Frederico de Almeida é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não gosto de acordar cedo, e uma das vantagens da minha vida atual de professor universitário é a de poder fazer minha rotina, sem horários fixos (a não ser os das aulas e eventuais reuniões) e podendo trabalhar parte da semana em casa. Apesar de não gostar de acordar cedo, busco me levantar entre 8h e 9h. Gosto de tomar café da manhã com calma, lendo notícias e acessando as redes sociais. Em geral, nos dias em que trabalho em casa, deixo a manhã reservada para cuidar de coisas mais práticas, pontuais, como pagar contas, responder a e-mails, fazer compras, cozinhar, arrumar a casa, correr e praticar atividades físicas. Nos dias em que vou à universidade, costumo chegar por volta das 10h, e me dedico também a tarefas mais rápidas e práticas, como os e-mails, assinaturas em documentos, e outras burocracias acadêmicas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Funciono melhor à tarde, e mais para o fim da tarde. Em geral, meu ápice produtivo está entre o fim da tarde e o início da noite, mas tento evitar trabalhar durante a noite e de madrugada (embora o faça quando necessário, e costumo produzir bem nesse horário). Quando estou na universidade, costumo trabalhar em minha sala até depois das 20h.
Sou um tanto ansioso e desorganizado para a escrita. Uma ajuda é sempre uma boa xícara de café, que me mantém ativo e concentrado. Às vezes ouço música. Às vezes deixo a TV ligada, mas sem prestar muita atenção. Quando acho que estou pronto para a escrita (ainda que seja uma primeira escrita desorganizada, um rascunho, ideias lançadas no papel apenas como ponto de partida), sento-me à frente do computador e tento avançar: escrevo parágrafos, frases, elenco tópicos, simulo sumários de textos, etc. Se já tenho um texto começado e mais avançado, em geral releio o que já escrevi desde o começo e procuro continuar de onde parei; se for um texto já segmentado em seções, muitas vezes volto às primeiras seções para aperfeiçoá-las, mesmo que eu já tenha escrito longos trechos de seções seguintes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, embora tente fazer isso quando tenho um prazo a concluir. Gosto de variar minha rotina, deixando dias exclusivos para tipos de tarefas: um dia dedicado à leitura, um dia para questões mais burocráticas, um dia para análise de dados, um dia para escrita. Prefiro ter poucas metas por dia e tempo suficiente para me dedicar a uma única tarefa, ou tipo de tarefa – até porque se não estou concentrado o suficiente, costumo me dispersar, e preciso de tempo para essas idas e vindas de minha atenção.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para mim, é sempre difícil começar. Um processo que me ajuda, mesmo antes de ter feito leituras ou notas mais sistemáticas, é o de pensar em uma estrutura de tópicos para o texto, itens ou temas que devem estar presentes, não necessariamente como um sumário, como seções formais do artigo, mas como argumentos ou elementos encadeados, sequenciados, articulados entre si. Isso porque nunca começamos do zero, sempre temos alguma ideia, alguma intuição em mente, algum acúmulo que nos permite articular uma ideia, ainda que depois precisemos ler, pesquisar, refletir sobre outras coisas. Muitas vezes, a partir de uma simples lista de itens ou temas, passo a redigir argumentos que explicam ou desenvolvem cada um desses temas. Um ou dois parágrafos, muitas vezes acompanhados de referências bibliográficas que devem ser consultadas para o desenvolvimento de cada argumento. Com o tempo essas anotações separadas por itens vão ganhando corpo, se tornando parágrafos, seções inteiras, e inclusive permitem que eu refaça a organização original de itens ou tópicos que serviu de ponto de partida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esse é um grande problema para mim. Sou bastante ansioso, e inclusive já tive um diagnóstico clínico de transtorno misto ansioso-depressivo, hoje em tratamento. Graças a esse tratamento, hoje essa é uma questão menos grave para mim, embora o desafio da ansiedade ainda surja. Acho que a diferença é que agora consigo lidar melhor com ela. Não me permito sofrer com ansiedade. Se não consigo escrever, mas estou com a cabeça concentrada no tema do que escrevo, paro de escrever e vou ler alguma das referências que selecionei, o que aproveita o meu foco no tema e em geral me ajuda a organizar ideias e a aplacar a ansiedade – ainda que seja apenas pelo fato de saber que não estou simplesmente “travado”, sem fazer nada, procrastinando.
Muitas vezes, ando pela casa ou pela universidade pensando nos meus argumentos, desenvolvendo-os, expondo-os em voz alta (quando estou sozinho…). Em geral, esses intervalos servem também para tomar um café e alongar o corpo, o que me dá disposição e concentração para voltar ao computador e tentar escrever mais um pouco.
Há vezes, porém, que as travas não se resolvem com leituras ou outras atividades relacionadas ao que estou escrevendo. Nesses casos, quando percebo que “travei” e minha ansiedade está crescendo, simplesmente paro e vou fazer outra coisa. Ligo a TV, ouço música, acesso o Facebook. Às vezes tiro um cochilo. Não me culpo mais por isso. Sei que estou procrastinando, mas prefiro fazer isso com consciência do que sofrer de ansiedade.
Projetos longos trazem uma dificuldade adicional. Penso aqui no projeto de pesquisa em andamento, que vai gerar um relatório final e papers parciais. Conforme os dados aparecem, é inevitável esboçar análises, antecipar conclusões, querer explorar esses mesmos dados em direções não previstas inicialmente no plano de pesquisa ou mesmo redirecionar a pesquisa para outras direções e dados a serem coletados. A prática de manter um diário de campo, como o fazem os etnógrafos, ou mesmo um diário de pesquisa, é uma boa forma de dar vazão a esses pensamentos “precipitados”, cujo registro serve de base para análises futuras, reflexões e, finalmente, para dar início à redação de um paper intermediário ou do relatório final.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou pouco paciente para revisar. Se reviso logo depois de escrever, a revisão é apressada e malfeita. Por isso, prefiro encerrar o texto, fechar o arquivo, e deixar para lê-lo uma última vez, no dia seguinte ou depois de algum intervalo. Por outro lado, também não faço muitas revisões. Uma ou duas, no máximo. Sei que, se for o caso de uma publicação, haverá ainda uma revisão posterior, e hoje em dia prefiro encerrar o texto e submetê-lo à leitura dos outros, para depois incorporar sugestões e fazer revisões – sendo que, em geral, eu mesmo já começo uma revisão por conta própria algum tempo depois de encerrada a escrita, enquanto o texto ainda está sendo lido pelos pareceristas.
Em geral, essas revisões por terceiros acontecem nos mecanismos de revisão dos periódicos ou nos congressos acadêmicos. Não tenho a prática de enviar o texto informalmente para colegas, mas tenho tentado mudar isso. Pesquiso em uma área um tanto restrita, o que muitas vezes significa que um leitor informal de meu trabalho pode acabar se vendo impedido de analisar meu trabalho em uma avaliação formal do tipo double blind review, e sei que isso acaba gerando transtornos para os editores de revistas. Ainda assim, tenho feito um esforço para passar a compartilhar meus escritos com colegas mais próximos, de maneira informal e solidária. A produção acadêmica tem se tornado cada vez mais solitária e competitiva, tipicamente neoliberal, e acho importante nos opormos a isso, como uma resistência política mesmo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Costumo escrever praticamente só no computador. Às vezes, para uma ideia muito embrionária e ainda confusa, rabisco esquemas à mão em um pequeno caderno de notas que tenho comigo. Às vezes gravo um áudio com a ideia, para não perdê-la e aproveitá-la depois. Também costumo usar o Google Notes para construir essas estruturas de tópicos inicial, se não estou à frente de um computador. Seja para gravar áudio, seja para uso do Google Notes, o smartphone acaba sendo uma ferramenta importante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não tenho uma rotina para isso. Acho que o importante é se manter atualizado, ler muito e, principalmente, se dar o tempo para reflexão – que é um tempo aparentemente não produtivo, para apenas pensar em ideias, o que você pode fazer caminhando, deitado, sentado, antes de dormir, conversando com colegas, compartilhando suas ideias, etc.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Fiquei mais disciplinado, mas não muito; por outro lado, parei de me penitenciar e de sofrer com ansiedade e procrastinação. Também acho que hoje escrevo de forma mais objetiva e clara, o que também ajuda o processo de escrita. Por fim, parei de me impor a antecipação das avaliações de terceiros. Isso se deu principalmente conforme aumentei minha atividade como parecerista. Reviso muitos trabalhos excelentes, mas no geral os trabalhos são apenas medianos (o que não é ruim) ou mesmo ruins. Com essa experiência e essa reflexão, passei a ficar mais tranquilo em colocar um ponto final em um texto e submetê-lo a uma revisão formal. Sei que ele sempre pode ficar melhor, mas procuro me assegurar que de que ele é apenas suficiente: não é o trabalho da minha vida, não é a formulação de uma lei geral sobre os fenômenos que estudo, é apenas uma reflexão, um resultado parcial de pesquisa, bem escrito, com começo, meio e fim, atendendo a exigências básicas do trabalho científico (objetivo, justificativa, metodologia, dados, resultados, etc). E seja por uma postura epistemológica que pensa sempre no acúmulo e no diálogo dos resultados de pesquisa, seja por minha preferência por análises qualitativas e interpretativas, fico bastante tranquilo em apresentar resultados que sejam apenas parciais – seja porque não dão conta da totalidade de meu objeto, seja porque são provisórios, passíveis de novas interpretações por outros e por mim mesmo.
Sobre minha tese, não sei se conseguiria dizer algo a mim mesmo se pudesse voltar à escrita. Melhor dizendo: eu até poderia dizer algo a mim mesmo; só não sei se aquele “eu”, que escrevia aquela tese, naquele momento e naquelas circunstâncias, ouviria ou mesmo se deveria ouvir esses conselhos e orientações. Hoje já abandonei interpretações que eram centrais na tese, já estou estudando outros temas, mas no geral gosto muito do que escrevi, embora seja capaz de enxergar inúmeras falhas naquele texto. Até mesmo por isso, ao invés de revisar a tese e publicá-la como livro, preferi desmembrá-la e publicar diversos artigos; isso me permitiu aprimorar análises, aperfeiçoar a escrita, rever interpretações, complementar dados, etc. Gosto de pensar que o resultado da pesquisa está sempre em aberto, e de me permitir voltar a ele e revisá-lo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitas coisas que eu gostaria de fazer, e fico tranquilo em pensar que tenho tempo para realizar parte deles, e também com o fato de que a atividade de orientação permite que muitas vezes o pesquisador realize projetos idealizados por meio de seus orientandos, seja sugerindo a eles esses projetos, seja porque eles simplesmente aparecem a você com ideias e propostas de pesquisa muito próximas daquelas que você já pensou mas ainda não teve tempo de realizar. Uma outra forma de realizar, por terceiros, essa ideias ainda não realizadas é o trabalho coletivo da academia, aspecto que tenho considerado cada vez mais importante: participar de congressos, compor bancas de defesa, assistir à apresentação de pesquisas de colegas, enfim, poder conhecer projetos já em andamento, que você gostaria de ter realizado, tendo já pensado neles ou não. Essa dimensão coletiva do trabalho científico precisa ser retomada e valorizada, e isso exige tanto um esforço político-institucional de resistir aos incentivos ao produtivismo individual e competitivo, quanto abrir mão da inevitável vaidade que todos nós, intelectuais, temos em maior ou menor medida.
Ainda assim, devo dizer que há sim um projeto que ainda quero realizar. Gostaria muito de fazer um documentário. Gosto muito desse tipo de cinema, e acho que pode ser um trabalho e uma linguagem muito próximas do trabalho e da linguagem acadêmica das ciências sociais. A antropologia já trabalha mais próxima desse diálogo. Creio que muitos dos resultados dos meus projetos de pesquisa poderiam ser igualmente bem registrados na forma de um filme documental: as elites judiciais, as profissões jurídicas, o acesso à justiça, o funcionamento da justiça criminal. Acho, por exemplo, que os documentários da cineasta Maria Augusta Ramos (“Justiça”, “Juízo”), que tratam de muitos desses temas, são tão valiosos e importantes para meu campo de estudos quanto os estudos dos principais juristas e cientistas sociais que escrevem sobre os mesmos temas.
Por fim, não consigo imaginar um livro que gostaria de ler mas que ainda não existe. Sei que há muitos temas, questões e perspectivas sobre velhos temas e questões ainda pouco explorados. Mas acho que o bonito da produção científica e literária é o encantamento que acontece quando, como leitores, nos deparamos com um livro ou um artigo que nos revela algo surpreendente, algo que não imaginávamos, ou mesmo algo que suspeitávamos, mas ainda não tínhamos encontrado em forma de registro formal.