Gabriel Morais Medeiros é escritor, autor deAndrômaca, quarenta semestres (2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante onze anos fui professor de ensino médio e cursinho, e trabalhei num ritmo completamente insustentável. Era comum que não dispusesse de nenhum dia ocioso, já que aos domingos eu me via, muitas vezes, corrigindo pilhas de provas e preparando aulas. Nesse sentido, toda minha rotina matinal foi afetada por uma quantidade de trabalho que exauriu meu tempo livre. Nos dias úteis, o hábito era a amarga disciplina da estrada às seis da manhã, em direção a escolas localizadas em várias cidades diferentes. Os fins de semana, por sua vez, eram quase sempre colonizados pela falta de tempo. Após o meio-dia do domingão, já sentia o peso da segunda-feira. Quando me sobrava tempo para escrever algo literário, o fazia, no máximo, em apontamentos e fragmentos sem fim, em rabiscos, esboços. Nas férias, quando tinha energia, tentava reunir e dar forma a tudo o que fora anotado durante o semestre letivo, todos os motivos literários. Essa cavoucada nas gavetas durante as curtas férias sempre me foi um exercício de estranhamento, porque as anotações e os motes para poesias ficavam por muito tempo estanques, distantes, ausentes da minha vista, e muitas vezes da memória. O livrinho que tive a alegria de ver publicado, Andrômaca, quarenta semestres(Patuá, 2016) nasceu desse processo. Nas férias de dezembro e janeiro de 2010-11 tive de escavar quatro anos de fragmentos, poemas esparsos e anotações literárias feitas às pressas. Também o mandei para a editora num janeiro. Quanto à escrita acadêmica, esta, para mim, tem um caráter mais autoritário, mais violento. Não me sinto à vontade no modelo tese-ensaio-dissertação-artigo. Não me sinto talentoso ao escrever academicamente. Não estou argumentando que minha poesia seja talentosa. Mas o fato é que me sinto “jogando em casa” ao escrever poesia, sensação que eu nunca tive diante de um cronograma de mestrado ou de graduação a ser cumprido. Por isso, quando entrei na pós-graduação tive que reduzir substancialmente minha carga de trabalho em sala de aula. Tive que me organizar. Tive que passar a escrever sempre de manhã, quando ainda está fresquinho, sempre cercado de silêncio e de diversas outras restrições. Já a poesia admite um arredor barulhento, bagunçado e é fértil às madrugadas. Numa palavra: para a escrita acadêmica tive, sim, de desenvolver uma disciplina matinal, que basicamente se resumia a litragens de café. É um chavão dizer “tomo muito café”. Modéstia à parte, será muito difícil que um ser humano tome mais café do que eu. Dois litros, três litros por dia têm algo, para mim, de aperitivo. Os estudantes que estiveram comigo foram testemunhas desses exageros. Sempre fui glutão. Não estou aqui, evidentemente, incentivando esse hábito contestável, insalubre, para dizer o mínimo. Mas sem o café não existiriam manhãs nem rotinas, de escrita ou de sala de aula. “Coragem líquida”, como diz um grande amigo. Nunca rabisquei a lousa nem peguei numa caneta sem antes ter dado uma golada numa xícara de café. Nunca escrevi um poema sobre o café. Os verdadeiros amores às vezes são os mais esquecidos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto-me mal “na hora em que o diabo faz compras”, para lembrar a frase de uma pessoa muito querida. Ou seja: das quatro às oito da manhã. Das nove ao meio-dia, em geral estou bem e feliz. Consigo escrever bastante, mesmo academicamente. À tarde, em qualquer tarde, não consigo fazer nada, a não ser que seja obrigado – e algo sempre nos obriga. À noite e de madrugada volto a viver. O sono, a preguiça e a melancolia me acompanham, no entanto, há muito tempo. Quanto aos rituais de preparação para a escrita: se ela for acadêmica, o ideal é deixar o projeto de texto o mais pormenorizado e topicalizado possível, numa forma visual agradável, desde o dia anterior. Não gosto de fluxogramas nem de mapas visuais. Gosto de setinha e pontinho, cada um sintetizando um parágrafo. Os livros a serem citados ou os fichamentos devem estar à mão. Isso é óbvio mas sempre tive muita dificuldade em me organizar assim. Se a escrita é poética, o que ocorrerá será uma montagem de fragmentos. Logo, os fragmentos têm que se unir por si mesmos. Um tem que chamar o outro numa ligação de medula com medula, que ocorre de repente. Uma superfície ampla, uma cama ou uma mesa, precisa reunir muitos fragmentos, e torná-los bem visualizáveis. A memória e as pulsões do momento dão a liga no resto. Isso para a poesia não metrificada. A metrificada e rimada já exige um trabalho muito mais chato. Uma série de testes sonoros, de ritmo, etc, tem que ser feita sucessivamente, amarradamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevi minha dissertação em dias concentrados. Durante quatro meses de 2018, principalmente às segundas de manhã, às quintas e aos domingos. Nos outros dias dava aula. Como o prazo era curtíssimo e violento, tinha de escrever muito. O trabalho de revisão e reescrita era noturno. A meta diária dependia de cada capítulo, de cada subseção. Quanto à poesia, escrevia os fragmentos-base quase todos os dias. Sempre levava um caderninho comigo, ou escrevia motivos ou pedaços de verso e imagens na tela do celular. A tessitura poética, a produção dos poemas de fato só a empreendia nas férias, como dito. A partir de 2019 desejo escrever poesia diariamente. Hoje abandono a sala de aula após 11 anos, e a poesia suprirá, talvez, a saudade e o vazio. Se não suprir, volto à sala de aula, embora meu coração não o deseje mais. Nunca tive metas diárias para poesia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita acadêmico é, basicamente, uma resposta a uma violência, a uma dead-line. Dois anos, dois anos e meio para um mestrado teórico, em ciências humanas, é um período que vejo como insuficiente, até absurdo. Como mencionado, o método de escrita acadêmica resume-se, para mim, a uma organização progressiva das notas, planejamento textual em tópicos e escrita em si. As primeiras páginas são sempre muito dolorosas, às vezes quatro horas resultam em um mísero parágrafo, mas depois a coisa flui. É sempre difícil começar. Uma quantidade de dias de imersão contínua em textos relativos à pesquisa e em leituras de outros assuntos é necessária, para a composição de um certo clima de escrita. É algo muito sofrido, é e difícil pô-lo em palavras. A escrita acadêmica às vezes exige leituras diversas, que não tenham a ver com o assunto pesquisado. Isso esfria a cabeça, expande o raciocínio. O segredo está nas “adjacências das bibliotecas”, como uma professora costumava dizer. Mas as adjacências trazem o risco de uma perda de foco, de fato. A partir do momento em que se começa a escrita acadêmica, é necessário ter cuidado com interrupções. Quando ocorre a pulsão da escrita, a motivação da escrita, a gravidez da escrita, devemos ter muito cuidado para não perder, com distrações, essa aclimatação favorável. Pelo menos para mim, tal motivação sempre foi muito rara. O processo de escrita literária é muito mais livre imprevisível, no entanto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No caso da escrita acadêmica, a ansiedade de trabalhar em projetos longos pode ser mitigada com a publicação de partes do trabalho em anais de congressos, periódicos etc. Isso geralmente traz uma certa empolgação, uma alegria. O mesmo vale, eu acredito, para a literatura. Publicar textos em coletâneas, em páginas da internet, em revistas etc pode ser um incentivo que, por um lado, amaina a ansiedade de término e, por outro, quebra a inércia da procrastinação. Uma publicação sempre é um diálogo, uma conversa, uma felicidade. Algo que também ajuda a combater a ansiedade e o medo é sempre lembrarmos de um poema de Bolaño: “dentro de mil anos não sobrará nada de tudo o quanto se escreveu neste século. Seus olhos, lentos e verdes, simplesmente não existirão.” Tudo é vaidade…No meu caso, sempre fui mestre em procrastinação. Escrevi sempre muito pouco, no que toca à literatura. Fico bastante admirado quando vejo uma pessoa que, por exemplo, publicou quatro, cinco ou seis livros em dois anos, por exemplo. É uma verve que nunca tive, nem mesmo para a leitura. Sou lento e sempre serei.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Aqui o mais sábio, a meu ver, é o conselho de Walter Benjamin. Ele diz que nunca devemos mostrar nada às pessoas próximas, enquanto dura o processo de escrita. Porque a vontade de mostrar o texto aos colegas pela primeira vezserá sempre um poderoso motivador para que continuemos escrevendo, sem interrupções. Quanto às revisões, a escrita acadêmica exige o maior número de revisões possível. No caso da poesia, há poemas que são melhores crus; outros, que são melhores gratinados até o limite do incêndio no fogão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou um analfabeto digital, praticamente. Mas os rascunhos surgirão na plataforma que estiver mais próxima: o computador, o celular ou o caderno.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No caso da poesia, as ideias vêm das fontes mais distintas, e sempre dependem de uma visão. Não falo, evidentemente, em sentido místico, mas toda visão tem algo de transe. O primeiro poema de Andrômaca, quarenta semestresdeveu-se a duas imagens principais, aparentemente aleatórias. A primeira foi uma notícia trágica: um torcedor do Cruzeiro havia sido espancado até a morte com um cavalete de trânsito, em Belo Horizonte, no início de 2011. Assisti a essa notícia. Noutro momento, noutro canal, havia uma propaganda fofa e kitsch sobre toalhas de banho. Tive, não sei quando nem por quê, uma visão a partir dessas duas fontes, a violenta e a kitsch. Veio-me à cabeça uma personagem que sobreviveu a uma agressão, já que uma toalha de banho amortecera os golpes desferidos por seus agressores, que a espancavam com um cavalete de trânsito. É um pouco ridículo colocá-lo assim, por extenso, mas foi tudo muito rápido à mente, e enquanto poesia, me agradou o resultado. Estou me referindo ao poema “O isqueiro amarelo enfraquecia à garoa”. Quase sempre escrevo assim, conectando imagens. Espero que as visões soldem os fragmentos espalhados. Mas as ideias literárias podem vir de todo o lugar. Do som das palavras, do horror político, das conversas de bar, dos textos acadêmicos, das fantasmagorias publicitárias, de tudo. Talvez eu creia que só somos poetas na medida em que somos trapeiros, e quando nos abrimos às visões. Não há nenhum dom ou talento místico e romântico no poético (e talvez profético) exercício das visões. Moles lembrava que nada havia de mais surreal do que uma loja de departamentos, em que balas de fuzil para caçar elefantes ocupavam as mesmas prateleiras dos chaveiros, dos dedais de costura, das línguas de borracha. Perceber o delírio da contemporaneidade é um mero exercício de sintonização com a faceta demencial de nosso mundo. Mas utilizar esses procedimentos para a escrita acadêmica talvez resulte em uma dissertação ou tese catastróficas, ao menos na opinião da banca. Eu gostaria de ler uma tese baseada em visões, entretanto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não tenho uma noção de conjunto nem distanciada sobre minha obra literária, que é muito pequena. Escrevi dois livros de poesia. Um em 2011, que foi publicado, e outro em 2018, que enviei à editora, e que espero de coração trazer a público. Não sei se voltarei a escrever, não sei quando engravidarei de novo, nem para onde me levará a vida. Não estou acostumado a, também, falar sobre minha obra, que sempre foi muito esparsa e esporádica enquanto produção unificada, para além dos fragmentos. Acho que Andrômaca, quarenta semestresera um livro ingênuo. Isso eu falaria para mim, se voltasse ao passado, há oito anos. Porque minhas desesperanças eram, na verdade, felicidades. Por exemplo: o último poema fala de Elvira Sali, uma atriz desaparecida, que trabalhou em Vida Cigana, de Kusturica. De certa maneira o livro diz que é possível reencontrá-la, e em todos os poemas existe uma perspectiva de redenção, ainda que triste. Minha poesia atual já não caminha nessa direção, e está imersa no eterno retorno. Aqui soarei medíocre e piegas: achoAndrômaca, quarenta semestresum livro muito bonito, de qualquer forma. Quando o escrevi eu tinha 22 anos e estava em uma das piores épocas de minha vida. Era outra pessoa. Quanto à minha escrita acadêmica, espero que ela tenha melhorado ao longo dos anos. O primeiro texto que publiquei foi num periódico da graduação, e seu estilo era bastante truncado, bagunçado. Acho que minha dissertação foi mais fluente, depois de tanto ler e apanhar, mas a julgar pelas severas críticas da banca, disso não tenho tanta certeza.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever as biografias de Elvira Sali e Davor Dujmovic, atriz e ator da ex-Iugoslávia. Elvira trabalhou em Vida Cigana,como disse, e nunca mais fez filme algum, até onde eu saiba. Davor Dujmoc atuou em alguns filmes de Emir Kusturica, diretor de obras tão importantes para mim. Davor se suicidou em 1999. Estamos muito longe da Bósnia e da Sérvia, mas escrever essas biografias (um gênero literário de que não gosto, paradoxalmente) é o sonho que sempre tive. As atuações desses personagens ficaram gravadas na minha retina, e ficarão para sempre. Já os livros inexistentes que gostaria de ler são muitos. Borges falou uma vez, se não me engano, da História dos Etruscos, perdida, escrita em vinte volumes. Gostaria de ler a História de Cartagoem vinte volumes, mas em vinte volumes que tivessem sido escritos por cartagineses, ou melhor, por cartaginesas, não por romanos. É a velha história de Tlön, Uqbar, etc. Já dizia Bachelard: o sonhador tem por esteira um labirinto.