Francisco Mata Machado Tavares doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não costumo ater-me a uma rotina estável ou homogênea. Há épocas em que acordo cedo e já inicio os trabalhos, mas ocorrem, igualmente, períodos em que desperto quase em tempo de almoçar. Os dias mais agradáveis correspondem, em geral, àqueles em que levanto-me um pouco mais tarde – por volta de nove horas – e só inicio os trabalhos após pedalar, ao menos, trinta quilômetros pelas ruas da cidade. Andar de bicicleta é sempre inspirador para escrever, seja pelas conversas nos semáforos com artistas de rua, pelo incontido sentimento de justiça ao notar os abastados condutores de poluentes automóveis retidos no tráfego que eles mesmos criaram ou, ainda, pelo frescor da brisa matinal no rosto, trazendo consigo lucidez e clareza para as ideias que posteriormente levarei ao editor de texto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral, gosto de escrever durante as madrugadas, para beneficiar-me do silêncio e do ritmo menos intenso de elementos causadores de distração, como aplicativos de mensagens ou correios eletrônicos. Não se trata, contudo, de uma regra. Já vivi períodos em que trabalhei com mais intensidade e disposição durante as tardes, ou mesmo de manhã.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu jamais trabalharia segundo um regime de metas diárias, pois tal procedimento reduziria a escrita a uma lógica fabril que, creio, não deve informá-la. Escrevo apenas quando percebo que tenho algo de relevante a expressar, seja uma contribuição científica, seja uma opinião ou comentário sobre a realidade. Jamais preocupei-me com prazos ou exigências heterônomas e, assim, ocorrem-me situações extremas, como a entrega de artigos ou trabalhos muito antes do prazo ajustado (por sorte, assim ocorreu nas ocasiões do mestrado e do doutorado) ou, de outro lado, a expiração de datas-limite sem que eu tenha concluído o texto (foi o que sucedeu em minha primeira iniciação científica, iniciada em 1999 e jamais concluída exitosamente). Embora no passado esse modo de atuar tenha causado ansiedade e até sofrimento, hoje em dia nada disso é um incômodo, pois prezo pelo caráter espontâneo e, sobretudo, livre da produção textual. Já atravessei, por exemplo, trinta e seis horas em frenética redação, do mesmo modo como enfrentei semanas de silenciosa leitura, interlocução verbal com pessoas próximas e contemplação solitária, sem ousar ir ao teclado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As primeiras linhas de um texto são, em geral, as mais difíceis. O fato é que cada peça, desde um pequeno palpite para divulgação na blogosfera, até uma tese de doutorado, parece possuir uma vida, uma história e uma personalidade que lhes são próprias. Nas primeiras linhas, estes atributos ainda não estão translúcidos, de vez que é frequente uma apreensão e insegurança quanto aos rumos que o texto há de seguir. Uma vez aprumada a redação, o trabalho tende a seguir um curso mais remansoso e estável.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ao longo dos anos, sobretudo após o trauma sofrido com uma iniciação científica inconclusa ainda no início da graduação, passei a perceber que é necessário aceitar as portas textuais que se encontram fechadas em nosso itinerário. Quando a redação de um trabalho se afigura muito sofrida ou sem sentido, vejo um sinal de que, na verdade, ainda não estou em condições de expressar ao público as ideias, opiniões ou conclusões científicas que imaginara poder apresentar antes de iniciada a escrita. Nestas ocasiões, é preciso ter humildade, voltar aos estudos, ouvir críticas e opiniões, deixar o tempo agir e, se for o caso, retomar o trabalho. Os textos mais interessantes que li – desde a literatura à dogmática jurídica – não foram produzidos sob o açoite dos prazos ou em busca de um sinalagma concernente a títulos acadêmicos, honorários, prêmios ou vantagens de semelhante jaez. As palavras que se imortalizam e, de fato, nos dignificam, são sempre ditas e escritas quando quem as emite não vê outro imperativo, senão expressá-las.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acredito que os meus textos nunca estejam efetivamente prontos. Irrito todos os meus amigos, parceiros de grupos de pesquisa, alunos, colegas de trabalho e até mesmo parentes, demandando-lhes a leitura de cada linha que escrevo. Quando decido enviar um artigo para a apreciação de um periódico ou quando publico um texto de opinião, não entendo que o trabalho esteja concluído. Antes, acredito apenas ter chegado a uma conformação que já permita a leitura crítica por parte de um conjunto mais amplo de pessoas, composto de pareceristas anônimos ou do público em geral.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As minhas anotações bibliográficas são, usualmente, produzidas à mão, em caderninhos coloridos sem os quais não consigo sobreviver, ou mesmo em “post-its” que fixo nos livros. Costumo, igualmente, escrever à mão algumas ideias esparsas que ocorrem-me ao longo do dia. A produção textual final, todavia, é sempre efetivada no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu escrevo quando sinto que não há outra coisa a fazer, senão dar vazão a um ímpeto apaixonado por divulgar opiniões, provocações ou conclusões que se desdobram das minhas pesquisas. Nada é, em minha vida, tão visceral e, a um só tempo, racional como a escrita. As minhas ideias surgem, em geral, da associação entre conceitos, sentimentos, impressões, paisagens, aromas, necessidades e histórias que não costumam se relacionar, senão na singularidade da experiência que vivo. Escrever é tentar tornar universal a mistura caleidoscópica de influências que me particulariza. Assim, por exemplo, associar um trecho de Fernando Pessoa lido na juventude com a crítica marcusiana à técnica capitalista, de modo a interpretar a percepção – colhida em entrevistas devidamente submetidas a rigorosos cuidados metodológicos – que ativistas goianos possuem sobre as normas constitucionais brasileiras, é algo que só a escrita pode fazer e, acredito, promove ao geral e social uma soma quase caótica de vivências específicas e individuais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu costumo dizer que ninguém sai incólume após cumprir pena por cinco anos no curso de bacharelado em direito. O ensino jurídico é uma máquina perversa de – valha-nos Bourdieu – inculcação de um habitus associado, dentre outros atributos, a textos rocambolescos, prolixos, nada claros e de um mofo parnasiano que soa ridículo ao século XXI. Reconforto-me ao ler os meus trabalhos, as minhas cartas e até as poesias antecedentes à graduação, redigidos antes dos meus dezessete anos. Atribuem a Miró a declaração de que teria passado a vida tentando pintar como fizera na infância. De minha parte, empenho-me diuturnamente para escrever da maneira como o fazia antes de ingressar-me nos estudos jurídicos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero ler um livro em versos – algo como uma Nova Ilíada – que caminhe epicamente em uma narrativa por meio da qual o leitor, ao final, encontra uma fórmula perfeita para a máxima autonomia privada e a mais plena igualdade social entre os seres humanos. Enquanto isso não vem, o projeto que nunca começo – ou em cujo começo estou desde 2005 – atém-se a uma comparação entre as filosofias políticas de Hobbes e de Hegel, sob o prisma das ideias de medo e de morte, com vistas a comparar a leitura daquele sobre a Guerra Civil Inglesa no Século XVII com a deste sobre a Queda da Bastilha, de modo a indicar como a recusa às revoluções está assentada em um misto de pânico diante do real com devaneio de imortalidade.