Gabriel Nascimento é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia sempre lendo de maneira bagunçada várias coisas. Mensagens de notícias no celular, mensagens de aplicativo, uma leitura teórica crítica que acompanho na minha área, hashtags da minha área no instagram, uma polêmica político-partidária num grupo de whatsapp. Uma compulsão perfeita pela desorganização na leitura. Depois de tudo isso, tomo café e começo a escrever. Sempre pelo que está mais atrasado até o que está mais recente. Quase nunca dá certo. Quase sempre surgem novas ideias. Um poema que surgiu na noite anterior, um argumento para um artigo cujo prazo é daqui a dois meses, o esboço de um novo texto, a revisão de uma página de um livro de contos que nem foi publicado, um projeto de livros com linguistas aplicados negros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu nunca consegui descobrir qual o melhor momento para escrever. Já escrevi de madrugada durante boa parte da minha vida. Cheguei mesmo a ter uma crise de convulsões (com 3 convulsões seguidas) em 2008 e quase morri na terceira. Depois disso passei a escrever de manhã. Antes de ir para a aula ou depois. Na faculdade voltei de novo a escrever de madrugada. Meu primeiro romance publicado (“O maníaco das onze e meia”/Editora Multifoco) surgiu dessa escrita na madrugada. Sempre me preparo lendo e relendo o que escrevi. Sempre fico mais cético da leitura, entro em crise, mas mesmo assim continuo escrevendo. Mas depende sempre do que estou escrevendo. Os poemas, e estou guardando uma parte deles pra um segundo livro de poesia (o primeiro foi “Este fingimento e outros poemas”/Editora García), quase sempre como um pacto ancestral que nunca vou saber explicar, vêm a qualquer hora e minuto. Posso estar no ônibus, no banheiro, no avião, até mesmo já acordei de madrugada, e o poema nasce, quase sempre por inteiro, ou às vezes em parte. Já perdi poemas inteiros até entender que eu não podia deixar passar esse momento. Tenho que, ao menos, escrever a primeira estrofe. Ela é o elo pro resto. Mas ela não quer dizer que o poema, que ia nascer inteiro, nascerá com aquele mesmo corpo. Os artigos científicos são um parto de meses. Olho, por exemplo, o que eu escrevi em 2010 e penso nas escolhas estilísticas péssimas, nos mesmos operadores argumentativos, nas mesmas tentativas de usar marcadores discursivos fajutos, da mania de grandeza através da escrita, da maldita hipercorreção. Sinto uma mistura de vergonha e compreensão de quem foi aquele Gabriel. Acho que meu maior ritual tem sido na prosa. Acabei agora um livro de contos, mas parece que ele nunca fica pronto. Nem no romance me cobrei tanto. Nesse eu me cobro até demais. Não submeti ele ainda porque sempre acho que as críticas serão tenebrosas. Mandei até mesmo para a irmã de uma das personagens e ela não me respondeu. O ritual da escrita, no caso do conto, exige uma uniformidade que minha escrita não tem. Parece sempre uma escrita-devir, que veio ao mundo só por curiosidade, e não se sente dele.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou absolutamente desorganizado escrevendo. Escrevo um pouco a cada minuto. Se eu publicasse tudo que eu escrevo, eu teria uns 30 livros. Mas eu desisto de muita coisa que escrevo. Então, um bom livro meu é aquele que vem de períodos concentrados. Mas os melhores representantes daquilo que sou de verdade vem da escrita de “pouquinho em pouquinho” de cada dia. O mundo editorial me decepciona profundamente. Tanto como jovem negro como quanto como intelectual negro. Então, há muito tempo parei de ter meta de escrita. Escrever para quê? E para quem? A meta da vida real acabou sucumbindo a meta do escritor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como pesquisador eu sou um pouco mais criterioso. Mas sempre escrevo textos de uma vez. Eu vou elaborando na minha mente, sento e escrevo tudo em uns 3 dias. Quase todos os meus textos não passaram de uma semana. Quando é em coautoria a coisa piora. Isso porque tenho vários coautores e estou escrevendo com eles. Alguns demoram 1 século para responder. Outros respondem rápido com outros indícios de autoria, que quase sempre não criam convergência de escrita (porque não parece que escrevemos juntos). Recentemente li um artigo interessantíssimo que foi posfácio de uma edição da Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Nele (o texto Still Critique) os pesquisadores, meu orientador e amigo Dr. Lynn Mário Trindade de Meneses e Souza e a professora Dra. Walkyria Monte-Mor, conversam. Eles demarcam no texto quando termina Walkyria e quando começa Lynn. Não assassinam os indícios de autoria de cada um. A pesquisa, para mim, é sempre relatada na escrita. Por isso, eu sempre vou trazendo os dados e já elaborando artigos com eles. Artigos muitas vezes sem nenhum embasamento. Aí vou fazendo tópicos e fazendo escolhas a todo o tempo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sei escrever sem procrastinar. Inclusive interpreto isso mais como ócio criativo. Escrevo assistindo “Chaves”, “Chapolim” ou “As três espiãs demais”. Ouço músicas de Gilberto Gil ao pagodão da Bahia. Os batuques me fazem ter uma concentração absurda. Ainda não tive o meu “coming to terms” no terreiro de candomblé em relação a isso, mas em algum momento a ancestralidade me explicará. Eu consigo, depois de pouco tempo de parada, e sendo disciplinado para voltar a ler e escrever tantas coisas, parar sempre, de maneira corriqueira durante uma escrita, e escrever o dobro quando recomeço. Para mim o pior são os projetos longos. Estou agora nos Estados Unidos e aqui os doutorados duram 6 anos. Fico pensando na minha ansiedade para finalizar o doutorado no Brasil, cujo prazo é de 4 anos. Já pensou se fosse igual aqui? Eu quase sempre não tenho medo de corresponder às expectativas. De onde eu venho as pessoas já não correspondem desde sempre. Por isso, eu já perdi esse medo. Tenho escrito “bosta” e tenho escrito coisas boas. É um exercício de poder a escrita. Mas não podemos nos enganar com o poder. É preciso lidar com o poder sem se confundir com ele porque, das duas uma, ou você se torna presunçoso ou melindroso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os artigos, sempre. Os trabalhos literários são vozes sem parceiros. Não sei por que existem tantos escritores no Brasil. Na real, eu sei: é a marca da resistência do nosso povo. Mas nós não achamos com quem conversar. Os editores justos são poucos e quase sempre falamos para uma plateia, mesmo a acadêmica e letrada, que não lê e não lerá o que escrevemos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo em computador. Às vezes até em celular.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Na poesia eu sou documental. Na prosa de ficção eu me aproprio do real e quase nunca respeito suas barreiras. Na escrita acadêmica eu sou o preto que a Academia gosta. Quase um preto de alma branca que engana todo mundo, mas que a máscara cai no caminho. Muita gente branca já se aproximou de mim por causa disso. Eles achavam que eu ia ser crítico aos meus iguais (muitos dos quais eu tinha até pessoalmente alguma reserva). É estranho, mas a leitura engana muita gente e esconde muitos de nós em lugares de sobrevivência. Às vezes eu sou nesses textos até mais cansativo e anêmico do que de fato sou na vida real. Mas mais perigoso também sou. Um dia, quem sabe, a criatividade possa ser respeitada e algumas coisas que escrevo possam ser publicadas sempre essa estratégia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje eu escrevo menos. Isso mudou e muito. Tenho feito textos melhores. Tenho planejado melhor. Até mesmo sido mais crítico com merdas que eu lia e endeusava. Olho para a escrita dos primeiros textos e vejo a mocidade de um Gabriel que queria sair do buraco que saiu. Eu gosto daquele Gabriel e sinto um carinho enorme por ele. Se eu pudesse reencontrar ele, seria como a amiga e professora que o ajudou a escrever aqueles textos. Eu só deixaria a água do rio rolar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu pretendo escrever ainda uns 5 romances em vida. Tenho 2 em mente. Um é sobre um romance lésbico entre mãe e filha. A outra é sobre a história de amor entre dois homens negros num quilombo. Eu espero um dia ler um livro em que a colonialidade e o capitalismo sejam vistos no passado. Nesse dia teremos museus para apresentar à humanidade uma ossatura velha, de maldade, perversidade e horror. Até lá a nossa escrita será a nossa forma de sobrevivência nesse mundo cão.