Floriano Martins é poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Creio que a primeira observação necessária informa que não separo criação e existência, assim como exercício criativo e paixão crítica. Crio e escrevo meus ensaios e traduzo e cuido da direção da revista e da editora com a mesma intensidade com que respiro. Também fotografo, trabalho com design, escrevo letras de canções etc. Todas essas atividades estão entranhadas em mim, de modo que não há como apontar uma rotina em isolado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já tive um ritual de preparação, há algum tempo, possivelmente em face de que a minha vida cumpria um ciclo tal de dispersões que era imperativo criar um ambiente especial para a criação. Hoje não mais. Nós nos assaltamos a cada instante, a escrita e eu.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo como vivo. Gosto muito de recordar verso de um poeta peruano, Javier Sologuren, ao dizer: vibro de mim mesmo. Não sei se é correto falar em meta, como um marco estabelecido pelo destino. Raramente escrevo poemas em isolado, eles em geral fazem parte de argumento mais dilatado, e se escrevem em face da tensão que vão provocando e revelando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para efeitos de criação o que chamas de pesquisa eu chamo de viver. Já na área de ensaios, sim, aí requer certo planejamento, investigação, anotações, analogias etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho a menor recordação de algum dia ter sido visitado pelas famosas travas da escrita. A uma pergunta clássica da psicologia eu respondo com certo pudor, mas a verdade que não identifico a sombra do medo em minha vida. Expectativas a serem correspondidas é outro ardil que jamais me pegou. O tempo de cada projeto é seu e não o relaciono com a extensão e sim com a intensidade, com a voltagem de sua complexidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não há uma cronometragem da obsessão pela correção. Não me satisfaz a máxima de que publicar é a melhor maneira de se livrar de um poema. Posso – e assim tenho procedido com depurada constância – rever o poema mesmo após publicado. Trocar ideias sobre a criação é essencial, e naturalmente exige livrar-se da tolice de sentir-se genial. Ao longo de minha vida sempre cultivei amigos com quem discuto sobre originais e planos de edição. Considero-me um afortunado nesta seara.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tanto quanto um computador, o lápis é um instrumento, e esta deve ser a nossa relação com ambos, a de que é preciso dominá-los para avançar em qualquer ambiente criativo. Desde cedo, a escrita em mim se relaciona com outras formas de expressão artística, o que conduz ao domínio de diversos instrumentos. Meus rascunhos, em geral, são articulados no espírito, na memória, na inquietude de meu ser.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Imagino o quanto seria enfadonho cultivar hábitos por exigência da criação. Jamais pensei em manter-me criativo. Tampouco indago às minhas ideias de onde elas surgem, onde residiam antes de pousar em mim. Embora eu as identifique, não me preocupo com suas origens.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não creio nesse tipo de relação com o tempo. Evidente que a prática nos leva à ilusão da perfeição, porém as oscilações de qualidade da escrita têm uma relação mais direta com o estado de ânimo, a percepção, a intensidade da autocrítica. A qualquer momento posso escrever um poema aquém ou além da voltagem em curso. Este ano tenho preparado minha poesia completa. Apesar da juventude de meus 60 anos, eu me decidi por isto em face de que pretendo concluir um ciclo. Evidente que não deixarei de criar, porém os planos apontam na direção de uma prosa poética ainda mais visceralmente ligada a um perfil cênico. Já veremos. A principal mudança em minha escrita, com o passar do tempo, separa um primeiro momento, em que escrevia como um observador, do momento seguinte, que permanece até hoje, em que me insiro nela como seu protagonista. É, no entanto, uma afirmação insuficiente, dada a complexidade de minha trama poética. A partir deste segundo momento o poema foi ganhando uma complexidade, de fundo e forma, que funde realidades, truques de linguagem, modulações de vozes etc.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A afirmação de que escrevemos o livro que ainda não existe e que gostaríamos de ler me parece um truque gasto da presunção. Até porque a criação possui um caráter inesperado que é seu mais relevante ingrediente. Confesso que tenho mais planos de concluir os projetos em curso e ir cuidar de outras vertentes existenciais, porém a vida é essencialmente inesperada. Deixemos assim.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Isto depende se estamos falando de criação ou ensaio. Comecemos pelo ensaio. Meu extenso volume dedicado ao Surrealismo no continente americano começou como um pequeno ensaio escrito para uma revista, ao qual fui acrescentando, ao longo de pouco mais de 10 anos, diversos textos (ensaios, entrevistas, enquetes), alguns deles até mesmo como ampliação do ensaio original, até chegar um momento em que identifiquei que, sendo oportuno reunir todos eles em um volume monotemático, o estratégico seria definir uma estrutura que ambientasse o livro como um objeto único. No momento trabalho em um outro volume de ensaios em que ocorreu o inverso, ou seja, primeiramente defini o tema – a presença das mulheres no Surrealismo -, pesquisando sobre os nomes escolhidos e somente então tratando de escrever a respeito de cada uma delas. Agora, se falamos de criação, a minha poesia possui uma essência sinfônica, cuja partitura exige um domínio de suas peças e instrumentos. Costumo dizer que não escrevo poemas e sim livros. Neste sentido, mesmos aqueles poemas que eventualmente são escritos sem destino certo, logo exigem ciência do lugar que ocuparão em um livro. O que aparenta uma relação fria com a criação, posso garantir que é todo o contrário, considerando o grau de intimidade com a criação, ou seja, com o tempo os próprios poemas se escrevem já afinados com o espírito do livro. Em resposta à segunda metade de tua pergunta, eu não considero nada difícil na criação.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Em geral, tenho uma mesa de trabalho que revela certa insanidade. Poemas, ensaios, tradução, edição, fotografias, objetos, prefácios etc., o que inclui também leituras, música, filmes, animações etc., sem esquecer a frondosidade do diálogo virtual com parceiros na realização de muitos projetos. Sempre foi impossível para meu espírito dedicar-me a uma coisa só.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não, não creio que tenha havido este momento. Quando dei por mim já estava escrevendo, mas antes disto, já desenhava, rabiscava algo de criativo, e mais, antes de tudo eu já respirava, ou seja, é quando começamos, ao nascer. Tampouco creio que o façamos em face de um motivo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Houve mais demora do que propriamente dificuldade. Talvez a afinação dos instrumentos de uma identidade tenha tardado um pouco pela distração da adolescência, pelo frisson diante de um volume tão extenso de perspectivas. A música, o teatro, o cinema, a televisão, naturalmente os livros, enfim, a convivência com os amigos, tudo isto nos ajuda a definir uma voz própria. Sei de autores que tiveram uma importância mais forte, mas não chegaram a ser mais decisivos em relação ao que chamamos de influência do que a mescla de vários deles, e de várias expressões artísticas.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Há livros com os quais mantemos um tipo de relacionamento inconsciente, ou que sua influência sobre nós se guarda por algum tempo até encontrar o momento propício de vir à luz. Sempre penso assim quando recordo o Paraíso perdido, de Milton, livro lido e relido – com o tempo aprendi que somente os livros relidos dialogam verdadeiramente com nosso espírito – e que somente na idade madura compreendi o quanto devia a ele, por sua dimensão metafísica. Um segundo exemplo seria duplo, ou seja, lido ainda na infância o extenso volume O ramo de ouro, de James Frazer, posteriormente se encontra com A deusa branca, de Robert Graves, cuja leitura refrescou a memória em relação ao primeiro, dando à compreensão dos mitos um papel de destaque em minha criação. Quando li Os testamentos traídos, de Milan Kundera, pude compreender essa característica sinfônica de minha obra – mais ainda, de meu pensamento. O livro me fez perceber a necessidade de lidar melhor com as estruturas de uma obra de arte. A partir dele eu comecei a entender melhor o que antes se dava de modo disperso, a relação entre formas, os truques de linguagem, a mescla de gêneros. Há livros que são de leitura infinita, como os dicionários, que percorrem conosco uma vida inteira. De qualquer modo, são como os amantes, intransferíveis, de nada adianta sugerir a outro o amor que nos engrandece.