Gabriel Guarino de Almeida é artista marcial, professor de Kung-Fu e doutorando em Educação pela PUC-Rio, autor de “O segredo de dobrar papel”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou muito ligado em rituais. O da manhã é o mais importante deles, pois é o que sempre consigo fazer, os do resto do dia acabam sendo engolidos pela correria. Eu acordo como num susto, pronto: o olho abriu, eu levanto, ali pelas cinco e meia ou seis horas da manhã. A primeira coisa é passar um café bem forte. Houve um tempo em que eu lia enquanto a água esquentava, sempre poesia ou o I Ching (易經Yì jīng, O Livro das Mutações). Hoje, eu tenho aproveitado pra fazer ovos mexidos, três, com meia cebola; e uma tapioca com queijo. Como e depois boto uma xícara cheia de café e sento no sofá. Este é o grande ritual: ficar em silêncio, sentado no sofá, olhando, tomando o café. Leva uns dez ou quinze minutos, depende muito se o Lúcio vier pra cima de mim ou não. Meu gato é muito parça, de manhã ele levanta comigo, pede comida. Depois, na hora do café, ele aparece pra pedir carinho. A única grande regra daqui de casa é: se tem um gato em cima de ti, tu não podes levantar. Daí, se ele vier, demora. Às vezes até me atraso. Este semestre a rotina está estranha, porque estou tendo aulas do Doutorado de manhã, do outro lado do Rio de Janeiro. Aí arrumo minhas coisas e faço minhas leituras matutinas no ônibus mesmo, de Niterói à Gávea são pouco mais de duas horas. Nos dias em que não vou, executo o ritual completo: ler por volta de uma hora, depois descer pro play ou pro Campo de São Bento pra praticar Kung-Fu, por algo entre uma e duas horas. Pra falar a verdade, se eu fiz tudo isso, terminei às onze da manhã, mas já fiz as práticas que me mantém quem sou: ler e praticar arte marcial. Nos dias que tenho que escrever, pulo o treino e direto escrevo. É tudo luta corporal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor pela manhã. O que é estranho, por ela ser toda ritualizada, mas a coisa é meio essa: meus ofícios são a arte marcial e escrever, as duas coisas meio que não são trabalho no sentido laboral da coisa. Não pra mim. Por isso minha rotina ritualizada funciona bem. As coisas que envolvem a pesquisa acadêmica se espalham ao longo do dia: ler, anotar, escrever pequenas notas mentais que surgem, ou então gravar (em áudio, no celular). Á noite eu basicamente durmo, leio ou tô ensinando Kung-Fu. Mas aí já é uma coisa muito arrastada, não fui feito pra noite. Por mim, às nove eu já estava dormindo.
Mas assim: eu tenho dois tipos de escrita, com processos um tanto distintos: a de literatura, poesias e crônicas; e a de atividade acadêmica, científica propriamente. A primeira não tem ritual porque é no susto. Vem uma parada, meio que baixada, e eu tenho que parar tudo que eu to fazendo pra escrever. Quando tô num lugar que as pessoas vão encher o saco d’eu vidrado no celular escrevendo, peço licença, vou ao banheiro e escrevo. A escrita acadêmica exige um processo mais longo e mais cuidadoso: tem parte de pesquisa e montagem mental do texto, e a escrita dele propriamente. A verdade é o ato de escrever eu faço em qualquer lugar, costumo dizer que fui treinado pra estudar na guerra: minha casa sempre foi muito barulhenta, minha capacidade de foco sempre foi a grande ferramenta que fez meus estudos possíveis. Escrevo no ônibus, na praça, onde precisar. É que as ideias são sempre repentinas, então quando elas vêm, não importa onde, preciso anotar. È muito parecido com a luta também: exige tanta presença que eu ignoro o mundo em volta. Quando estou pra entrar na área de competição, no Kung-Fu, não há nada que me interrompa, pode ter um incêndio que eu não vejo. Ou escolho não ver. É a mesma coisa com escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo em períodos concentrados. É uma coisa meio caótica, no sentido mais antigo de caos, diria meu irmão (que é professor de grego antigo): o que é anterior à ordem mesmo, de origem. As ideias vão se formando aos poucos, gestando, de maneira consciente ou não: belo dia calha de descer e escrevo. Até hoje não me pus a botar prazos ou metas na minha produção literária: tenho escrito até hoje textos muito curtos. Imagino que, se me meter a contos ou um romance, eu terei que fazer algo mais próximo da escrita acadêmica: estabelecer prazos de estrutura. Não são de escrita propriamente, mas de pensar o roteiro do texto, uma fase de maturação mental. Por exemplo: esta semana tenho que pensar a metodologia da coisa. Vou lendo textos e estruturando mentalmente como expor. Faço umas notas soltas. No dia que eu for escrever de fato, tenho varias coisas soltas e um roteiro mental. Aí vem tudo de uma vez. Em geral, o que define o momento de escrever mesmo é o prazo, só sei fazer na beira dele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo, eu diria, é a manutenção de um estado mental observador (no caso da literatura) e de ligação de pontos (no caso da escrita acadêmica). Os textos mesmo surgem repentinamente: quando literatura, em sua forma quase que final; quando ciência, na forma de elaborações soltas, roteiros e ideias. Pra literatura, não uso a memória e preciso escrever na hora; pra academia, vou juntando coisas soltas até o dia que de fato sento pra organizar e escrever, sendo a memória vital no processo.
Como disse, a poesia, a crônica, elas vêm como diz o Ferreira Gullar: um susto. Não vem pronto, não: vem o início, duas palavras, a coisa vai surgindo enquanto eu escrevo, uma espécie de psicografia. Não planejo este tipo de texto, nem maturo: se eu ficar pensando e não escrever na hora, eu esqueço. Se soma a isso o fato de eu não conseguir escrever a mão, porque a palavra no caderno é lenta demais. Ou escrevo direto no celular ou computador, ou gravo o texto em áudio, falado. Pensando bem, toda minha escrita é um processo oral. Eu poderia falar ou escrever, pra mim dá na mesma. Muitos textos surgem a partir de conversas que tive ou aulas que dei.
O processo de pesquisa acadêmica, no entanto, exige mais etapas. Como estou a dialogar com autoras e pensar uma certa linearidade no raciocínio, eu tenho uma estratégia pra fazer com que esses fluxos de pensamento, que me atacam durante o dia, não sejam perdidos. Então, se saio de uma palestra com a cabeça borbulhando sobre contribuições pro trabalho, eu paro e escrevo ou faço áudios. Eu fico lendo as coisas e pensando, montando o texto na cabeça. Para escrever um artigo, eu passo semanas montando-o na cabeça, marcando as bibliografias, separando as referências. No momento da escrita mesmo, aquela que vai virar produto, gosto de assegurar um lugar onde eu sente com o computador, água perto, meus livros, um café. A escrita em si é bem rápida, coisa de horas ou dias, desde que a coisa já estivesse sendo escrita na cabeça.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu lido mal, mas minha sorte é que sofri poucos casos de trava na vida. É mais assim: se eu estiver com meus rituais cuidados, as coisas fluem bem. Eu preciso dos tempos. Não tenho muito problemas com expectativas de público ou se as pessoas vão gostar, mas sofro de ansiedade quando a leitura vai ser feitas por algumas pessoas específicas que tem algum pode sobre o texto: minha orientadora, por exemplo. Por isso, quando trabalho com uma coisa longa, como uma dissertação, gosto de ter feedbacks em cada pedaço do texto, por medo de escrever tudão e depois levar uma correção do tipo “muda tudo, começa de novo”. Sou grato que, ao longo da vida acadêmica, tive quatro pessoas, duas orientadoras e dois orientadores, muito zelosas e presentes, que não só liam e revisavam, mas construíam junto e dialogavam com minhas ideias. Na verdade, acredito que minha grande segurança na escrita vem de um processo de aprendizagem de ofício de um jeito bem artesanal. Minha atual orientadora de Doutorado, ela faz uma coisa que minha primeira orientadora da graduação também fazia: abrir o texto comigo pra falar de estilo, ordem das coisas. Daí fui aprendendo que o importante é escrever, não importa o que sai. Aos poucos vamos ajeitando e tá tudo bem. O texto não sai pronto sempre, é aos pouquinhos, e ter companhia nisso é o melhor jeito de lidar com ansiedade. A escrita não é um processo solitário, exige solitude em algumas partes, mas se for todo sozinho vira uma coisa não saudável. Acho bem mentirosa (e perigosa) a ideia do escritor solitário. Cê vasculha melhor e sempre descobre companhias ocultadas da história, que ofereciam cuidados cotidianos, revisavam juntos. Essas pessoas na lista de agradecimentos. Repara como são grandes as listas. Companhia é tudo na vida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu leio bastante. Mas é uma leitura de correção de pequenos erros, mudo muito pouco a estrutura. Porque a coisa já “desce” pronta, porque vem de maturação mental prévia mesmo. Eu mudo grandes coisas em textos acadêmicos, após revisões ou contribuições de alguém. Eu comigo só corrijo mesmo: eu como muito conectivos, faltam “que”, faltam pronomes. Eu esqueço muito de usar verbos de ligação. Então as frases saem tipo no chinês: um concatenado de nomes sobrepostos. Quando comecei a estudar o mandarim eu fiquei até emocionado por existir uma língua que casa com meus erros. Parece até coisa de vida passada.
Acho que, em média, eu leio três vezes. Na primeira, cato os errinhos. Na segunda, pra ter certeza. E publico, ou mando. A literatura vai direto pras redes sociais, é ali que ela é editada: na interação com as pessoas. Os textos mais longos e importantes eu mando pra alguém. Minha orientadora. Meu irmão, o maior parceiro acadêmico. Minha mãe, uma grande leitora poética.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação… é de dependência. Às vezes, penso que nunca teria me descoberto escritor se não fossem as redes sociais: meu livro surgiu a partir das postagens; é esta expectativa da interação que move a escrita. Hoje posto de propósito e estrategicamente, já até consigo até escrever e não postar. Fora isso, tem o que eu disse sobre só escrever pelo celular ou pelo computador. Eu não escrevi antes do acesso a esses meios. Na escola, eu tinha a letra muito feia, porque eu escrevo muito rápido, quase num ritmo de fala mesmo. A escrita no computador ou celular, por ser mais rápida, acompanha com paridade meu raciocínio. As experiências de escrever a mão sempre são frustrantes e doloridas. A mão dói porque não guenta o tranco da velocidade, mas, se desacelero, eu perco o texto, porque ele vem num fluxo frenético que dita a ordem. As únicas coisas a mão são roteiros, mas só se for impossível escrever no celular ou gravar um áudio. Até máquina de escrever eu já usei, daquelas elétricas. Era ótimo, saudades do escritório do meu pai e das minhas tardes ociosas de estagiário num escritório de advocacia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de olhar o mundo, na literatura; de ouvir o mundo, na ciência. Por ouvir, eu quero dizer ler, pesquisar, conversar, elaborar. Por olhar, eu quero dizer demorar nos detalhes, passar os olhos em tudo. Eu entro numa sala, me sinto um cachorro: cheiro tudo com os olhos, os cantos, as brechas, as conversas das pessoas. Essa curiosidade é que mantém minha criatividade ativa. É uma vontade de mundo que só consegui explicar quando li Manoel de Barros. Ele escreveu de um jeito que, sei lá, às vezes acho que ele fala de mim quando fala de conversar com os passarinhos, carregar água na peneira. Tudo no mundo fala, sabe? A gente é que tem que atentar com os ouvidos. Uma amiga escritora, a Carol Bataier, me mostrou um texto do Rubem Alves sobre ver. É isso: escrever é ver. Como disse Saramago apud meu irmão Matheus: se vê, repara. Aí quando eu reparo e acho que vale a pena, escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não mudou muita coisa no processo em si, mudou foi minha ciência dele. Acho que só fui entendendo e me adaptando sem brigar comigo mesmo e com ele. O processo é uma coisa a parte, né? Tem agência, peculiaridades. Eu negocio com esse ser que escreve, mas ele é meio irredutível, então eu aceito. Acho um porre ser atacado por uma vontade de chorar no ônibus, por ter que sair da aula pra escrever uma poesia, ou pedir licença no meio de um date pra gravar um áudio porque finalmente brotou na minha cabeça a solução pro parágrafo sobre corporalidade, na pesquisa cujo relatório que eu escrevia. A gente que é artista (e incluo os cientistas nisso), a gente tem que ter em mente que nossa arte é o motivo pelo qual vivemos. Estamos em função dela, porque ela é nossa materialização no mundo, nossos fragmentos que, em última análise, somos nós distribuídos. Eu sou uma pessoa espalhada: onde tem um texto meu, estou. Por isso, cuidar do processo é um imperativo moral. Se eu pudesse dar uma dica pro Gabriel de uns anos atrás eu diria: se não respeitam seu processo criativo, então não estão te respeitando. Então mete o pé. Seu namorado não gosta dos seus textos? Então você não tem que gostar do namorado, agradece e termina o rolê, de boas. Vai brigar pelo que? Quem ignora minha arte me dá licença pra eu me retirar, porque minha arte é uma urgência, eu não vim no mundo a passeio. Por isso (pra usar os termos da minha terapeuta) tenho cuidado que meu cotidiano seja cercado de encontros que me potencializam. Na arte marcial, na arte da escrita. Afora a coisa das companhias, eu não diria muito ao Gabriel de anos atrás não. Foi batendo a cabeça que fiz as descobertas mais importantes. Eu meio que acredito em destino. O que é só um jeito de justificar o passado, né? Ou não. Sei lá também.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de ter tempo pra me dedicar a escrever textos longos de literatura. Eu não falei, mas basicamente tudo que escrevo é feito no transporte publico. Seja porque é olhando a vida pela janela do ônibus que penso, seja porque estou narrando algo que vi no metrô, ou porque: eu passo pouco mais de quatro horas por dia nesse inferno que é se deslocar no Rio de janeiro. Escrevo e já posto direto. Talvez por isso nunca consegui escrever ficção. Sonho com fazer um romance. Mas não brotam essas ideias e nas poucas vezes, não tive disciplina de continuar. Acabo sendo invadido por outras coisas da loucura do corre na cidade. Eu penso que se eu me movo muito, não dá pra me dedicar a um texto de grande porte, entende? O dia que eu tiver uma casa minha, morar perto do trabalho, ter horas seguidas pra ficar sentado. Aí meu romance sai, talvez. Não sei nem se consigo, mas gostaria de descobrir.
Eu gostaria de ler um épico sobre o Brasil, uma espécie de Auto de Fé (do Elias Canetti) mas no Rio de Janeiro. Uma coisa que, a partir da narrativa de uma trajetória individual, desse conta de explicar a fissura do tecido social, os problemas da ideia de progresso, o epistemicídio suicida no qual esse país foi gerado e é mantido. Uma coisa que pudesse inspirar tratados de antropologia urbana ao mesmo tempo em que tivesse a densidade poética pra ser entendido por alguém que o lesse na China. Ousado, né? Pois é, é o que queria ler, se eu não achar um dia eu escrevo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu finjo que deixo fluir, mas alguma hora eu noto que preciso parar pra planejar. É um processo não linear, né? Acho que é. Pra mim, escrever é muito parecido com preparar uma fala ou um treinamento: eu planejo, roteirizo, organizo o que quero fazer. Aí na hora do movimento mesmo, acabo fazendo coisas outras – que dependem da interação com as coisas-tudo. É com digo pros meus aprendizes de kungfu: às vezes, o roteiro é bom apenas como preparação do corpo, para criar uma segurança e definir as intenções. A luta corporal mesmo é sempre outra coisa.
Sendo mais preciso, o que eu narrei acima não é sobre escrever, é mais sobre um projeto de escrita. Organizar um livro, por exemplo. No meu primeiro livro (e por enquanto único), O Segredo de Dobrar Papel, o processo de organização dos textos começou muito vago e solto. Em algum momento, Dominique e eu notamos o que queríamos: foi a hora de planejar os próximos passos, estruturar a ordem conforme o conteúdo e a progressão rítmica do livro. Dominique é uma parça da vida que me lê desde que comecei, é designer no Estúdio Passeio e manja das literatura – noutro dia ela me disse assim: olha, gabriel, pra esse próximo projeto, maior, você vai ter que sentar a bunda da cadeira.
E tem sido exato isso: prum livro grande, que conta uma história, a necessidade do roteiro, de maturar, se faz muito mais presente que num livro de crônicas – onde cada texto é um separado em si. Pras crônicas, as poesias, sempre foi difícil terminar, porque o fim do texto era o fim mesmo. O difícil, agora, não é mais a última frase: mas a primeira, o como começar o capítulo, que há de conectar a narrativa, sem também deixar tudo entregue. Não sei fazer isso, mas sei aprender. Então estou escrevendo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Só funciono na multiplicidade. Eu trabalho com várias coisas aparentemente não relacionadas: eu pratico e ensino arte marcial chinesa; pesquiso em doutoramento a relação entre prática corporal, desenvolvimento de habilidade e subjetivação; e escrevo. Teve uma vez que, ensinando defesa pessoal no Piranhas Team, por conta de uma fala duma aprendiz, eu tive uma digressão tão forte que me rendeu o amarrar das ideias prum artigo. Eu acredito que escrever é sobre ver, ouvir e ligar pontos: então uma vida de múltiplas atividades é uma forma de se manter num fluxo de movimentos que permitem, a partir da observação e relação do/com os mundos, criar esses planos de afetação.
Numa semana normal de trabalho, eu me organizo em função das horas do dia. Existe uma hora em que a energia se gasta melhor na prática corporal de luta: pela manhã, conforme o dia esquenta, esquento o corpo também. Antes disso, despertando, é a hora de ler os meus escritores-gatilho: os que me ativam o “modo” de escrever. Faz parte, também, do ritual matutino que noutro dia falei. Aí escrevo o projeto literário que está na fila. Só depois – e aí já são umas dez da manhã – é o calor forte que me faz ter vontade de sair, ver o sol e brincar com minhas armas. Daí só a tarde é que farei as coisas relacionadas à leitura e à escrita acadêmica. Tenho uma listinha de coisas do dia, que nunca cumpro, e por isso a semana vai acumulando: sábado ou domingo, por poder passar o dia todo em casa, fecho a semana com as pendências. Ou seja: eu não planejo a semana, eu planejo só os dias: na medida em que eles se acumulam é que a semana vai se definindo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu achava que o que o motivava era a troca com os leitores. Fui me definindo escritor ao postar em blog, depois redes sociais. Achava que eram as conversas que surgiam a partir dos textos que me motivavam. Talvez, anos atrás, até fosse. Hoje, penso que escrever é sobre provocar mudanças na paisagem afetiva deste pluriverso que se faz entre as nossas cabeças. Parece estranho, mas assim: quando me escrevem dizendo que o texto é muito bom, a pessoa se sente bem lendo, é bom. Mas é bom mesmo quando eu recebo um escrito dizendo que a pessoa me leu e tomou uma bela porrada cognitiva e agora algo mudou. Os escritores que mais me tocam são os que conseguem transformar e criar estados afetivos que antes eu não tinha alcançado, ou não tinha nomeado (é a mesma coisa? não sei).
Recentemente, eu conheci uma pessoa numa viagem, estávamos participando do mesmo congresso. Dias depois, numa conversa de bar, alguém falou que eu era escritor e ela disse: péra, você é o gabriel que escreveu aquele texto? dizendo que o amor é uma planta? Gente, minha companheira me cantou com aquele texto! Ela riu, eu fiquei bobo, ela me mostrou a mensagem e tudo: tá, lá, a moça mandou pra ela dizendo que era hora delas cuidarem do jardim delas, que já crescia. Eu escrevi aquele texto aos prantos, depois de tomar o pé na bunda mais épico da minha vida. E ele tá aí produzindo coisas múltiplas, começo de amores, quando pra mim ele nasceu de um fim. Percebe? Foi no dia que eu descobri que escrever fazia diferença real nas vidas, das pessoas e da minha, que me percebi e me afirmei escritor. Só não lembro quando foi isso.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Eu falei dos escritores-gatilho, né? Demorou pra eu perceber que isso acontecia. Primeiro, foi relendo as coisas e notando quem eu lia è época da escrita que falei: epa, nesse período aqui, lendo fulano, eu copiava fulano. Era a busca duma voz. Foi ali por dois mil e catorze ou quinze que eu consegui incorporar a fala minha nos textos. Uma coisa meio oral mesmo, que eu só confirmo quando alguém que conheço diz: gabriel, dá pra ouvir tua voz te lendo. Essa cadencia corporal inserida no texto surgiu depois de muita cópia não-intencional e muita leitura. Foi quando eu notei que depois de ler Matilde Campilho, várias coisas boas saiam. E não era a voz da Matilde, era eu, quase que em conversa com ela. Fui percebendo que algumas pessoas faziam isso: a Matilde, o Rilke, o Valter Hugo Mãe, o Viveiros de Castro, o Laozi. Esses autores têm em comum, penso eu, uma forte marca de um texto ritmado. Rilke passa longe de uma oralidade pá-pum-pá, mas suas cartas são uma conversa delicada, como toda carta deve ser. Esse atenção forma-conteúdo, que você vê na bell hooks, no Paulo Freire: não é só falar de amor, é escrever amorosamente. Acho que fui catando várias coisas deles pra mim.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou recomendar gente que não falei acima, porque acima são pessoas que me servem, mas talvez não sirvam. Eu recomendo que as pessoas busquem urgentemente as palavras da Warsan Shire. Warsan é uma poeta nascida no Quênia e criada em Londres, que ficou muito na mídia pelo fato de textos seus comporem boa parte das falas de Lemonade, da Beyoncé. O livro que recomendo é Warsan versus Melancholy, um audiobook disponível na internet. É possível achar tradução de algumas de suas poesias pra português no médium. Shire, pra mim, faz uma coisa que muitos poetas novos tentam e falham miseravelmente: escrever sobre suas vivencias, evidenciar os marcadores que ela carrega, num texto livre; mas tudo isso com uma densidade poética enorme, numa cadencia precisa e que te tira o ar. Muito diferente dessas poesias fajutas que parecem uns textos quebrados por motivos de “eu quis”.
Vou recomendar meu livro favorito, por motivos de nunca tenho ninguém pra conversar sobre ele. Eu mesmo só o comprei porque tinha um velho chinês na capa e estava numa promoção da falecida Cosac Naify. É Auto de Fé, do Elias Canetti. O que amo neste livro é a incrível capacidade de criar personagens que, ao mesmo tempo em que são caricatos e forçam os tipos sociais dos quais Canetti quer tratar, são profundamente verossimilhantes e passíveis de identificação. É um épico sem sê-lo, que me aflora profundas questões sobre o Ocidente e a maneira com que ele constrói outros mundos só pra se definir por oposição.
Eu falei que não ia repetir autores, mas preciso recomendar as Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke. Há tudo ali. Tudo. Sobre o criar, sobre o amor, sobre a solidão, a alegria, a angústia da vida, deus e a ausência dele. Rilke é uma companhia que dei pra várias pessoas que amo, em mãos: e mal elas sabem que se o fiz é porque as amo por demais da conta, porque Rilke pra mim é como um melhor amigo que tenho ciúmes, uma proteção, um segredo.