Gabriel Cortilho é escritor, autor dos livretos de poesia “A Transa dos Besouros Verdes” (2016) e “Golondrina Subterrânea” (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho muita dificuldade em ter uma rotina matinal como era há alguns anos atrás, durante a adolescência. Antes dos surtos psicóticos eu conseguia ter uma rotina “ordenada”, ia à escola e me preparava para o vestibular. Com os diagnósticos, tudo mudou. Fico, até hoje, espantado quando consigo ser produtivo de manhã: “De onde veio disposição pra enfrentar a primeira luz do dia?”, pergunto. Quando acordo cedo, prefiro o silêncio. Não gosto de barulho. Caso haja algum compromisso, ou tenha que terminar de fichar algum texto para o mestrado, o café me dá um impulso. No fundo, tenho esperança de que ainda vou conseguir aproveitar melhor as minhas manhãs, quero voltar a dar aulas de História e essa parte do dia me faz lembrar a época em que eu não tinha taquicardias, dificuldades para dormir ou as minhocas de adulto na cabeça. Às vezes tenho a sensação que a Vida me chama, um pássaro canta, mas eu não o escuto, ou finjo que não o escuto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um horário dado a priori para escrever, tampouco um ritual definido. Quando sinto que há algo a ser dito com mais clareza para mim mesmo, e que preciso registrar para que aquilo não se perca, mergulho na elaboração do texto até que ele consiga expressar o que realmente sinto. Só divido o que escrevo com outra pessoa se vejo que há ali uma ponte que transponha a mesquinhez da minha vida. Os escritos, em geral, costumam surgir quando menos procuro por eles, quando algo mexe comigo ou quando um tema fica durante muito tempo ruminando, ruminando…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Uma meta diária não, mas eu me cobro para escrever. Há fases em que escrevo bastante, outras que escrevo pouco. Ficar sem escrever é raro. Os poemas refletem o fluxo da minha existência e costumam nascer como corujas notívagas que impedem o meu sono. Golondrina Subterrânea, o meu décimo livreto, foi isso. Uma antologia com os poemas que mais gosto dos anteriores. Quando estava no oitavo, pensei: “acho que seria massa fazer um livro com uma idéia central mais definida”. Fui escrevendo e depois vi daria que para juntar algo ali.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha pesquisa é o contato direto com o mundo que me cerca. As pessoas que conheço, as relações que tenho, os livros, os filmes, etc. Disso tudo tento extrair algo que comunique algo, seja um sentimento, bom ou ruim, um descontentamento, um pedido implícito de ajuda. O cotidiano, as coisas simples, operam como elementos importantes. Há também a minha crença de que a vida não é apenas o que está diante dos nossos olhos. Tento travar uma batalha com o fato de que nascemos e crescemos dentro de um mesmo corpo, atados a uma “Persona”, às expectativas dos outros, com uma máquina de pensamentos na cabeça que duvida se si mesma, que se autossabota, mas que também sonha e deseja se superar. Alejandra Pizarnik dizia que todos nós estamos feridos. E acho que ela tem razão. Ler e escrever não é apenas uma forma de nos por em contato com outras almas, vivas ou mortas, e entender o que elas pensam, mas uma forma de nos sentirmos menos solitários.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Murilo Mendes tem um poema interessante sobre a página em branco, uma série de perguntas sobre o processo de construção. Todo escritor tem de lidar com isso, e não apenas os escritores. Se a nossa vida é um desenho sendo permanente feito, como dizia Cecília, então todo ser humano tem de lidar com os seus próprios empecilhos. O mundo fornece o lápis, a borracha. A minha angústia é quando não consigo terminar um texto. Quando tenho uma idéia ou um sentimento e não consigo traduzi-lo. Vou testando o meu cansaço até que algo ali nasça. Se isso não ocorre, engulo o lamento, deixo o texto de molho e tento recuperá-lo quando estiver com a cabeça mais tranqüila. Mas, no geral, os textos “finais” nascem — não sei bem ao certo se existe um texto final, já que, para lembrar Donizete Galvão, somos todos incompletos, “homens inacabados” — após um momento de calmaria ou, sobretudo, após uma luta de esgrima que travo com o texto. Depende muito do estado de espírito no momento em que estou escrevendo. É bom quando os poemas nascem sem muito desgaste, vou ver e ele já está ali me olhando após o parto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Algo que os beatniks ensinaram para o mundo dos homens-relógio foi a importância vital de comunicar o desejo, lançar tudo para o papel sem cerimônia, assim como o músico de jazz improvisa suas notas através do fluxo imediato do sentimento. Eu tento cultivar o desregramento dos sentidos, o Caos, o que vem na cabeça eu escrevo. Mas tenho também uma parte “apolínea” que busca apaziguar o monstrinho dentro do meu corpo. Vou escrevendo, faço os livretos e costumo dividir com as pessoas, próximas ou não. A revisão vem ao final na hora de concluir o livreto. É mais um processo de compilação. Após o parto, tento não alterar muita coisa. Roberto Piva dizia que a vida ta aí pra ser vivida… Novas experiências, novos poemas estão por vir também. Quando o livreto está pronto, dou abertura para que digam o que pensam daquilo que escrevo. Quanto mais interpretações, melhor. Sinal de que o poema não se esgotou na maldita univocidade que assola a poesia. Em geral, são poucos os textos que não divido com as pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na falta de um caderno em mãos, o bloco de notas e o gravador no celular sempre me salvam. Em casos raros, um guardanapo numa mesa de bar também ajuda. Meus escritos dividem-se em textos feitos no papel e no celular. Tento intercalar entre o tradicional e o moderno. A tecnologia, na maioria das vezes, costuma ser mais ágil para ajudar a gestar o esqueleto do bicho. O caderno também é uma ferramenta interessante, porque nele consigo captar, através da letra, se eu estava calmo ou muito angustiado…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O Livro do Desassossego tem sido um companheiro de longa data. O autor desse livro mexe bastante comigo. Suas múltiplas faces me fizeram ver a vida com os olhos de um aracnídeo. Manoel de Barros é outro cara. Há também muita gente boa e viva por aí escrevendo. Outra fonte de idéias são as músicas: Agnes Obel, Sergio Sampaio, Toundra, God Is An Astronaut. Tudo que acalma ou contorce a alma é bem vindo. Os meus hábitos não são lá muito saudáveis, alguns são autodestrutivos, outros nem tanto. Há tempos em que leio bastante e retomo os ensinamentos de meditação que tive, tudo caminha na calmaria e parece que vai ser “zen” e tempos em que o que mais faço é entupir as veias com fumaça de cigarro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita hoje é bem mais sincera do que antes. Não tento parecer com ninguém senão com o Gabriel que eu ainda desconheço. Conheço mais os meus limites. Tento buscar uma forma de concisão, ao invés de ficar nas abstrações que não levam a lugar nenhum. Se pudesse voltar na escrita dos primeiros textos, não diria nada ao Gabriel de antes. Eu sou filho dele. Alberto Caeiro certa vez se perguntou: “Se esse é o seu tempo, quando havia ela [a primavera] de vir senão no seu tempo?/ Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;/ E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse…”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro que gostaria de ler, mas que acho que ainda não existe, seria mais ou menos algo sobre o sentimento ambíguo de estranhar o que é estar vivo. Um livro que narrasse o que é sentir apenas o espírito e não as coisas materiais. Minha mãe, quando eu era pequeno, me disse que iria comprar um livro pra mim sobre isso e até hoje eu não o encontrei. Quando falo sobre isso, as pessoas me olham estranho: “O que é isso?” Talvez haja algo no campo da neurociência ou entre os budistas, sei lá. Um livro que conseguisse decifrar “o que é a vida”, como perguntava Abujamra e ninguém sabia responder, com a exceção de Eliane Brum. Lembro de uma aula na faculdade em que o professor relatou um caso quando Nietzsche — ou não lembro quem raios era — estava sentado vendo o mar, mas não sabia se ele estava sobre a pedra ou se ele era a pedra. Talvez eu escreva algo em prosa sobre isso um dia. Este seria um projeto.