma livre-docência. Esses marcos da vida universitária ajudam a organizar os projetos e suas dimensões. Gostaria de ler livros que experimentem com uma escrita para além das disponibilidades técnicas do papel. Talvez já não fossem mais livros. Gostaria de ler mais livros que pensem os antropocenos negros, mais livros que aproximem as perspectivas de gênero e feministas, o indígena, o negro e o decolonial de uma maneira não-essencialista e sobretudo que desafiem a racionalidade técnica e a técnica racional dominante, fazendo, assim, com que modifiquem o mundo e o próprio sistema da escrita nele compreendido. Mas isso é tão vago quanto pode ser facilmente transformado em produto, apropriado pela quase inexistente e decadente indústria dos sistemas de escritura, as editoras e suas feiras. Há tanto que ainda precisaria ler do que já foi escrito. Ao mesmo tempo, eu talvez gostaria de menos – menos livros, menos textos, menos produção e produtividade – e uma redistribuição das pessoas que produzem. Basta ler meia dúzia das entrevistas aqui para entender o que estou falando. Gostaria de menos escrita ególatra, de menos escrita territorializante, que vê a escrita como um território a ser conquistado e dominado e, com isso, um modo a se chegar a glória, que seria o mesmo que a vida eterna. Talvez seja possível revirar nesse sentido a famosa frase elitista de Nietzsche de que “o espírito fede”: o que fede é a promessa de poder, as verborragias do eu, as exclusividades, as barreiras e os trotes que constituem o sistema de escritura. Além disso, gostaria de menos, porque tem algo de horripilante o caráter automático da escrita porque se leu, da escrita que alimenta a máquina e faz girar os moinhos do sistema de escritura tem algo de horripilante – às vezes tenho o pesadelo de que as pessoas que escrevem são como os pulgões escravizados pelas formigas (que somos nós-mesmos, formigas-pulgões-humanos) para produzir açúcar, seguindo irrefletidamente a produzir os frutos dourados da cultura, reproduzindo o status quo e seus valores.