Fred Linardi é jornalista, escritor e palhaço, mestre em Escrita Criativa pela PUCRS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho pavor de rotina e confesso que às vezes até me prejudico e me frustro por isso, pois sem rotina pode acontecer a perda da disciplina. Mas gosto de acordar em torno das 8h30, tomar um café da manhã (sempre acordo com apetite). Geralmente como uma tapioca com queijo ou ovo mexido; outras vezes, iogurte com granola. Para beber, sempre café. Não consigo começar o dia de outra forma. A mente deve estar esvaziada; o estômago, jamais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito das manhãs, quando o dia ainda não foi vencido pela pressa, pelos ruídos do cotidiano, da nossa cabeça e dos vizinhos. Minha mente também está renovada pelo sono e ainda não foi tão despertada pela ansiedade – ela costuma me atrapalhar em vários momentos do dia às vezes logo quando acordo; é uma luta.
Por isso que a noite também acaba sendo um período promissor: o silêncio volta, as demandas começam a adormecer… E isso me traz um grande dilema: se eu vou madrugada adentro, não consigo acordar cedo para escrever. Por isso, a ideia de rotina ainda é um tanto distante para mim e ela só se concretiza de fato quando os prazos encurtam – aí, eu decido se naquela semana ou mês eu vou trabalhar nas manhãs ou nas noites. As tardes raramente me servem para criação, de modo que cumpro outras demandas profissionais ou pessoais.
Não tenho ritual nenhum para começar a escrever. Só preciso de um lugar com silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Me identifico bastante com a ideia que ouvi uma vez de Marcelino Freire, que diz que escreve o tempo todo e que depois de um tempo escrevendo internamente, para e digita. Sempre me senti assim. Depois de muito me frustrar por nem sempre ter o tempo que gostaria para escrever – e passar longos períodos sem fazê-lo – percebi que, na verdade, estamos o tempo todo escrevendo, escrevendo… É mental, é algo que beira a obsessão, pois é uma prática que precede muito o ato de se sentar e passar as palavras para o papel ou tela do computador. Chega a ser orgânico. As ideias, as palavras, parecem correr mesmo da mente às vísceras antes do jorro da escrita em si.
Ainda não consegui fazer da escrita uma meta diária. A não ser quando tem um prazo envolvido. Aí, junto com a rotina, vem a cumprimento de metas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Aqui é um caso bem peculiar. Minha principal produção até hoje foi em não ficção. Neste caso, minha escrita depende totalmente de apurações. São pesquisas em livros, artigos, filmes, documentos… e várias entrevistas, que somam horas de depoimentos. Essa apuração toda envolve um desgaste significativo. Então, para mim, quando chega o momento da escrita, apesar de toda a concentração e tensão para que tudo respeite uma ética em torno dos fatos, o ato da escrita chega a ser libertador. É a realização de um desejo que começou lá atrás, antes de todo esse processo de apuração que pode levar semanas, meses ou anos…
Quando sento para escrever, aí já estou com o leitor, preocupado em como segurar a mão dele da melhor maneira possível para que ele não desista no meio da leitura. É o momento que vem com aquele gosto que a gente tem quando sabe de uma história e fica louco para contá-la para alguém. É a hora que eu chego e falo: acabaram os ensaios, hora colocar tudo em cena!
Então, começo a escrever quando sinto que estou seguro que o material colhido rende uma história consistente e que preenche o recorte que eu fui buscar. É preciso saber também o momento de parar as pesquisas e as entrevistas, pois isso pode ser um processo sem fim. Não podemos esquecer que toda história é inesgotável e que precisamos saber quando dar um ponto final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meus projetos mais longos geralmente foram determinados por prazos, seja com o mestrado, seja com os livros de memórias que faço ao lado da Regina Rapacci, minha sócia na Editora Biografias & Profecias. Mesmo assim, a procrastinação sempre pode acontecer, especialmente no início dos projetos. Assumir uma rotina matinal é o primeiro passo para lidar com a procrastinação. A ideia de já começar o dia escrevendo me dá uma sensação de que estou no controle. Um alívio de pensar que consegui resolver alguma escrita antes da hora do almoço.
Sobre as travas, elas costumam se soltar com a leitura de outros livros. Eduardo Galeano e José Saramago são autores que me ajudam muito nessa oxigenação de ideias. Assistir a outras expressões artísticas como teatro, filmes e séries me ajuda muito. Praticar trabalhos cênicos também me alimenta a inspiração, o que faço como palhaço – foi um hobbyque comecei há quase dez anos e que também acabou evoluindo para uma segunda profissão.
Sair para andar pelo bairro resolve várias situações. Neste caso, quem me ajuda são as árvores e o movimento das pessoas andando nas ruas. Quando tenho menos tempo e o clima não favorece, ando pela própria casa, visitando e revisitando os cômodos. Estranho, eu sei. Mas é isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Antes da primeira versão ficar pronta, eu já fui relendo fragmentos e, depois, os capítulos já prontos, várias vezes. Tomo cuidado apenas para que esse processo de revisão não se torne mais uma forma procrastinar. De qualquer modo, quando a primeira versão está escrita, ela já passou por um processo de revisão cujo número de vezes não consigo mensurar, inclusive a última releitura em voz alta.
Sempre mostro meus trabalhos para alguém. Sou desses que, mal acabam de escrever, já estão loucos para encontrar um leitor com quem compartilhar a história e, especialmente, ouvir a opinião. Além de alguém da família, sempre procuro a leitura de colegas escritores para dar uma opinião técnica e mais imparcial.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto muito da ideia de ter um caderno, levar para o café e preenchê-lo com ideias que vão vindo naquela hora, sobre a mesa de madeira, num cantinho do salão perto de uma janela que dá para a vida lá fora… Mas isso é tão raro que nem lembro direito quando o fiz pela última vez. É mais provável que eu acabe produzindo o texto já diretamente via teclado do computador, em casa mesmo. Para alguns casos, quando a ideia ainda está muito abstrata e crua, rascunho no papel apenas em forma de tópicos, assim como esquemas gráficos que às vezes preciso montar. E aí eu faço pra valer: desenho uma linha do tempo, com diversas cores para destacar eventos e personagens diferentes (uso canetas coloridas), ou então o chamado mapa mental, agrupando todo o enredo num plano único, para não perder de vista o esquema de capítulos, tempos e personagens.
Isso vale especialmente para a não ficção, quando a duração do projeto pode levar muito tempo – inclusive para essas anotações se completarem – e esses esquemas me ajudam a seguir certa fidelidade, a não me perder ou não me esquecer de histórias que, em sua natureza, não são frutos da minha imaginação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa é uma ótima maneira de se fazer essa pergunta. Entendo que as ideias, vindas de nós mesmos, são um resultado de nossas próprias memórias e experiências de vida. Hoje parece que o mito da inspiração – aquele tal dom sublime dado a poucos seres privilegiados – vem sendo derrubado. O que acontece na escrita (assim como qualquer trabalho criativo) é muito esforço para usar todo um repertório de vida que, a princípio parece banal, e fazê-lo de maneira original, cuidadosa e com propriedade, ou seja, com técnica.
Para mim as ideias vêm a partir das histórias de vida que escuto, das minhas próprias memórias, dos meus sonhos, das leituras que faço (não é possível ser escritor sem ser leitor), de outras obras de arte que vejo/assisto/escuto, das minhas experiências do presente e das associações que tento fazer com todas essas coisas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como vim do jornalismo, grande parte da minha escrita até poucos anos atrás era no gênero de reportagens e narrativas biográficas. Pouco antes de entrar no mestrado em Escrita Criativa, arrisquei escrever um conto, e depois do meu ingresso nesta pós-graduação, comecei a explorar mais esse gênero, o que me trouxe resultados surpreendentes, como algumas premiações. Acho que havia dentro de mim todo um mundo da ficção a ser libertado. Então a ampliação de gêneros literários foi a grande mudança e que trouxe a descoberta de um novo processo.
E esse novo processo se deu de repente, com a presença de mais de uma dezena de pessoas ao meu redor – outros escritores do curso – com quem a troca de conhecimento, leituras e impressões foi crucial para que eu tivesse uma consciência bem mais ampla durante o processo criativo.
Sobre a segunda pergunta, como escritor, acho que sou ainda muito jovem para voltar no tempo e dizer alguma coisa para mim. Eu prefiro que o Fred de 97 anos volte e me ensine alguma coisa agora. Mas sei que isso seria uma fraude. Só a experiência ensina de fato. Então, gostaria que esse Fred quase centenário apenas me desse a notícia de que está preparado para escrever a grande obra da vida dele.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Bom, meu objetivo agora é finalizar o trabalho de edição do meu livro do mestrado – uma narrativa biográfica sobre uma palhaça brasileira. Tenho vários projetos na cabeça, alguns já engatilhados. Quero explorar mais o gênero do ensaio pessoal, algo não muito comum no Brasil. Também tenho um projeto de livro de contos e outro com relatos de viagem.
Já causa tanta angústia saber que vou viver sem conseguir ler todos os livros que eu gostaria, que prefiro pensar em ler estes enquanto escrevo os que podem me preencher essa falta. Por ora, eles são os projetos que acabei de mencionar.