Francisco Daudt é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A minha rotina vem do meu trabalho de psicanalista clínico. Trabalho em casa, começo às 7h e termino às 19h20 com duas horas de intervalo de almoço. A influência disso na minha escrita é extremamente benéfica: se quiser que algo seja feito, dê a tarefa para uma pessoa ocupada. O ócio não é produtivo, se passa de um certo ponto. Ele induz a mais ócio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho rotina de escrita. Mantenho um bloco de post-it ao alcance, anoto ideias. Por vezes uso o Facebook para desenvolver um pouco mais um tema de que pretendo tratare, numa série a que dei o nome de “OUVIDO NO CONSULTÓRIO”. Isso poderia sugerir que ouvi dos clientes, mas o título é intencionalmente ambíguo, pois não fica claro quem falou e quem ouviu. Há anos não toco no laptop, achei vantagem em substituí-lo pelo iPad e pelo teclado eletrônico com autocorretor (que precisa ser bem vigiado para não produzir absurdos, mas de resto é muito útil). Uso o Word for iPad e o Dropbox como arquivo. Dessa maneira, posso escrever da minha poltrona do quarto, num restaurante, tudo para ser fácil e não monumentalizado. Minha escrita não é solene, meus meios de escrever também não.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca formalizo nada quanto à escrita. Ela vem de acordo com a veneta, ou de acordo com a musa inspiradora do Tom Jobim (“são os prazos, minha filha, os prazos”, respondeu ele numa entrevista). Às vezes tive um projeto de livro com começo, meio e fim, como n’ “A Criação Original – a teoria da mente segundo Freud”. Mas esse é um livro de mais de trezentas páginas, escrito para me ver livre de ter que ensinar Freud em sala de aula (coisa que fiz por dez anos), de modo que foi uma escrita metódica. Os outros foram parte da minha brincadeira de escrever. Considero o brincar como a coisa mais séria que faço na vida, e a escrita é apenas um dos meus brinquedos. Em outro livro (“O amor companheiro – a amizade dentro e fora do casamento”), inventei de passar três semanas escrevendo, no outono de 2001 num resort da mini cidade de Stowe, Vermont (EUA), com direito à “foliage” (as árvores coloridas pela estação) e à neve da entrada do inverno. Como vê, tudo brincadeira.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu nunca pesquiso para escrever, mas como eu tenho uma curiosidade onívora, vivo pesquisando assuntos que me interessam (eles são muitos). Consulto o santo Google umas quinze vezes por dia, em média, e leio muito (infelizmente perdi o gosto para ficção, meu gosto agora está voltado para aprender o que não sei; o livro recente mais rico – talvez o mais rico em décadas – que li foi o “Sapiens” do Yuval Harari). É daí que saem meus textos, pelas reflexões feitas sobre o que aprendi. A minha psicanálise é única por causa da minha curiosidade: ela casa Freud com Darwin, a psicanálise freudiana com a psicologia evolucionista. Acabo escrevendo sobre natureza humana como consequência. É uma espécie de pregação no deserto, já que a tendência dos formados em humanas é de acreditar que a cultura nos molda, que a mãe natureza não tem nada a ver com nosso jeito de ser, que somos uma criação em separado, bichos são os outros…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já entendi que a razão dessas dificuldades é se atribuir demasiada importância. Do momento em que tenho por certo de que serei esquecido, que virarei papel de embrulhar peixe, passo a dizer o que quero sem achar que vou fazer enorme diferença. Aí fica fácil. Assisti a um talk-show na adolescência que foi definitivo para isso: o Fernando Lobo (pai do compositor Edu Lobo) fez uma pergunta e o entrevistado hesitou: “bem, Fernando, não sei semposso responder isso aqui na televisão”. Lobo foi definitivo: “Ah, pode sim, ninguém assiste a esse programa mesmo…”
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisão é um processo interminável. Sempre se encontra alguma coisa para mudar. Tendo a refrear a minha obsessividade para não aspirar ao produto final perfeito, uma ficção em si. E é raríssimo que mostre um não publicado. Prefiro a crítica posterior. Como disse aquele autor: “escrever não é bom. Bom é ter escrito”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Adoro a tecnologia. Não escrevo mais nada à mão. Mas já escrevi muito: enchi três cadernos-espiral pautados fazendo minha auto-análise, isso durou quatro anos, e ela foi muito bem-sucedida. E tenho certeza que foi daí que saiu meu lado escritor. Afinal, uma coisa é certa: só escreve quem escreve, e sobretudo quem escreve muito. Esse negócio de que “quando eu me aposentar, vou escrever o livro do século” é uma quimera. Não rola!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Curiosamente, não vejo grandes mudanças. Por aflição a psicanalistas e médicos que falavam complicado e de maneira obscura, sempre quis escrever de maneira transparente, de modo a dar impressão ao leitor de que estava conversando com ele. Quanto mais ouvia dos leitores que eles pareceriam estar “me ouvindo falar”, mais essa jurisprudência ia se firmando. Quando aprendi com Karl Popper que a vulnerabilidade à refutação (vale dizer, a transparecia do que se diz) é a principal ferramenta da busca da verdade, aí mesmo que me tornei obstinado com isso. Quero que possam me dizer “você está errado”, se for o caso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
É curioso, mas meu projeto para 2019 é uma série de vídeos curtos em que comento meu livro sobre teoria freudiana da psicanálise e sua correlação com a clínica psicanalítica. É o projeto de um livro que começa com “anotações” em vídeo. Ou seja, se eu gostar muito do resultado (vai tudo para o meu canal no YouTube), ele vira livro.