Fred Caju é escritor, editor e artesão do livro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo sempre com o retrogosto de ontem. Então depende do dia que tive. Não, não tenho uma rotina matinal. Tento não ficar pensando no “amanhã tenho que fazer tal coisa”, sinto que isso tolhe o agora e suas possibilidades. Inevitavelmente terei prazos. Não quero assumir posições nem punitivas nem compensatórias por não cumprir uma agenda.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum horário que me sinto em excelência na escrita. E não mantenho rituais para escrever. Acho que nunca precisei parar de escrever. Se fiz algum ritual, já esqueci qual foi. E se fiz, foi bem eficiente ou falhei miseravelmente e estou preso a isto por todos os dias desde que comecei.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias. Sou generoso comigo para aceitar que não saiu nada publicável durante o dia. Escrever é algo que deve estar além de gerar livros. É um ato que se basta por si e para si. Anoto nem que seja uma palavra por dia, nem que seja só pra mim. Não quero inserir no meu processo criativo coisas que acho que devem acabar no mundo. A visão da meta para escritoras e escritores é a mesma da meta das vendedoras e vendedores de loja? Se for eu não quero. E se não for por quê estamos romantizando para um lado e explorando o outro? A lógica capitalista é abominável, predatória. Cada dia meu terá um tempo diferente, cada dia meu terá um resultado diferente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não há nunca notas suficientes. São infinitas. É um trem que você pega em movimento e salta em movimento. Não tem ninguém dizendo “um dois três valendo”. Já fiz inúmeras tentativas que não viraram efetivamente algo publicável. Mas eu perdi algo com isso? Definitivamente não. E não estou falando nem em escrever algo depois. Estou falando em viver.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido com nada disso. Não preciso forçar a barra pra escrever nada. Se não tem texto andando, tem vida pra gastar. Acho a procrastinação parte do processo. Aceitei desde o começo que não preciso vencer sempre. O erro é meu amigo. Já participei de um projeto com um desafio temático. A revista A geometria da cidade da fotógrafa Linda Nogueira. Tive plena liberdade nas escolhas de condução do poema e acompanhada dessa liberdade estavam a procrastinação e as falhas. Foi meu único contrato sob encomenda. E internamente estabeleci várias cláusulas de tolerância a erros.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até depois que estão prontos. Nunca parei. Borges diz que temos cinco ou seis temas que nos acompanham durante a vida. Tudo é feito a partir de resets do que fora escrito na tentativa de dizer com mais categoria o que fora tentado. Mostro para alguns amigos editores e revisores. Philippe Wollney do selo Porta Aberta e Rodrigo Acioli da Titivillus Editora já tomaram contato com originais meus antes da publicação. Gosto que me apontem o que tem de pior no livro. Geralmente bate com o que acho que está ruim. Algumas coisas corro o risco de defender mesmo que me digam que está ruim. No final das contas, e daí que esteja ruim? Não dou autoridade de régua de qualidade para ninguém.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acho que temos que parar com essa visão da tecnologia ser algo que faz beep-beep. Ora, papel e caneta não são tecnologia? A roupa que usamos não é tecnologia? E principalmente e primeiramente, a linguagem não é tecnologia? Eu trabalho com qualquer suporte que esteja ao meu alcance. Bloco de notas, celular, computador. Riscar o chão com um graveto também é tecnologia. Se for um pedaço de carvão que me derem, será com ele que escreverei. Se nada me for dado, ficarei repetindo meu pensamento em silêncio até que ele não possa mais ser apagado. Agora acho muito importante dizer o quanto o suporte altera o modus operandi da escrita. Nunca comecei uma prosa a lápis, por exemplo. A caligrafia e a digitação têm velocidades diferentes. Escrever numa página digital de barra de rolagem infinita é diferente de preencher uma página de tamanho limitado. Sou tranquilo com todas elas. Não há porque ser fiel ao suporte. Sou completamente promíscuo com meus horários e suportes para escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tenho coragem de saquear. De pegar frases dos outros. De absorver o mundo como se fosse voragem. Minha devolutiva é deixar todos os meus livros em licença aberta. O que veio do mundo, voltará pro mundo. Eu tenho alguns exercícios. Me demorar no dicionário sem entrar nele em estado de caça, mas a passeio. Escrever nomes de personagens e imaginar seus rostos, mesmo que tenha publicado poucas personagens com nomes explícitos é um exercício que gosto de ter. Fazer anagramas. Contar não só sílabas mas também caracteres. Palíndromos. Jogos de sonoridade. Exploração das possibilidades com tipografias. Sendo divertido e perigoso, eu topo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A escrita amadurece com as experiências de vida, com as leituras, com a frequência do seu exercício. No momento não quero olhar para trás para notar as mudanças. Caso a escrita dos meus primeiros textos me visite num futuro, vou agradecer por ela ter tido tantas falhas. Mas não sou eu quem vai dar esse passo para trás. A neblina me atrai mais do que a estrada trilhada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Devo ter começado vários que ainda nem sei quais são. Os que não comecei, estou tranquilo até para permitir que nunca comecem. Eu não vou perturbar nenhum livro que não existe ainda. Nesse vespeiro não toco. É bom deixar quem está criando o inexistente se divertir em paz. Não vou apressar ninguém. Já tem tantos livros que existem que quero ler.