Francisco Mallmann é artista e pesquisador, transita entre poesia, dramaturgia, artes visuais e crítica de arte.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, geralmente antes das 6h. Há três anos venho fazendo com maior disciplina alguns cadernos dos sonhos, que envolvem anotações das imagens e das narrativas do son(h)o. Porque fui desenvolvendo alguns autoconvites para tentar conseguir, de algum modo, reter mais ou lembrar com mais detalhes essas projeções, geralmente meu dia começa com esse exercício, muito livre e despretensioso. Às vezes acontece do conteúdo ser mais vasto, às vezes uma pequena anotação, às vezes uma só palavra, às vezes nada. É um registro para o qual eu volto muitas vezes, mas nesse ato de anotar tento me desprender de qualquer autocensura, qualquer ansiedade de criar narrativa, formato ou enquadramento. Então me alongo, tomo banho, leio o jornal e começo a trabalhar – depois de duas xícaras de café (ou três ou quatro) e algumas músicas.
Pode ser, no entanto, que nada disso aconteça. Nesse ano, por exemplo, passei por muitas fases, algumas das quais envolveram um sono muito desregulado, ou mesmo a ausência dele. Reaprendi, como muitas de nós, a estranhar os gestos que pareciam hábitos alcançados ou estabilizados em uma certa noção de rotina. Tenho vivido em espanto, tenho tentado descansar. Tenho tentando manter alguma vitalidade, recolher motivos para algum encantamento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto da manhã, gosto de não me sentir, ainda, tão atravessado por certa urgência do dia – as mensagens, os e-mails, os telefonemas, as obrigações e prazos. Mas a verdade é que acabo escrevendo em todos os turnos, uma vez que minhas frentes de trabalho, quase todas, envolvem a criação em escrita. Tenho certo deslumbre pela madrugada, mas não é frequente conseguir habitá-la acordado.
Minha preparação consiste em arrumar a mesa e abrir as janelas. Manter cadernos, anotações e materiais ao alcance das mãos ou dos olhos. Também gosto de escrever em espaços abertos, sentindo que integro uma paisagem mais ampla. Nada disso chamo de ritual.
Mantenho livros de poesia por perto. Quando sinto que preciso arejar leio e releio alguns poemas que acho instigantes, quase como estimulantes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas. Ou, talvez, a meta seja delas fugir. Escrevo todos os dias, por vezes nada interessante. Aprendi a deixar que as coisas tenham tempo e espaço. Lembrar que as formulações precisam se avolumar sem pressa.
Alguns projetos permitem uma escrita mais espaçada, alguns requerem alguma imersão. Tenho dificuldade em determinar o fim, o que me requer alguma ideia de prazo – autoimposto ou não.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Percebo como as escritas acontecem de diferentes modos. Às vezes passo muito tempo pensando, sem propriamente registrar. Às vezes crio esquemas, mapas, me dou pistas sobre meu próprio desejo em relação ao que estou vislumbrando. Gosto, também, de produzir alguma análise em relação ao que faço despretensiosamente, como se fosse eu uma estrangeira na minha própria escrita. Perceber que, talvez, caminhos já estivessem sugeridos e eu não notei.
Entender a própria escrita como pesquisa me faz diminuir as distâncias nessas separações que, para mim, não são evidentes durante o trabalho. Mas, se porventura, a coisa me exige uma pesquisa temática ou algo do gênero, gosto de ir fazendo descobertas durante, a medida que os materiais vão se construindo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido lidando, o que parece uma bobagem, ao escrever, assim. Mas acho que os trabalhos vêm me convocando de diferentes maneiras. A pesquisa acadêmica se diferencia da poesia, que se diferencia da dramaturgia, que se diferencia das tantas outras experiências. O que, evidentemente, não as impedem de ter parecências, no que tange a escrita.
Minha ansiedade se parece com a compulsão. Fico um tanto aficionado aos projetos, de modo que vivo gráficos de muita instabilidade, antes, durante e depois. Me sinto insuportável em períodos de trabalho intenso, o que me leva, inevitavelmente, a alguma reclusão.
Gosto de sentir o desejo de não escrever, não falar, não tornar material determinadas sensações, ideias e pulsões. Gosto de desescrever. Gosto de investigar até onde vai – tentar perceber os motivos. Me revisito, releio grandes paixões, volto aos lugares que me são, de algum jeito, íntimos. Também experimento lugares insuspeitados, onde não me vejo, em primeira instância. Lido com o medo como quem lida com a própria vida, o susto de estar aqui e agora. E me permito, mesmo com medo. Convoco as forças e falseio coragem até encarná-la. Devolvo ao mundo, com a criação, meu desconforto, na tentativa de entender se é mesmo meu ou se me foi imposto.
Também me atribuo desimportância. Faço o exercício de incitar a insignificância. Desvio do ensimesmamento, como se me dissesse: não serei nada senão o que sou, não terei tamanho nenhum senão o que tenho, não há existência sozinha. Faço a manutenção de alguma ingenuidade, combino-a com a prática, com o que me é importante. Escuto o que me dizem, aquilo que volta do que oferto. Viver-junto me tira o medo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante – mas, pensando, as medidas são sempre contextuais. Alguns materiais, tenho a impressão, me exigem uma revisão intensa. Alguns parecem requerer certa brutalidade que envolve, inclusive, a não alteração. Mas porque minha criação se dá em trânsito, muitas vezes no interior de salas de ensaio, espaços compartilhados e a partir de performatividades de várias ordens, a noção de ensaio me é muito importante. Gosto do teste, da oralidade, do refazimento, da efemeridade – o que parece distante da palavra grafada. A repetição faz parte da minha prática, seja ela qual for – o que, eu acho, é uma forma de revisão.
Mas, em um sentido amplo, gosto da noção de Adrienne Rich sobre a re-visão como ato de sobrevivência. A atividade de re-ver a escrita, em sentido alargado, o que veio antes, o que nos trouxe até aqui, como uma prática estética e política que pode nos encaminhar a certa ruptura com narrativas que nos atribuíram sentenças com as quais não desejamos nos relacionar. Penso ser esse um processo de re-visão, re-escrita, re-fazimento que integra minhas criações.
Compartilho, antes, com uma rede de interlocutoras que são muito distintas entre si – isso, geralmente, me permite interagir com retornos mais amplos, sem os vícios das ficções dos “lugares de origem”.
Também integro a Membrana, uma grupa de escritoras, leitoras e ouvintes, com a qual construí uma relação crítico-afetiva de trabalho e vida. Meus últimos trabalhos todos foram partilhados nesse coletivo e lá verticalizei a escuta e aprendi abandonar a intencionalidade como escudo e a desenvolver um pensamento-partilhado. Isso, de um lado, me revela a importância da abertura e, também, a imprevisibilidade das recepções. Uma sensação de que interpretação é desejo e de que atenção requer cuidado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Anoto em cadernos, quase tudo. Rabisco no papel. Atualmente tenho feito notas no telefone móvel. Mas escrevo, efetivamente, no computador. No notebook ou no computador de mesa. Também escrevo nas paredes e em largas faixas de papel, que fixo pelo espaço. Quando sinto que o material chegou a um lugar interessante, ainda que transitório, imprimo. Anoto por sobre essa impressão e volto ao computador. Também me gravo falando – tanto o texto que já está feito, quanto ideias e formulações orais, com as quais trabalho posteriormente. Penso caminhando, escrevo dentro, gravo a voz e sigo movendo o corpo, frequentemente sem saber para onde. Já me perdi nessas derivas – efetivamente – e precisei pedir ajuda para encontrar alguma parte da cidade que eu reconhecesse. Isso deve lá dizer algo sobre alguns rascunhos (e trabalhos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não acho que consiga identificar pontualmente de onde vêm. Mas sei que muitas coisas me estimulam à criação, algumas com mais intensidade, algumas sem tanta pregnância. Caminhar pela cidade e ouvir conversas alheias é um hábito que mantenho, enquanto estratégia de criação. Há algo no espaço público, na passagem, no em-comum ordinário que me é instigante. Durante um tempo, o cinema também era um espaço muito vibrante para mim, no que diz respeito a ideias para a escrita. Também vivo períodos em que os teatros, museus e galerias me são convidativos, a depender do que eu experencio. De todo modo, criações de outras artistas costumam me mobilizar, quase como convites. Os cadernos dos sonhos me ofertam caminhos e enunciados. As conversas que tenho também. Gosto de fazer perguntas para quem admiro, essas interlocuções geralmente me oferecem ideias. Faço cursos com artistas que me interessam, quando posso. E os livros, sim, sempre os livros. Eles têm um poder de chamamento por sobre meus desejos de criação.
Tento me afastar ao máximo das noções românticas, de gênio e obra prima, de talento e inspiração. Assim como também tento escapar de uma criatividade utilitária, capitalística. Sei que flerto, inevitavelmente, com esses horizontes de sentido. Mas acredito no trabalho, antes. Minha formação me faz alguém que não consegue se desfazer de uma perspectiva de classe, em um sentido labutar, de luta e compromisso. Eu me abro ao mistério, especialmente quando me implico na noção de responsabilidade. Me interesso pela coletividade e, isso, me parece, atualiza sempre a recusa ao egoísmo e à vaidade, com o qual as ideias ocasionalmente podem se associar.
Por fim, uma percepção processual me mantém vibrando. O transitório em mim sustenta certa vivacidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo, eu mudei, nós mudamos. Deixei de gostar de muitas coisas que escrevi. Várias outras tomaram outro sentido, que passaram a me agradar mais com a distância. Estou aprendendo a entender que vou me desinteressar por algumas coisas que já fiz, inevitavelmente. Entendendo que, ao fazer, foi o que quis e pude fazer. Fazer as pazes com a pretensão, respeitar o que fui.
Hoje, eu me diria: “é sempre possível apagar a palavra do papel, mas não o que no interior delas fica”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
É um espaço fronteiriço, evoca uma interseccionalidade ampla, um corpo incapturável, uma língua-encruzilhada. Possivelmente portunhol. É de uma bicha, a voz. São paisagens da América do Sul. São encontros e formulações que se dão em trânsito. Uma escuridão que não evoca essa noção falida de clareza. Há uma impermanência, há um espanto em tudo. Há alianças, improváveis. Uma tentativa de não avolumar o fácil. Um reencontro com as irmãs extintas na história, que fui privado de conhecer. Há vida, em uma perspectiva não compulsória e biologicista. Tem a articulação de um mundo possível para as existências não assimiladas pela normatividade. Tem a criação de anúncios, para além da denúncia do fim deste mundo, tal qual o conhecemos. Uma interrupção da vigilância e da violência colonial e dos seus modos de produção discursiva, visual. Ainda não sei o que é. Tenho algumas pistas, mas elas me escapam quando tento oferecer limite. Acho que já comecei, mas não tenho certeza.
O livro que eu ainda não li vai ser escrito por alguém que ainda vai chegar, alguém com quem eu me encontro em outro tempo, depois de já esquecidos nossos nomes. Talvez não seja escrito, mas lançado ao espaço. Talvez seja de ouvir. Talvez seja sobre algum mistério que ainda não vislumbramos. Talvez não seja nada disso. Talvez os desejos dela sejam outros.