Gabriel Bustilho é escritor, graduando em Letras pela UFRJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho uma rotina variável, principalmente, porque trabalho em horários um tanto flexíveis, mas os compromissos com a universidade me prendem de maneira mais fixa.
Meu dia costuma começar no dia anterior. Eu gosto de chegar em casa e dormir. Eu não funciono bem enquanto o dia ainda pesa em mim. Costumo dormir até onze ou meia noite, dependendo da hora que chego. Então acordo e começo a ler e a escrever. Sou muito produtivo de madrugada, porque sou disperso e a madrugada evita dispersão. Antes de sair de casa tiro um cochilo de quinze minutos ou meia hora. Eu também não gosto de viver o dia enquanto a leitura e a escrita seguem com muito impacto na minha cabeça. Não que seja ruim ficar com textos na cabeça, mas isso atrapalha seriamente minhas relações interpessoais, especialmente, porque só vou querer falar dos textos que me acompanharam durante a madrugada.
Há, no entanto, o problema do cansaço: não estou renovado, por assim dizer, para começar o dia no trabalho ou na universidade, e, quando preciso que sejam minhas prioridades, me vejo forçado a abandonar as madrugadas de leitura e escrita, o que interfere e muito na minha produtividade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor durante a madrugada. Não tenho exatamente um ritual de escrita, mas sempre leio antes de escrever. Nunca começo um texto do zero, sempre há uma frase, uma nota – uma palavra, que seja – para começar o texto. Gosto sempre de reescrever, rasurar, escrever em cima, apagar, desenvolver, ilegibilizar, ou qualquer que seja o procedimento. Faço isso com que é meu ou até mesmo de outros. Faço isso mesmo que não sobre nada do original.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias, mas tenho períodos de escrita para cada tipo de texto, o que me faz, de certo modo, escrever em períodos concentrados. Se preciso escrever um texto acadêmico me concentro um período só nele. Se preciso escrever poemas me concentro um período só neles. Mesmo que em alguns momentos os textos desrespeitem essa divisória e invadam o espaço – ou tempo – um do outro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Leio escrevendo. A própria nota já é o começo. Para mim, não há movimento da pesquisa para escrita, independentemente do gênero. Escrever é pesquisar. Pesquisar é escrever.
O que faz, então, a nota virar um texto maior é um processo diferente. Se desenvolvemos uma ideia, se a cortamos. Se organizamos ou embaralhamos as notas. E, é claro, há toda uma questão estrutural em certos textos: introduzir o tema, concluir. Mas vai pelo mesmo caminho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A linguagem é maior que nós; ela nos cria; tudo que podemos fazer é manipulá-la, ser um pouco malandro com ela. E em algum momento da vida eu aceitei que não existe possibilidade de começar algo do zero. A partir desse momento nunca mais me vi de frente a uma “trava da escrita”. As palavras estão no mundo, só precisamos pegá-las.
Por enquanto, eu não sou bem o tipo de pessoa que pensa projetos. Gosto mais de organizar as coisas que já existem e pensar algo a partir delas do que pensar algo do zero. Claro que em algumas ocasiões isso não é possível, mas não costumo sofrer de ansiedade.
Tenho um problema sério quanto a expectativas. Tenho alguns amigos que depositam algum tipo de fé em mim, em maior ou menor escala. É a eles que tenho medo de decepcionar, porque, longe de ser um peso, é essa fé que me move, normalmente, e sinto que fazer algo de qualidade é minha retribuição.
Não lido com a procrastinação. Se ela vem, não a venço. Se não vem, ótimo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei. Eles nunca estão verdadeiramente prontos. Reviso o máximo que posso, até quando o prazo me permite.
Eu sempre mostro os textos a algumas pessoas. É um processo muito importante, na verdade, para testar o texto. Além dos comentários que elas fazem, enviar um texto a alguém te despossui, de alguma forma, daquele texto. Te dá outros olhos. Pelo menos para mim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho a melhor relação do mundo com a tecnologia, mas me aproveito muito dela. Só escrevo no computador, salvo quando estou lendo e prefiro não me aproximar da tecnologia para evitar distrações; o bloco de notas do celular me é muito útil quando preciso anotar um pensamento, uma imagem, um verso; o tradutor do google é o pior leitor do mundo, o que faz dele o leitor mais necessário pra qualquer pessoa que queira escrever, basta insistir um pouco na escuta da voz terrível; o tradutor do google também é muito válido pra experimentos de traduzir e retraduzir, que é uma coisa que alguns poetas já fazem, e é bacana.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não acredito em criatividade, acredito em trabalho. Um escritor é sempre um pesquisador, e é na pesquisa que reside o trabalho.
Na pesquisa acadêmica, escolhemos um objeto, escolhemos como vamos olhar para o objeto, escolhemos o que falar sobre o objeto. Escrever um poema ou um romance não difere. Escolhemos um objeto, seja ele a vida, a morte, o amor, os insetos, a política, os jovens torcedores do Flamengo no Maracanã, a saudade dos ciganos, que seja. Escolhemos como olhar para o objeto, se falamos da vida através da saudade dos ciganos; se falamos da saudade dos ciganos através da sola dos seus sapatos; se falamos da sola dos sapatos dos ciganos através da vida. O importante é não fazer o objeto trabalhar para o olhar, nem o olhar trabalhar para o objeto. Por mais difícil que pareça, devemos fazer com que os dois cooperem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei dizer exatamente o que mudou, acho que aprendi a apanhar da língua.
Há uns meses, o Marcelo me disse pra confiar na linguagem. Confiar na linguagem, não confiar em mim. É isso o que tenho feito. É isso que eu diria ao Gabriel de uns anos atrás.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero aprender a desenhar. Quero desenhar escrevendo. Escrever desenhando. Pensar – e não é novo – a escrita e o desenho indissociáveis. Da minha forma.
Para mim o que há de mais precioso no mundo são os vivos. Os livros que gostaria de ler e não existem (ainda) são os dos vivos. Há alguns no prelo. Há alguns em ideia. Há alguns de pessoas que ainda não nasceram. É daí que vem a vontade de viver: ver os vivos deixando algo de si neste mundo escroto.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende. Se quero escrever um livro de poemas, por exemplo, costumo planejar tudo antes. Muito minuciosamente. No final, o que nasce é sempre o que falta ou foge do planejamento.
Mas se preciso escrever um artigo, por exemplo, o projeto e o resultado se mostram mais fiéis. Muito também por conta de uma estrutura mais rígida pré-determinada que permite que o planejamento se desenvolva dentro dela.
Quanto às frases, ambas, a primeira e a última, são complicadas. Acho que elas exigem um trabalho extra. E é muito por conta desse trabalho extra, às vezes excessivo, que elas ficam, por assim dizer, ruins. Em geral, no processo de edição, elas são excluídas, no seu lugar vem alguma coisa que estava lá pelo meio, à deriva, e que encaixa bem. Em geral costumamos pensar que escrever é diferente de construir uma casa. Não é. Às vezes precisamos organizar tudo normalmente para só depois descobrir que a TV fica melhor no banheiro que na sala.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu organizo minha semana por prazos. Vou finalizando o que tenho que entregar mais cedo antes, deixando algumas coisas para cima da hora, e, na medida do possível, aproveitando o tempo livre.
Não é que eu prefira, gosto de ter um projeto ao qual eu me dedico mais, e em geral é meu livro de poemas, mas isso é impossível numa rotina de trabalho e faculdade, e preciso dar prioridade às coisas que pagam as contas, infelizmente.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Duas citações que eu gosto muito podem responder. A primeira é do Bataille, “J’écris pour effacer mon nom”. A segunda é do Artaud, “Mon nom doit disparaître”. Elas são importantes pra mim porque há algo na escrita que é apagar-se para conservar-se. E isso vai muito de encontro a algo que me aconteceu.
Quando eu era moleque minha avó paterna teve Alzheimer. Era duro, mas eu era pequeno e não sentia muito. Um dia fui visita-la e ela olhou para mim com a cara fechada, meio grossa, era portuguesa, durona, mas sempre me tratou com carinho, então estranhei. Depois de me encarar um pouco, ela perguntou quem eu era e o que eu fazia ali. Aquele foi o evento mais decisivo da minha vida até então. Hoje tenho consciência que escrevo por causa dele. De alguma forma escrevo para não ser esquecido. E acho que isso vai muito de encontro às citações, porque quando respondi para minha vó que eu era o Gabriel nada aconteceu, alguma coisa só foi mais ou menos se alterar quando eu disse que era o neto dela. Mais velho fui notar que ali tinha aprendido que precisava abrir mão do meu nome. Seja lá o que isso possa significar.
Comecei a escrever mais ou menos na época do evento, mas certamente foi mais por alguma paixonite que por ter sido tão apagado da memória da minha vó. Quer dizer, conscientemente falando.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que quem escreve nunca acha que seu estilo é próprio. Eu sei muito bem de onde roubei versos, tons, temas… e aí caí na segunda pergunta: bebi de muitas fontes, especialmente dos meus contemporâneos, mas sem dúvida o que escrevo está em algum lugar entre João Cabral de Melo Neto e Antonin Artaud. Se é que existe tal lugar.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Depende muito do que o leitor procura. Acho que um livro muito bonito e que dialoga com a ascesão do fascismo que presenciamos é Sobrevivência dos Vaga-lumes, do Didi-Huberman. É um livro ensaístico e poético, revendo Pasolini, debatendo questões centrais do pensamento crítico contemporâneo e sobretudo nos mostrando que é possível, que apesar de tudo…
A segunda indicação seria Educação pela Pedra, do João Cabral de Melo Neto. Acho que quem quer escrever tem que ler atentamente esse livro para descobrir a máquina poema e como ela opera a linguagem.
Por último eu vou com uma escolha passional, Primeiro Amor, do Samuel Beckett. É um dos meus livros favoritos, porque nele tudo está em perda e eu só fui me tornar uma pessoa melhor quando aprendi a perder.